ESTUDOS DA LITERATURA ANGLÓFONA
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- Ivan Fagundes Canário
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2 ESTUDOS DA LITERATURA ANGLÓFONA 1ª Edição
3 SOMESB Sociedade Mantenedora de Educação Superior da Bahia S/C Ltda. Gervásio Meneses de Oliveira Presidente William Oliveira Vice-Presidente Samuel Soares Superintendente Administrativo e Financeiro Germano Tabacof Superintendente de Ensino, Pesquisa e Extensão Pedro Daltro Gusmão da Silva Superintendente de Desenvolvimento e Planejamento Acadêmico FTC - EaD Faculdade de Tecnologia e Ciências - Ensino a Distância Reinaldo de Oliveira Borba Diretor Geral Marcelo Nery Diretor Acadêmico Roberto Frederico Merhy Diretor de Desenvolvimento e Inovações Mário Fraga Diretor Comercial Jean Carlo Nerone Diretor de Tecnologia André Portnoi Diretor Administrativo e Financeiro Ronaldo Costa Gerente Acadêmico Jane Freire Gerente de Ensino Luis Carlos Nogueira Abbehusen Gerente de Suporte Tecnológico Romulo Augusto Merhy Coord. de Softwares e Sistemas Osmane Chaves Coord. de Telecomunicações e Hardware João Jacomel Coord. de Produção de Material Didático MATERIAL DIDÁTICO Produção Acadêmica Produção Técnica Jane Freire Gerente de Ensino Ana Paula Amorim Supervisão Jussiara Gonzaga Coordenação de Curso Sônia Maria Davico Simon Autor(a) João Jacomel Coordenação Carlos Magno Brito Almeida Santos Revisão de Texto Delmara Brito dos Santos Editoração Francisco Júnior e Fábio Gonçalves Ilustrações Equipe Angélica de Fatima Silva Jorge, Alexandre Ribeiro, Cefas Gomes, Cláuder Frederico, Delmara Brito, Diego Aragão, Fábio Gonçalves, Francisco França Júnior, Israel Dantas, Lucas do Vale, Marcio Serafim, Mariucha Silveira Ponte, Tatiana Coutinho e Ruberval Fonseca Imagens Corbis/Image100/Imagemsource copyright FTC EaD Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização prévia, por escrito, da FTC EaD - Faculdade de Tecnologia e Ciências - Educação a Distância.
4 SUMÁRIO O CONTO E O ROMANCE 7 O CONTO 7 A TRADIÇÃO ORAL E A LITERATURA ANGLO-SAXÔNICA 7 PERÍODO MEDIEVAL E CONTOS ARTURIANOS 12 CHAUCER E O DESENVOLVIMENTO DOS CONTOS 15 O CONTO MODERNO 18 ATIVIDADE COMPLEMENTAR 30 O ROMANCE 31 O NASCIMENTO DO ROMANCE 31 A TEORIA DOS ARQUÉTIPOS DE NORTHROP FRYE 36 DESENVOLVIMENTO DO ROMANCE INGLÊS 38 O ROMANCE NORTE AMERICANO 45 ATIVIDADE COMPLEMENTAR 51 A POESIA E O TEATRO 53 A POESIA 53 A POESIA INGLESA: DE SHAKESPEARE AO ROMANTISMO 53 A POESIA NORTE AMERICANA 67 A POESIA BEAT 74 TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS 76 ATIVIDADE COMPLEMENTAR 77
5 SUMÁRIO O TEATRO 79 SHAKESPEARE 79 OSCAR WILDE & BERNARD SHAW 86 O TEATRO NORTE AMERICANO 92 O TEATRO DO ABSURDO 94 ATIVIDADE COMPLEMENTAR 99 GLOSSÁRIO 101 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 102 REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS 105 REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS 106
6 Apresentação da Disciplina Prezados alunos, Bem vindos à nossa nova etapa, desta feita, o estudo das literaturas de expressão inglesa! A nossa disciplina, Literatura em Língua Inglesa, irá tratar de um assunto novo para muitos de vocês, que é produção literária dos países anglófonos. A língua inglesa é, atualmente, a língua materna ou oficial em aproximadamente sessenta países, distribuídos por todos os continentes do nosso planeta. Entretanto, nossos estudos estarão focalizados principalmente em textos de autores provenientes do Reino Unido da Grã Bretanha e Estados Unidos da América, pelo fato de se tratarem de bibliografia mais facilmente encontrada em nosso país. Iniciaremos o módulo abordando o conto como forma literária, desde os seus primórdios até as tendências da contemporaneidade. Em seguida, ainda no mesmo bloco temático, trataremos do romance como forma literária moderna, suas características, e seu desenvolvimento. No segundo bloco temático estudaremos a poesia inglesa e norte americana, bem como as vertentes literárias que influenciaram as diversas gerações de poetas anglófonos. E, last but not least, o teatro será o nosso último tema, cuja abordagem tratará das características do teatro de Shakespeare até o Teatro do Absurdo. Parafraseando Drummond que dizia que amar se aprende amando, chamo atenção para o fato que literatura se aprende lendo. Portanto, apesar de reconhecermos as dificuldades existentes na obtenção do material de leitura, é imprescindível que o aluno, na medida do possível, procure seguir as nossas recomendações de bibliografia e filmografia ao final de cada tema. Agora, mãos à obra! Profa. Mestre Sonia Maria Davico Simon
