Relatório de Caso Clínico

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1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Veterinária Departamento de Patologia Clínica Veterinária Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínicas (VET03/121) Relatório de Caso Clínico IDENTIFICAÇÃO Caso Clínico n o 2015/1/06 Espécie: Canina Ano/semestre: 2015/1 Raça: Bull terrier Idade: 14 anos Sexo: fêmea Peso: 25 kg Alunos(as): Felipe Filippini Almansa, Glauber A. Assunção, Sarah de S. Urbano Médico(a) Veterinário(a) responsável: Viviana Cauduro Matesco ANAMNESE A única consulta da paciente no HCV/UFRGS ocorreu no dia O motivo principal da visita era um quadro de diarréia com sangue e vômito com sangue desde o dia , além de sinais de dor abdominal. Não estava comendo nem caminhando, estava tomando pouca água e urinando normalmente. Além disso, tinha tremores e talvez tenha apresentado convulsão. Possuía um nódulo no abdômen há seis meses, além de falhas de pêlo no peito e no pescoço e claudicação do membro torácico direito (MTD) há uma semana. Demonstrava cansaço físico. A paciente possuía acesso à rua em passeios com guia, alimentava se de ração, nunca teve cria, não era castrada e não tinha cio há dois anos. Era vacinada com polivalente (tríplice). EXAME CLÍNICO A paciente apresentou linfonodos poplíteos aumentados, dor à palpação abdominal e hálito urêmico. Estava com lesões alopécicas com colaretes epidérmicos há um mês, com edema subcutâneo e pododermatite. Além disso, possuía um nódulo firme não aderido entre as mamas três (M3) e quatro (M4) esquerdas. Ficou em estação, mas relutou à deambulação. Estado mental apático. Estava normohidratada e com as mucosas normocoradas. Escore corporal 4/5 (Valor de referência para a espécie canina: 3/5) 6. EXAMES COMPLEMENTARES Dia 1 (24/03/2015) Radiografia de Tórax: Opacificação em campos pulmonares com padrão bronquial e aumento de área cardíaca. Calibre de grandes vasos, calibre e lúmen traqueal preservados. Leve desvio dorsal de trajeto traqueal. Sem imagem para metástases. Radiografia de Membro Anterior Direito Distal: Ausência da terceira falange do segundo dedo e pequena osteofitóse em borda lateral justametafisária distal de quinto metacarpo. Ultrassonografia: Fígado com as dimensões mantidas, contornos regulares, parênquima homogêneo e normoecogênico. Vesícula biliar com repleção adequada, parede fina e conteúdo anecogênico heterogêneo (bile densa). Aparelho gastrointestinal com paredes preservadas e peristaltismo evolutivo. Espessamento de parede, cerca de 0,61 cm. Rins simétricos, apresentando dimensões normais, contornos regulares e relação corticomedular preservadas. Ambos com mineralização de divertículos. Bexiga urinária bem distendida, parede normoespessa e conteúdo anecogênico levemente heterogêneo (sugestivo de sedimento). Demais órgãos abdominais visualizados sem alterações. Exame Bacteriológico: Amostra de urina por cistocentese. Apresentou no cultivo aeróbico Escherichia coli. Realizado Antibiograma, o qual apresentou cultivo sensível aos antimicrobianos amoxicilina com ácido clauvulânico, doxiciclina, gentamicina e à sulfa com trimetoprima e resistente à ceftriaxona, cefalotina, enrofloxacina e norfloxacina. Exame Citológico: Nódulo entre M3 e M4 esquerdas. Possuía moderada quantidade de células redondas, isoladas ou formando pequenos agrupamentos e exibindo acentuado pleomorfismo. Observado ainda com freqüência células multinucleadas, além de ocasionais neutrófilos e macrófagos. Sugestivo de carcinoma.