7 O CONTO E O ROMANCE O CONTO A TRADIÇÃO ORAL E A LITERATURA ANGLO- SAXÔNICA Podemos imaginar, desde os tempos mais remotos, seres humanos reunidos ao fim do dia para uma refeição comunal ao redor do fogo, compartilhando as experiências vivenciadas nas atividades diárias em expedições de caça, coleta de alimentos, encontros fortuitos com outros grupos de humanos e animais selvagens. Essas experiências, narradas ao redor da fogueira e ouvidas pelos demais membros do grupo, deram origem às primeiras narrativas. Esses relatos, modificados através dos tempos nas sucessivas repetições e transmissões orais, passaram a incorporar explicações sobre elementos e fenômenos da natureza até então desconhecidos pelos homens tais como a origem do mundo, dos astros, fenômenos da natureza, animais, plantas, a morte, etc. Através da observação a humanidade imaginou histórias para explicar não somente a origem das coisas como também a sua utilização, o que pode ser apreciado nos relatos que sobreviveram às sociedades primitivas, agrárias. Essas narrativas se configuraram como míticas ou mitológicas e podem ser identificadas nos relatos bíblicos do Velho Testamento, como, por exemplo, o Livro do Gênesis. Outras histórias, como a Odisséia, também se configuram como relatos míticos e narram a história de um povo, ou civilização. Tais relatos constituem-se de longos poemas que contam, geralmente, as aventuras de um personagem principal, um herói, representante das aspirações de uma nação ou etnia, que, em superando obstáculos, consegue galgar uma posição de líder na comunidade representando assim os valores de uma nação. Pensadas deste modo, estas narrativas trazem contribuições profícuas para o entendimento da identidade nacional (leia-se cultural) de um povo. Ressalvamos que há áreas da ciência, mais positivistas, que divergem sobre a viabilidade de recorrer à literatura como fonte para entender a história. Entretanto, podemos questionar até que ponto o olhar pretensamente distanciado do historiador atinge a objetividade desejada, escapando à subjetividade inerente a qualquer ponto de vista. Devemos pensar, ainda, que tipo de registro poderia ser mais elucidativo sobre a Guerra de Tróia do que a Ilíada, ou, ainda, quem poderia trazer maiores revelações sobre a visão de mundo da Alta Idade Média da Inglaterra, além de Chaucer em The Canterbury Tales, ou poderíamos Organização e Gestão das Instituições do Ensino Fundamental 7
8 do mesmo modo imaginar melhor quadro de Dublin do que aquele pintado nos traços marcantes de James Joyce, em seus contos reunidos em Dubliners. PARA LEMBRAR Não devemos esquecer que apesar de todos os textos que serão aqui estudados nos levarem a conhecer um pouco sobre a literatura anglófona e sua cultura (pois literatura é cultura), há diversos textos outros que se perderam entre as conquistas territoriais e culturais e ainda muitos deles foram alterados pela cultura colonizadora. Não podemos desconsiderar, ainda, que, enquanto detentora do direito de preservar os textos antigos, a Igreja muitas vezes domesticou suas traduções e ou adaptações. Todos os fatores supracitados, no entanto, não subtraem dos textos que serão aqui apresentados o seu caráter representativo de uma cultura tão presente em nossa própria cultura brasileira, traduzida como foi por tantos autores e intelectuais no Brasil. Que esta tradução, em seu sentido mais amplo, seja uma justificativa convidativa para esta jornada no mundo anglófono. Beowulf Denominados de épicos, os primeiros relatos anglófonos guardaram narrativas de seus antepassados históricos: os Celtas, Anglo-Saxões, e demais povos estabelecidos na região que hoje chamamos de Grã Bretanha nos primeiros séculos, e suas respectivas culturas, antes mesmo que a língua Beowulf e Grendel inglesa se constituísse como tal. Estes épicos foram escritos sob a forma de poemas que, embora longos, continham elementos que facilitavam a sua memorização, a fim de que pudessem ser repetidos e lembrados através dos tempos. Dos poemas épicos em língua anglo-saxônica, ou Old English (Inglês Arcaico), destacamos Beowulf, manuscrito datado possivelmente do século XII e que se encontra no Museu Britânico. Existente em