2 Página 2 URINÁLISE Método de coleta: cistocentese Obs.: Impregnação por bilirrubina Data: 24/03/2015 (Dia 1) Sedimento urinário* Exame químico Células epiteliais: 0 ph: 5,5 (5,5 7,5) Cilindros: 0 Corpos cetônicos: negativo Hemácias: 0 Glicose: negativo Leucócitos: Bilirrubina: + [leve] Bacteriúria: severa Urobilinogênio: 0,2 mg/dl (<1) Outros: Proteína: + [ 30 mg/dl] Sangue: ++ [moderado] Exame físico Densidade específica: 1,024 (1,015 1,045) Cor: Amarelo *número médio de elementos por campo de 400 x; n.d.: não determinado BIOQUÍMICA SANGUÍNEA Consistência: Fluida Aspecto: Límpido Amostra: soro Anticoagulante: nenhum Hemólise: ausente Data: 23/03/2015 (Dia 0) Proteínas totais: g/l (54 71) Cálcio: mg/dl (9,0 11,3) Albumina: 16 g/l (26 33) Fósforo: mg/dl (2,6 6,2) Globulinas: g/l (27 44) Bilirrubina total: mg/dl (0,10 0,50) Bilirrubina livre: mg/dl (0,01 0,49) Bilirrubina conjugada: mg/dl (0,06 0,12) Fosfatase alcalina: 202 U/L (<156) AST: U/L (<66) ALT: 88 U/L (<102) CPK: U/L (<121) Glicose: mg/dl (65 118) Colesterol total: mg/dl ( ) Ureia: 164 mg/dl (21 60) Creatinina: 2,1 mg/dl (0,5 1,5) Observações: : ( ) : ( ) : ( ) : ( ) HEMOGRAMA Data: 23/03/2015 (Dia 0) Leucócitos Eritrócitos Quantidade: /µL ( ) Quantidade: 5,53 milhões/µl (5,5 8,5) Tipos: Quantidade/µL % Hematócrito: 41 % (37 55) Mielócitos.0 (0) 0 (0) Hemoglobina: 14,1 g/dl (12 18) Metamielócitos.0 (0) 0 (0) VCM: 74,1 fl (60 77) Neutrófilos bast. 454 (<300) 2 (<3) CHCM: 34,4 % (32 36) Neutrófilos seg ( ) 86 (60 77) RDW: % (14 17) Basófilos.0 (0) 0 (0) Reticulócitos: % (<1,5) Eosinófilos 454 ( ) 2 (2 10) Observações: PPT: 54 g/l (60 80) Monócitos 227 ( ) 1 (3 10) Linfócitos ( ) 9 (12 30) Plaquetas Plasmócitos (_) (_) Quantidade:./µL ( ) Observações: Observações: *Agregação plaquetária

3 Página 3 TRATAMENTO E EVOLUÇÃO A paciente foi internada na UTI no mesmo dia da primeira consulta, quando a veterinária solicitou exames laboratoriais e complementares. Como houve ausência de diagnóstico até o óbito da paciente, o tratamento visou preservar suas funções biológicas, ao mesmo tempo em que exames contínuos eram realizados. Dia 0 (23/03/15) A paciente foi internada na UTI do HCV/UFRGS. Iniciou um tratamento para hidratação e preservação do aparelho gastrointestinal. Foram realizados hemograma e testes bioquímicos, os quais demonstraram valores de fosfatase alcalina, creatinina e ureia acima das referências para a espécie e valores de albumina abaixo da referência. Apresentou leucograma inflamatório. Seu estado era apático. Dia 1 (24/03 15) Foi diagnosticada cistite bacteriana por Escherichia coli (E. coli) através de cultura microbiana da urina, mas esta informação não foi suficiente para explicar o quadro clínico completo da paciente. Utilizado cefalexina (antimicrobiano). Neste dia, ela apresentou diarréia e fez a primeira urinálise. Realizado também radiografia de tórax e de membro anterior direito distal, ultrassonografia e exame citológico do nódulo entre M3 e M4 esquerdas. Dia 2 (25/03/15) Observado diarréia com melena. Durante passeio, a paciente urinou com hematúria, que pode ter ocorrido devido à lesão causada por cistocentese. Esta condição permaneceu até o dia 12. Dia 3 (26/03/15) Foram realizados exames bioquímicos, que demonstraram aumento de alanina aminotransferase (ALT) e diminuição do colesterol (em relação aos valores de referência para a espécie canina), sugerindo que a medicação poderia estar causando dano hepático, uma vez que a ALT já havia sido mensurada no dia 0 e estava dentro dos valores de referência. O antimicrobiano cefalexina foi substituído por amoxicilina trihidratada e clavulanato de potássio (antimicrobiano). No hemograma, apresentou anemia. Devido à diminuição dos eritrócitos, hemoglobina, albumina e plaquetas (em relação aos valores de referência), há de ser suspeitada anemia devido à perda de sangue. O hematócrito, que era 41% (referência: 37 55%) no dia 0, diminuiu para 18%, o que pode ser explicado pela hemorragia e pela hidratação proporcionada pelo tratamento. Neste dia, foi medido o tempo de protrombina (TP) e o tempo de trombroplastina parcial ativada (TTPa), que estavam dentro dos valores de referência. O leucograma demonstrou que havia inflamação em curso, com neutrofilia e monocitose, a qual sugere um estado crônico da agressão. Dia 4 (27/03/2015) Ultrassonografia: Vesícula biliar com repleção adequada, parede fina e conteúdo anecogênico heterogêneo (bile densa). Aparelho gastroinstestinal com paredes preservadas. Rins simétricos, apresentando dimensões normais, contornos regulares e relação corticomedular preservadas. Ambos com mineralização de divertículos. Bexiga urinária medianamente distendida, parede normopespessa e conteúdo anecogênico heterogêneo, apresentando em seu interior estruturas hiperecogênicas, não formadoras de sombra acústica, medindo cerca de 2,55 cm x 5,11 cm, presas à parede lateral. Demais órgãos abdominais visualizados sem alterações dignas de nota. Dia 7 (30/03/15) O hemograma deste dia demonstrou agravamento do quadro anêmico e aumento na quantidade de neutrófilos em relação ao exame anterior, o que indica permanência da inflamação. Nos exames bioquímicos, a ALT diminuiu em comparação ao dia 3, o que pode ser justificado pela retirada de um fármaco que estava causando dano hepático, como a cefalexina (antimicrobiano). Também foi realizado um Snap test 4dx que apresentou resultado negativo para os seguintes agentes: Dirofilaria immits, Borrelia burgdorferi, Ehrlichia canis e Anaplasma phagocytophilum.

4 Página 4 Dia 8 (31/03/15) A paciente vomitou pela primeira vez desde o primeiro dia de internação (dia 0), apesar dos antieméticos administrados, como a ondansetrona. Dia 14 (06/04/15) Um novo hemograma requerido revelou aumento na quantidade de eritrócitos circulantes, de hemoglobina e seu reflexo na pontuação do hematócrito em relação ao dia 7. Foi quantificada também a porcentagem das células da linhagem vermelha que eram reticulócitos (precursores de eritrócitos maduros indicativos de resposta medular), que demonstrou grande regeneração provinda da medula óssea. Isto constatou a regeneração medular de eritrócitos previamente suspeitada pela macrocitose e hipocromia dos exames prévios. A enzima fosfatase alcalina (FA) estava acima dos valores de referência, o que pode demonstrar danos severos em alguns órgãos como ossos, fígado e túbulos renais. Neste dia, também foi realizada urinálise. Dia 17 (09/04/15) A paciente tornou a vomitar (sem a presença de sangue). Dia 18 (10/04/15) Ela vomitou pela terceira vez após a internação. Um exame para a albumina revelou um leve aumento em relação ao exame do dia 14. Apesar do hematócrito continuar baixo, houve uma melhora do quadro geral, pois a quantidade de eritrócitos circulantes e a hemoglobina aumentaram. Mais uma vez, o leucograma foi inflamatório. Dia 19 (11/04/15) A paciente vomitou e teve diarréia com coloração alaranjada. Dia 20 (12/04/15) Ela apresentou vômito e melena. Dia 21 (13/04/15) A paciente veio à óbito durante a internação. Resumo dos Fármacos: Durante todo o tratamento, foram utilizados os fármacos ondansetrona (antiemético) e omeprazol (protetor gástrico). Cloridrato de ranitidina (antiulceroso) somente no dia 0. Dos dias 0 4, a cefalexina (antimicrobiano) foi usada, mas foi retirada em seguida devido ao dano hepático (aumento de ALT). Concomitantemente, dos dias 0 9 foram administrados metronidazol (antimicrobiano) e ringer lactato (hidratação, trauma cirúrgico, trauma hemorrágico, choque hipovolêmico). Maropitant (antiemético) entre os dias 0 3 e 18 21, sucralfato (protetor gastroinstestinal e de mucosas) entre os dias 0 4 e 11 21, dipirona sódica (analgésico, antipirético) e cloridrato de tramadol (analgésico) entre os dias 2 21, amoxicilina trihidratada e clavulanato de potássio (antibiótico de amplo espectro) entre os dias 4 21, complexo de vitaminas do complexo B, nicotinamida, frutose, aminoácidos, macro e microminerais (usado em caso de intoxicação, anorexia, inapetência, convalescença, anemia) entre os dias 11 18, furosemida (diurético) entre os dias No dia 18, foi inserido uma medicação que continha arginina, cinarina, cisteína, colina, extrato de alcachofra, glicina, inositol, glutamina, selênio, extrato de cardo mariano, taurina, vitamina B12, vitamina B2, vitamina B6 e zinco quelatado (manutenção do metabolismo de gordura e proteínas), além de juntamente ser administrado ácido ursodesoxicólico (colerético) e vitamina E. No dia 20, foi utilizado aminofilina (broncodilatador). Nos dias 20 e 21, optaram por uma medicação contendo cloridrato de metoclopramida monoidratada e cloridrato de metoclopramida anidro (antiemético), além de silimarina (hepatoprotetor) 10.