diversas versões em inglês contemporâneo, os acontecimentos e os personagens de Beowulf são comuns às sagas dos países escandinavos, como, por exemplo, a Dinamarca, o que aponta para a influência cultural e lingüística daquele povo na constituição do país que hoje chamamos de Grã Bretanha. Beowulf é um poema épico, pré-cristão, provavelmente datado do período das invasões Anglo-Saxônicas, embora o manuscrito seja de um período posterior. É uma história anônima, possivelmente composta por um único autor entre os séculos VII e VIII, e, não obstante o narrador se reportar a uma cultura pagã e com valores pagãos, a noção de heroísmo aponta para um ponto de vista cristão, na qual os valores morais e religiosos parecem estar embutidos. Os críticos literários chamam atenção para o fato de que as lutas realizadas por Beowulf prefiguram o antagonismo cristão entre o bem e o mal, e simbolizam a cultura situada ainda na fronteira entre a estabilidade de uma sociedade agrária e a instabilidade e o nomadismo do herói guerreiro. 8 FTC EaD CURSO NORMAL SUPERIOR
9 CURIOSIDADE Os indícios de interferências textuais de origem cristã no poema Beowulf podem ser explicados devido ao fato de a literalidade ter sido privilégio dos monges, responsáveis pela maior parte da transcrição de documentos e textos literários na época. Um dado que corrobora com esta interferência é o fato de ao monstro Grendel ser atribuída a descendência da raça de Caim, personagem bíblico cuja história é marcada pela vilania e traição. O documento com a transcrição do poema Beowulf existente no Museu Britânico data do século XII, embora haja suspeitas que a sua composição remonte a trezentos ou até mesmo quatrocentos anos antes. A história acontece durante o reino de Hrothgar da Dinamarca, cenário constantemente ameaçado por monstros de diversas origens e que são mortos em batalhas heroicamente vencidas por Beowulf. Entretanto, ao final do relato, o herói é atacado por um dragão que lhe fere mortalmente; Beowulf, então, recebe exéquias 1 pagãs e o épico tem o seu final. A saga é escrita em Old English (inglês arcaico, contendo influências decorrentes das inumeráveis invasões dos povos anglo-saxões). Trecho de Beowulf: We have learned of Eormanric s wolfi sh disposition; he held a wide dominion in the realm of the Goths. That was a cruel king. Many a man sat bound in sorrows, anticipating woe, often wishing that his kingdom were overcome. Beowulf e os demais poemas épicos datados do período Anglo-Saxão eram recitados por um scop: bardo itinerante que se deslocava pelos reinos às vezes a serviço de um único monarca relatando fatos, acontecimentos e histórias. Widsith e Outros Textos O poema Widsith, por exemplo, um dos mais antigos manuscritos do período, narra as viagens de um scop chamada Widsith (que significa far journey ) por diversos reinos do mundo germânico. O épico, possivelmente autobiográfico, encontra-se no Book of Exeter, coleção que abriga outros textos, doado à Catedral de Exeter. Outros textos do período chamado Old English Literature são The Battle of Maldon (escrito cerca do ano 1000), poema que trata da luta entre um nobre senhor de Essex e uma invasão viking, e inúmeras transcrições de histórias bíblicas como 1 Exéquias são cerimônias fúnebres. Organização e Gestão das Instituições do Ensino Fundamental 9
10 Judith, Gênesis, Exodus, Daniel, reunidos em quatro manuscritos: MS Cotton Vitellius, que faz parte do acervo do Museu Britânico; The Junius Manuscript que se encontra na biblioteca Bodleian em Oxford; The Book of Exeter que está na Catedral de Exeter; e o Vercelli Book que se encontra na biblioteca da Catedral de Vercelli, sul da Itália. Epopéia SAIBA MAIS Salientamos que embora os textos mencionados tenham sido escritos em versos, estes se inserem na categoria contos por serem narrativas épicas. Tal inserção justifica-se por consistir a epopéia em uma narrativa de feitos grandiosos, o que a aproxima da prosa. Não devemos esquecer que o gênero romance é um desdobramento da epopéia. Em A teoria do romance, Georg Lukács 2, situa a epopéia em um período anterior à modernidade, mais especificamente, na cultura helênica, período propício para o desenvolvimento deste tipo de narrativa, por ser marcado pelo sentimento de familiaridade entre o sujeito e o mundo, sendo este caracterizado pela homogeneidade, a unidade. Com a modernidade, ou seja, com o começo do Novo Mundo, no entanto, há uma quebra desta unidade e, assim, o homem se sente desenraizado e ao sentimento de pertença diante do mundo sobrepõe-se uma sensação de desamparo, uma forte desorientação. Assim, enquanto o Helenismo é um mundo homogêneo, e tampouco a separação entre homem e mundo, entre eu e tu é capaz de perturbar sua homogeneidade. (p. 29), na era moderna predomina o que Lukács chama de desabrigo transcendental. PARA LEMBRAR Trouxemos à baila as considerações feitas sobre a epopéia e o romance não só para justificar a inserção de textos como Beowulf neste módulo sobre contos, mas, sobretudo, para mostrar que a literatura expressa questões de cunho histórico e de identidade não apenas através do conteúdo das histórias narradas, mas até mesmo em sua forma. Afinal, como postula Lukács, a forma da epopéia seria apenas possível em uma era fechada, em que predominava a unidade tão marcadamente representada nas longas estrofes de histórias de bravos heróis. Crônica anglo-saxã Esta obra é considerada a primeira produção escrita dos germânicos e, por ser composta por relatos, é definida por alguns autores como um jornal. A Crônica anglo-saxã é constituída por anotações em inglês arcaico e inglês médio sobre importantes acontecimentos do período do 2 LUKÁCS, Georg. Culturas Fechadas. In: id. A Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades, 2000, p FTC EaD CURSO NORMAL SUPERIOR
11 século IX a 1154, listados conforme a data em que ocorreram, como o trecho destacado ilustra: A.D This year, the twelfth of his reign, Cuthred, king of the West-Saxons, fought at Burford (27) with Ethelbald, king of the Mercians, and put him to fl ight. A.D This year Cuthred, king of the West-Saxons, fought against the Welsh. Crônica e cronicões SAIBA MAIS Na acepção moderna, o termo crônica se refere a um texto que relata um acontecimento prosaico que é narrado com um olhar subjetivo o que já lhe tiraria a objetividade que é pretensamente buscada pela reportagem ora revelando o seu autor como um contador de histórias, ora estimulando nele algo de poético pelo tratamento incomum que atribui às histórias. Em virtude de uma definição imprecisa do que seja a crônica, este tipo de texto, geralmente escrito para jornais ou revistas, é considerado híbrido, conforme Massaud Moisés, podendo ser tanto narrado em forma de alegoria, quanto de resenha, confissão, monólogo, entre outras. Notamos que a definição de crônica supracitada não se aplica à Crônica anglo saxã, já que esta consiste em relatos breves de acontecimentos do período em que foi escrita. Esta obra se insere, na verdade, nos textos qualificados por Massaud Moisés como cronicões, termo que, em português e espanhol é utilizado para se referir a simples e impessoais notações de efemérides 3, em contraste às crônicas, propriamente ditas, que são obras que narravam os acontecimentos com abundância de pormenores e algo de exegese, ou situavam-se numa perspectiva individual da história 4. Em inglês, entretanto, não há diferença de termos entre crônica e cronicões, reunidas sob uma única palavra, chronicle. Ainda no tocante ao termo utilizado para se referir às crônicas, salientamos que, na acepção moderna, em inglês, estas podem ser chamadas commentary, literary column, sketch, light essay, human interest story, town gossip, entre outros. Livro do Juízo Final Na linhagem de textos documentais, é válido mencionarmos uma outra obra, o Livro do Juízo Final, cuja história está atrelada à conquista de território inglês e consolidação do Feudalismo pelo normando, William I (ou Guilherme), o Conquistador. Este livro foi escrito para inventariar as terras que seriam doadas em lotes a senhores que ajudariam William a manter o controle e consolidar a conquista do território. 3 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1999, p Op. cit., p Organização e Gestão das Instituições do Ensino Fundamental 11