5 Página 5 Tabela 1. Panorama quantitativo cronológico de exames laboratoriais 23/03/15 26/03/15 30/03/15 Parâmetro avaliado (val. referência) Dia 0 Dia 3 Dia 7 06/04/15 Dia 14 10/04/15 Dia 18 Bioquímica sanguínea Albumina (26 33 g/l) ALT (<102 U/L) n.d. FA (<156 U/L) n.d. Creatinina (0,5 1,5 mg/dl) 2,10 1,42 0,95 0,70 n.d. Ureia (21 60 m/dl) n.d. TP (<10s) n.d. 7,0 7,7 n.d. n.d. TTPa (15 20s) n.d. 19,2 15,6 n.d. n.d. Colesterol total ( mg/dl) n.d n.d. n.d. Triglicerídeos ( mg/dl) n.d. 75 n.d. n.d. n.d. Fósforo (4,2 8,3 mg/dl) n.d. n.d. 4,6 n.d. n.d. Cálcio (9,0 11,3 mg/dl) n.d. n.d. 7,83 n.d. n.d. Glicose (60 90 mg/dl) n.d n.d. Hemograma Eritrócitos (5,5 8,5 milhões/μl) 5,53 2,22 1,83 2,93 3,30 Hemoglobina (12 18 g/dl) 14,1 5,6 4,6 7,3 9,1 Hematócrito (37 55%) V.C.M (60 77 fl) 74,1 81,1 92,9 95,6 78,8 C.H.C.M (32 36%) 34,4 31,1 27,1 26,1 35,0 Reticulócitos (0 1,5%) n.d. n.d. n.d. 15,43 n.d. Plaquetas x10 3 ( /μL) * * *agregação plaquetária PPT (60 80 g/l) Leucócitos totais ( /μL) N. bastonetes (<300/μL) N. segmentados ( /μL) Monócitos ( /μL) n.d.: não determinado Tabela 2. Comparativo de exames de urinálise. Parâmetro avaliado (val. referência) 24/03/15 06/04/15 Dia 1 Dia 14 Método de coleta Cistocentese Micção natural Densidade (1,015 1,045 g/ml) 1,024 1,014 Bilirrubina (0 1+) 1+ 0 Sangue oculto (0) 2+ Traços intactos ph (5,5 7,5) 5,5 6,0 Proteínas (0 1+) Células epiteliais / campo (400x) (0 2) (escamosas) Leucócitos / campo (400x) (0 2) Eritrócitos / campo (400x) (0 2) 0 < 5 Bactérias (0 1+) Cilindros (0 1+) 0 2+ (hialinos)

6 Página 6 DISCUSSÃO Bioquímica sanguínea No primeiro exame (dia 0), os valores de ureia e creatinina estavam acima dos valores de referência para a espécie, o que corresponde a um quadro de azotemia. Isso corrobora o hálito urêmico da paciente durante a primeira consulta. A ureia é excretada pelos rins, sendo filtrada no glomérulo e parcialmente reabsorvida de forma passiva nos túbulos 3. Quanto menor o fluxo de urina, maior a reabsorção da ureia nos túbulos, podendo chegar a 70% 3. A paciente estava com hipodipsia, hematoquezia e hematêmese, o que pode ter contribuído para a diminuição do fluxo renal. A creatinina pode estar aumentada devido à diminuição da perfusão renal, mas não é descartado a insuficiência renal (densidade urinária era menor que 1,030 3, pois a paciente foi tratada para cistite (infecção urinária) causada por E. coli. Neste mesmo exame, a fosfatase alcalina (FA), que é uma enzima cujas isoformas estão localizadas na membrana celular de vários tecidos como epitélio intestinal, osso, fígado, túbulos renais e placenta 3, estava aumentada em relação ao valor de referência para a espécie. Por estar localizada na superfície luminal dos enterócitos, é perdida somente pelo conteúdo intestinal se há dano epitelial 5, por isso no caso desta paciente a hematoquesia e a hematêmese não influenciaram na quantificação desta enzima. De fato, a isoforma da FA hepatocelular pode elevar os níveis sanguíneos e possui atividade tanto no canalículo biliar quanto na superfície dos sinusóides 5. Na ultrassonografia da paciente foi verificada a presença de bile densa e vesícula biliar com paredes finas. A albumina, quantificada nos cinco exames realizados, estava abaixo do valor de referência para a espécie em todos eles. No exame realizado no dia 7, as globulinas também se mostraram diminuídas. Entre os fatores que podem causar a hipoalbuminemia está a perda de sangue, como foi verificada na paciente. Durante o tratamento no HCV UFRGS, a mesma apresentou ocasionalmente hematúria, além de hematêmese e hematoquezia. Quando há perda sanguínea, a albumina e a