12 O que é literatura? PARA REFLETIR A qualificação de textos como o Livro do Juízo Final e Crônica anglosaxã como literatura leva-nos a ponderar sobre o que pode ser considerado texto literário e não literário, uma vez que o conceito de literatura, no senso comum, sempre esteve atrelado à noção de ficção. Conforme Antoine Compagnon, o termo literatura começou a ser utilizado, tal como o utilizamos na contemporaneidade, a partir do século XIX. Antes deste período, esta palavra designava as inscrições, a escritura, a erudição, ou o conhecimento das letras 5, designação que contempla os textos supracitados, Livro do Juízo Final e Crônica anglo-saxã, justificando a sua inserção, naquela época, entre textos literários. PERÍODO MEDIEVAL E CONTOS ARTURIANOS Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda No que pese os primeiros registros da literatura inglesa se encontrarem sob a forma de poemas épicos, a prosa estava presente notadamente nas transcrições das histórias bíblicas e hagiografias, que consistem em biografias e histórias de feitos de um indivíduo que seja considerado santo, abade, mártir, pregador, rei, bispo, virgem, entre outros. O conto como forma literária vai se estabelecer definitivamente no período chamado de Middle English (Inglês Médio), após a conquista Normanda, em A partir da conquista da Inglaterra em 1066 por William I, O Conquistador, a língua falada pelas camadas privilegiadas da sociedade e da corte inglesa era o normando, francês padrão da época. Os nobres normandos que faziam parte da corte na Inglaterra, não raro, possuíam vastas extensões de terra do outro lado do canal da Mancha, o que propiciava uma influência francesa bastante acentuada pelo constante trânsito entre ambas as localidades. No século XII, durante o reinado de Henrique II, têm-se notícias da chegada de trovadores vindos do continente, provavelmente trazidos por sua esposa, Eleanor de Aquitânia. 5 COMPAGNON, Antoine. A literatura. In:. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p FTC EaD CURSO NORMAL SUPERIOR
13 CURIOSIDADE A temática explorada pelos trovadores abrangia histórias do imaginário celta, pagão, tais como as lendas do Rei Artur e as aventuras dos seus fiéis escudeiros, também conhecidos como cavaleiros da Távola Redonda. Muitas das lendas e personagens são oriundos da tradição oral celta como Mordred, Merlin, Guinevere, Tristão, Gawain, e Lear (posteriormente caracterizado como protagonista na tragédia de Shakespeare, Rei Lear). Esses personagens já haviam sido mencionados no relato do escritor inglês George de Monmouth, numa tentativa de escrever a história da Inglaterra. Tornadas populares, essas histórias inauguraram um novo modelo de narrativa, cuja ênfase foi deslocada dos feitos heróicos até então abordados, para novos ideais de sentimento e comportamento, denominado de amor cortês. O Amor Cortês O amor cortês ou fin amors marcou um período na idade média que destacou a mulher numa civilização predominantemente masculina. A época medieval se caracterizou pela instabilidade política causada pelas constantes lutas e guerras travadas entre os senhores de pequenos reinos semi-independentes e que deviam obediência a um rei que lhes era superior. Por outro lado, as Cruzadas exigiam a adesão desses pequenos senhores de terra que, como prova de fé, abandonavam suas propriedades e famílias para lutar a serviço do cristianismo em terras longínquas. Com o afastamento dos senhores, os pequenos feudos passaram a ser governados por suas esposas, alçando a mulher a um novo status, a de governante, senhora de terras. Ao mesmo tempo, a propagação do culto à Virgem Maria, promovida pela Igreja Católica, elevou a mulher a uma posição privilegiada, associada à imagem O Amor Cortês da Virgem Mãe. Anteriormente situada numa situação de submissão, a dama medieval adquiriu poderes de governante, liderando a corte que privilegiou uma nova forma artística. O período do fin amors se distinguiu pelo surgimento de uma nova forma literária, o trovadorismo; entretenimento palaciano que consistia na diversão da corte por trovadores, ou bardos, que, acompanhados por um instrumento musical, relatavam as aventuras de cavaleiros que compunham o acervo de histórias da tradição oral celta. Essas histórias se encontravam sob a forma de versos e entretinham as damas e suas cortes nos longos períodos em que os senhores estavam guerreando. Os trovadores enalteciam a figura feminina representada pela protagonista da história e cantavam o amor entre os sexos como um sentimento elevado. Organização e Gestão das Instituições do Ensino Fundamental 13
14 PARA LEMBRAR Na idade média, o casamento se resumia a uma associação por interesses políticos e/ou pecuniários, em que os sentimentos afetivos não eram levados em consideração. O adultério, se não fora prática comum, também não era de todo extraordinário. É nesse contexto que florescem o amor cortês e os romances de cavalaria. Trovadores Os romances de cavalaria tinham como tema aventuras de cavaleiros que se dispunham a enfrentar toda a sorte de obstáculos a fim de conquistar o coração de uma dama, sem, contudo, se abster da preservação de valores éticos e morais e lealdade ao seu rei ou senhor. CURIOSIDADE Por se tratarem de histórias oriundas da tradição pagã, era costumeiro que o amor carnal fi z esse parte dos antigos enredos, entretanto, devido à influência do cristianismo, no período medieval o resquício de paganismo foi atenuado e deu lugar ao que convencionamos chamar de amor platônico, ou o amor que não se realiza fisicamente. O fato de as damas dos feudos serem cortejadas pelos trovadores também influiu para o apagamento do traço pagão do erotismo, uma vez que o amor cortês se tratava de um sentimento envolvendo pessoas de classes sociais distintas. As senhoras dos feudos eram casadas e encontravam-se em uma posição socialmente superior à dos amados, os poetas, que, colocando-se na condição de vassalos, contentavam-se como servos de sua dama, a serviço do amor, o amor impossível. Essas histórias, ainda transmitidas sob a forma de versos pelos trovadores ou ministreis foram, posteriormente, transcritas e se tornaram populares sob a forma de uma coletânea que se convencionou chamar de Histórias do Ciclo Arturiano por terem como protagonistas os cavaleiros do rei Arthur. Histórias como Excalibur ou A Busca do Santo Graal fazem parte desta coleção que conta ainda com personagens conhecidos como Lancelot, Sir Gawain, a Rainha Guenevere, o Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda, entre outros. Esses relatos transformaram a noção de amor na literatura ocidental e tornaram-se matrizes para outras tantas lendas de amor impossível, como, por exemplo, Tristão e Isolda, fonte de inspiração para a ópera do mesmo nome composta por Richard Wagner à época do romantismo. 14 FTC EaD CURSO NORMAL SUPERIOR
15 CHAUCER E O DESENVOLVIMENTO DOS CONTOS The Canterbury Tales Chaucer É no período chamado de Middle English que vai despontar um dos maiores escritores da língua inglesa, Geoffrey Chaucer. Neste período, a Inglaterra encontrava-se ainda sob a influencia da língua francesa, ou melhor, o normando, francês padrão que predominou na Inglaterra durante aproximadamente os dois séculos de ocupação normanda. De fato, o francês tornou-se o idioma da corte e das classes abastadas da Inglaterra, enquanto que o latim se estabeleceu como a língua oficial para escritos documentais e religiosos, promovendo grandes mudanças lingüísticas no inglês moderno. Chaucer se destacou como um artesão da palavra, e aproveitou seus conhecimentos lingüísticos, especialmente o francês, além do italiano e do latim para enriquecer o léxico inglês através do acréscimo de novos vocábulos oriundos dos idiomas que tinha domínio. Sua contribuição estende-se ainda à inserção de uma perspectiva individual, a do contador de histórias, a partir da qual é possível depreender uma filosofia de vida, embutida nas narrativas. PARA LEMBRAR Em virtude da presença da perspectiva individual, dos contos reunidos em The Canterbury Tales depreendem-se não só imagens que representam a Alta Idade Média, mas, sobretudo, uma visão de mundo. As personagens, através das histórias que contam, revelam o modo de pensar e a cultura da época. A perspectiva individual, o forte traço histórico e a linguagem coloquial configuram The Canterbury Tales como uma literatura que se aproxima muito da literatura moderna. Contos de Cantuária, ou The Canterbury Tales (1386), é, possivelmente, a mais conhecida obra de Geoffrey Chaucer. Reunidos sob a forma de contos (não obstante a sua estrutura em versos, com cerca de linhas), esses relatos elaborados artisticamente preservam o tom da tradição oral. As narrativas revolvem em torno de um grupo de peregrinos que, agrupados em Organização e Gestão das Instituições do Ensino Fundamental 15