globulina diminuem na mesma proporção no sangue e há passagem de fluido do espaço extravascular para o intravascular, diluindo os constituintes remanescentes do sangue, incluindo proteínas e eritrócitos 7. No dia 7, foi verificado hipocalcemia e normofosfatemia. A hipoalbuminemia está relacionada com a baixa concentração plasmática de cálcio, já que as proteínas plasmáticas transportam 40% do cálcio sérico 7. O cálcio está relacionado a transmissão sináptica neural, contração do músculo esquelético e cardiovascular 7, além de ser um fator essencial no processo de coagulação sanguínea 3, fundamental para uma paciente com hemorragia. Quanto à enzima Alanina aminotransferase (ALT), houve um aumento plasmático a partir do dia 3, que pode ter sido causado pelo fármaco cefalexina (antimicrobiano), utilizado nos dias 0 à 3. A ALT é encontrada em grande concentração no fígado, dentro do citoplasma das células e não é necessário a morte da célula para que ela seja liberada 3. Neste mesmo exame do dia 3, o colesterol estava com um valor abaixo do valor de referência para a espécie, mas aumentou no exame do dia 7 (após o fármaco ter sido retirado). O fígado é o órgão responsável pela síntese de grande parte do colesterol endógeno 3. A hipoglicemia apresentada no dia 14 pode estar relacionada ao quadro séptico associado aos vômitos dos dias precedentes. A hipoglicemia, neste caso, ocorreu devido ao uso exagerado de glicose pelos tecido periféricos (como a sepse) 3. No intervalo de três dias (14 ao 18), houve acréscimo no número de leucócitos totais, que já apresentavam leucocitose, o que indica um agravamento da inflamação dado pela multiplicação bacteriana. Este conjunto de dados, juntamente com a diarréia e a melena dos últimos dias de vida, sugere que o óbito pode ter sido causado pelo choque séptico. Neste tipo de choque, que ocorre devido à má distribuição sanguínea e geralmente está associado à endotoxinas de bactérias gram negativas (como a E. coli da cistite da paciente), há uma ativação exarcebada do sistema imunológico com alterações vasculares, pró inflamatórias e pró coagulantes causando vasodilatação sistêmica profunda, hipotensão e hiperfusão tecidual 9. Hemograma Apesar da perda sanguínea da paciente ter sido constatada visualmente pelos tutores nos dias anteriores à consulta, o primeiro eritrograma (dia 0) não demonstrou alterações e nos bioquímicos a albumina estava diminuída em relação aos valores de referência. Após uma perda recente de sangue em cães, o hematócrito pode ser mantido devido à contração esplênica 4. Além das proteínas terem sido

7 Página 7 perdidas durante as hemorragias, a concentração sérica delas também pode ter diminuído devido ao movimento de fluidos do trato gastrointestinal e espaço extravascular para a circulação sanguínea 4 (expansão plasmática), evitando assim a hipovolemia. O segundo eritrograma, realizado no dia 3, revelou uma anemia macrocítica hipocrômica com presença de anisocitose (+1), o que é indicativo de regeneração. Dessa forma, é classificado como uma anemia regenerativa por perda de sangue. No terceiro exame (dia 7), a anemia persistiu e foram observados excêntrócitos (+1), os quais possuem a hemoglobina deslocada para um lado da célula (não distribuída) e estão associados ao dano oxidativo 7. Nos dias 7 e 14 do tratamento, também houve a presença de policromasia (+2), hipocromasia (+2) e anisocitose (+2). Apesar de não ter sido quantificado no dia 7, a policromasia é um indicativo da presença de reticulócitos, os quais no exame do dia 14 indicaram uma anemia fortemente regenerativa. De acordo com Thrall (2012), células policromáticas