16 uma estalagem chamada de Tabard Inn, se dirige à cidade de Cantuária, próxima ao santuário de S. Thomas Beckett. Os relatos apresentados pelas diversas categorias profissionais da época, tais como marinheiro, comerciante, abadessa, frade, entre outros, se constituem em uma crônica social cuja tônica é a ironia. Os Contos de Cantuária conservam o recurso das estórias de moldura, ou seja, todas as histórias encontram-se unidas pelo fato de serem contadas por um narrador para uma platéia, simulando uma situação semelhante à da tradição oral. Por este motivo, estas histórias em versos primorosos foram qualificadas como contos. Mother Goose Também portador da característica da oralidade, embora datado de um período posterior (XVII-XVIII), é o Livro da Mamãe Ganso, ou Mother Goose. Trata-se de um clássico da literatura infantil em países de língua inglesa, notadamente Inglaterra e Estados Unidos. O livro constitui-se em uma coletânea de histórias transcritas da oralidade, muitas das quais fazem parte do livro Histoire ou Contes du Temps Passé escritas na França por Charles Perrault no século XVII e que se tornaram populares até a época atual. O Livro da Mamãe Ganso inclui cantigas e quadrinhas infantis conhecidas como nursery rhymes. O Narrador Até então, os contos se atinham a narrativas de determinados fatos do cotidiano e a transmissão de valores ou de experiências vividas, ou ainda, das fábulas contidas nos denominados contos maravilhosos, de forma a se aproximar das narrativas da oralidade. Walter Benjamin, em O Narrador: Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov 6, enfatiza a importância da troca de experiências nas narrativas de tradição oral, nas quais a palavra do narrador aglutinava e transmitia valores sociais e morais aos ouvintes. No tocante à transmissão de conhecimento, Benjamin identifica duas categorias de narradores, a saber, o marinheiro comerciante, configuração do narrador como alguém que vem de longe 7, detendo, portanto, um saber especial, e o camponês sedentário, que possui um saber adquirido ao longo do tempo, tendo, desse modo, um vasto conhecimento das histórias de seu povo. Ao narrar a experiência sua ou alheia a figura do narrador se confundia com o próprio discurso. A riqueza em sabedoria manifestada nessas narrativas foi se esboroando ao longo do tempo, em especial a partir da guerra mundial, quando o indivíduo passou a se distanciar de valores coletivos, e começou a buscar respostas particulares, isoladas. De um plano de saber coletivo, transmitido pelo contador de histórias tradicional, surgiu, então, a figura do narrador moderno, que perdeu a capacidade de transmitir um saber coletivo, redimensionando esse plano para uma perspectiva cada vez mais individual, a ponto de submergir em um psicologismo, característico em autores como Edgar Poe, considerado como inaugurador do conto moderno. Na pós-modernidade, conforme Silviano Santiago, em O narrador pós-moderno, surge uma outra categoria de narrador, que dá título ao seu texto. Na categoria 6 BENJAMIN, Walter. O Narrador:Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Arte Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, Op. cit., p FTC EaD CURSO NORMAL SUPERIOR
17 de narrador pós-moderno, o narrador é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador 8. Esquivando-se da história narrada e confi g urando-se como um ficcionista puro, uma vez que trabalha no sentido de tornar verossímil uma história que não é sua, mas de outrem. Silviano Santiago ressalva, no entanto, que nenhuma escrita é inocente e, assim, na tentativa de distanciar-se da história narrada, não raro o narrador, ao fazer falar o outro, fala sobre si indiretamente. Saiba mais! Após estas breves considerações sobre o narrador tradicional, moderno e pós-moderno, é válido fazer algumas observações sobre o sentido da palavra conto e o sentido que este gênero textual assume. O conto, vocábulo advindo do verbo contar, tem suas raízes no latim, computare; entretanto, o seu significado não implica, para nós, em apenas relatar ou contar outra vez algo que já aconteceu. O conto é, sobretudo, um ato de criação, invenção; não tem compromisso com a veracidade já que é uma representação. Como forma narrativa, o conto tem como característica a condensação de tempo, espaço e conflito, bem como o número reduzido de personagens, e pode ser, segundo Cortázar, o relato de um acontecimento verdadeiro ou falso, ou ainda uma fábula que se conta às crianças. De fato, o conto é uma forma de narrativa que envolve um acontecimento de interesse humano: sobre nós, para nós, em relação a nós (GOTLIEB, p.11). Podemos afirmar que a construção dessas narrativas acontece de diversas maneiras, e que a sempre presente voz do contador de histórias não se perdeu quando da sua transposição da oralidade para a escrita, cuja voz passou a se apresentar