são eritrócitos jovens que foram liberados precocemente na circulação. A hipocromasia indica uma diminuição na concentração de hemoglobina, que geralmente está associada com um aumento de eritrócitos imaturos na circulação ou pode ter sido causada por deficiência de ferro 7. Como a paciente continuava perdendo sangue, essa deficiência foi justificada, assim como a liberação precoce das hemácias. A anisocitose (variação no tamanho do eritrócito 7 ) visualizada nos esfregaços concorda com a macrocitose constatada e as alterações descritas anteriormente. A presença de codócitos (+2) no dia 14 tem pouca significância diagnóstica em cães e pode ser um indicativo de várias condições, como hipercolesterolemia 7. Em relação aos valores de referência dos cães, a anisocitose está aumentada na anemia regenerativa e pode estar um pouco aumentada nos animais saudáveis 4. Nos dias 3, 7 e 14 as plaquetas estavam diminuídas, normais e aumentadas, respectivamente, em relação aos valores de referência. A trombocitopenia do dia 3 pode ter sido causada devido à perda aguda de sangue. Nos mamíferos, as plaquetas são formadas a partir dos megacariócitos, encontrados na medula óssea, cujos precursores são estimulados a se proliferar por várias citocinas, como a eritropoietina (EPO), a trombopoietina (TPO) e a interleucina 6 (IL 6) 4. A EPO é o principal regulador hormonal da eritropoiese, é liberada pelos rins nos animais adultos e também pelo fígado nos animais anêmicos quando há hipóxia 7, no caso ocasionada pela anemia. A TPO é produzida por várias células do corpo, como as endoteliais do fígado e regulada pela quantidade de plaquetas circulantes. A IL 6 estimula a trombopoiese aumentando a produção de TPO pelo fígado 4. Ela é uma citocina multifuncional que, entre as suas funções, regula a inflamação e promove a trombopoiese durante a inflamação 8. Nesse caso, a cistite pode estar relacionada à trombocitose do dia 14. A paciente apresentou em todos os exames laboratoriais um leucograma inflamatório. Nos dias 0, 7 e 18, ela estava com neutrofilia com desvio à esquerda devido aos bastonetes e nos dias 3 e 14, sem desvio, mas com presença de neutrófilos tóxicos (+1) e monócitos ativados. Com exceção do primeiro exame, todos eles apresentaram monocitose. Esses dados estão de acordo com o quadro de infecção bacteriana na bexiga enfrentada pela paciente. Desvios à esquerda geralmente estão associados a condições inflamatórias, quando há estímulo excessivo da medula óssea através de citocinas para que ocorra a liberação de neutrófilos maduros 4 que, ao não conseguir atender à demanda tecidual e exaurir as reservas dos segmentados, acaba por liberar seus precursores. Nesse quadro, é comum a presença de neutrófilos tóxicos, cuja alteração celular ocorre antes de serem liberados para a circulação 4. De acordo com Harvey (2012), cães com neutrófilos tóxicos geralmente apresentam sinais graves de doenças, necessitam de longos internamentos e possuem mortalidade mais alta do que animais sem estes neutrófilos. Isto condiz com o histórico da paciente. Urinálise No primeiro exame (dia 1), por cistocentese, o resultado foi positivo para bilirrubina conjugada (1+), indicando um leve aumento em relação aos valores de referência. Entre outras causas, isto pode indicar doença hepática ou obstrução biliar. Associada às imagens de ecografia, que demonstrou a vesícula biliar com as paredes finas e bile densa, a bilirrubinúria pode estar associada a uma obstrução biliar. Quanto às bactérias, o fato de elas estarem em uma quantidade elevada (3+) associado à leucosúria ( leucócitos/campo em 400x) corroboram a infecção urinária causada por E. coli. A presença de sangue

8 Página 8 oculto (2+) pode ter ocorrido devido ao método de coleta, por alguma lesão causada à mucosa, já que a paciente apresentou hematúria no dia seguinte (dia 2) até o dia 12. Apresentou proteinúria (1+) também, provavelmente causada pela presença de leucócitos, bactérias, sangue e células de descamação. No segundo exame (dia 14), por micção natural, houve a presença de eritrócitos (<5/campo em 400x). Eles podem estar presentes devido às lesões prévias ou por lesões existentes nos rins, ureteres, bexiga ou uretra. Traços de sangue intactos também foram relatados no laudo, além de cilindros hialinos (2+). Estes podem representar uma forma inicial e mais leve de irritação renal. Também podem aparecer em poucas quantidades sem que haja lesão renal, febre, distúrbios gastro intestinais, icterícia e anemia 1. Podem ser encontradas proteinúria e bacteriúria branda sem significado clínico quando se emprega este método de coleta urinária 2. Ainda assim, o exame apresentou 2+ para bactérias, o que se classifica de maneira moderada e deve ser levada em consideração. É sugerido, com certa cautela, que há progresso na tentativa de sanar a infecção bacteriana, com esta afirmação sendo apoiada pela alteração do leucograma inflamatório vista no mesmo dia. Quanto às proteínas, que novamente apareceram em poucas quantidades (1+), podem ser provenientes dos eritrócitos, presença de sangue ou das bactérias, os quais foram encontrados em quantidades consideráveis na urina. Considerações gerais sobre o quadro clínico A paciente estava apática, prostrada e resistia à qualquer esforço físico (como passeios para urinar) desde o momento que chegou ao hospital para a consulta até o dia do óbito. A suposta lesão provocada pela cistocentese na bexiga determinou dez dias de sangramento, cuja duração poderia ter sido mais curta se ela não estivesse tão debilitada. As medicações, assim como os exames laboratoriais e a preocupação e cuidado da Médica Veterinária responsável, proporcionaram uma qualidade de vida melhor nos seus últimos dias de vida. CONCLUSÕES Os parâmetros alterados são compatíveis com causas secundárias descritas na literatura. Apesar dos exames serem sugestivos para infecção bacteriana grave na bexiga (cultura microbiana) e de carcinoma nas mamas (citologia), somente estas alterações não parecem explicar o quadro debilitante da paciente, o qual inclui ulcerações sobre a pele, hematoquesia, hematêmese e edema subcutâneo, culminando com o óbito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. GARCIA NAVARRO, C.E.K. Manual de Urinálise Veterinária. 2ed. Livraria Varela: São Paulo, p. 2. GONZÁLEZ, F.H.D. Patologia Clínica Veterinária: texto introdutório. Editora da UFRGS: Porto Alegre, p. 3. GONZÁLEZ, F. H. D. SILVA, S. C. Introdução à Bioquímica Clínica Veterinária. 2 ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 4. HARVEY, J. W. Veterinary hematology: a diagnostic guide and color atlas. Elsevier, KANEKO, J. J. HARVEY, J. W. BRUSS, M. L. Clinical Biochemistry of Domestic Animals. 6 ed. New York: Academic Press, p. 6. NELSON, R. W. COUTO, C. G. Small Animal Internal Medicine. 5 ed. Canada: Elsevier, THRALL, M. A. WEISER, G. ALLISON, R. W. CAMPBELL, T. W. Veterinary Hematology and Clinical Chemistry. 2 ed. Wiley Blackwell, p. 8. WEISS, D. J. WARDROP, K. J. Schalm s Veterinary Hematology. 6 ed. Wiley Blackwell, ZACHARY, J. F. MCGAVIN, M. D. Bases da Patologia em Veterinária. 5 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, ZUCCOLOTTO, L. CRIVELLENTI, S. B. Bulário medico veterinário: cães e gatos. São Paulo: Medvet, 2013.