no modo de contar a história e/ou nos detalhes da história, ou ainda, em ambos. Entretanto, não queremos dizer com isto que todo contador de histórias seja necessariamente um contista, mas que as elaborações de gestual e de voz, anteriormente utilizados pelo contador de histórias da tradição oral, foram substituídas, com o advento da escrita, para o objeto estético, o próprio texto. Os recursos criativos utilizados pelo autor resultam em um estilo próprio de narrar, de enunciar detalhes, bem como criam a figura do narrador que é, também, um artifício poderoso nos contos. CURIOSIDADE A mudança do conto ao longo dos séculos deveu-se principalmente à técnica com relação à maneira de narrar, embora a sua estrutura tenha sido mantida. No modelo tradicional, o conflito se desenvolve numa seqüência até o desfecho, enquanto que na narrativa moderna o modelo é fragmentado (GOTLIB,2004, p.29). Dentre os autores modernos que se destacaram pela utilização de recursos que simulam uma situação de oralidade, citamos o inglês, Rudyard Kipling, em The Elephant s Child. A tradição oral encontra-se manifesta no conto (vide site recomendado) através da escolha do tema - neste conto de Kipling, a temática diz respeito ao folclore da Índia - transmite uma moral, e a narrati- 8 SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In:. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 45. Organização e Gestão das Instituições do Ensino Fundamental 17
18 va segue o modelo tradicional em que os acontecimentos ocorrem numa seqüência, com início (apresentação), meio (conflito) e fim (desfecho). Apesar da presente apreciação por autores e leitores de contos que seguem o modelo tradicional de narrativa, é notória a transformação desta forma literária, ao longo do tempo, de um relato fundamentalmente moralizante para uma narrativa elaborada, cujo enredo contempla o psicológico ou o fantástico. O CONTO MODERNO A Teoria do Conto A idade contemporânea problematiza o conto como gênero literário e divide os críticos entre aqueles que admitem e os que não admitem uma teoria do conto. Vários estudiosos têm se dedicado a definir, estabelecer regras, e esclarecer as múltiplas tendências dos contos. Citamos, a título de ilustração, algumas afirmativas de alguns autores a esse respeito 9 : - o escritor brasileiro Mário de Andrade dizia que sempre será conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto; - Machado de Assis expressou a dificuldade em se estabelecer a definição do conto quando, em 1873, disse: É gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade... e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor; - Julio Cortazar afirma que se não tivermos uma idéia viva do que é o conto, teremos perdido tempo, porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência. Só com imagens se pode transmitir essa alquimia secreta que explica a profunda ressonância que um grande conto tem em nós, e que explica também por que há tão poucos contos verdadeiramente grandes. O Decálogo do Perfeito Contista Em 1927, o autor uruguaio Horácio Quiroga escreveu o Decálogo do perfeito contista, numa tentativa de estabelecer normas, ou mandamentos, para a escrita do conto. São eles: I. Crê num mestre _ Poe, Maupassant, Kipling, Tchekov _ como na própria divindade. II. Crê que tua arte é um cume inacessível. Não sonhes dominá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem que tu mesmo o saibas. III. Resiste quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito forte. Mais do que qualquer 9 Apud GOTLIEB, Nádia B. Teoria do Conto. Série Princípios. São Paulo: Ática, p. 9 e FTC EaD CURSO NORMAL SUPERIOR
19 coisa, o desenvolvimento da personalidade é uma longa paciência. IV. Nutre uma fé cega não na tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como amas tua amada, dando-lhe todo o coração. V. Não começa a escrever sem saber, desde a primeira palavra, aonde vais. Num conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas. VI. Se queres expressar com exatidão essa circunstância _ Desde o rio soprava um vento frio _ não há na língua dos homens mais palavras do que estas para expressa-la. Uma vez senhor de tuas palavras, não te preocupes em avaliar se são consoantes ou dissonantes. VII. Não adjetives sem necessidade, pois serão inúteis as rendas coloridas que venhas pendurar num substantivo débil. Se dizes o que é preciso, o substantivo, sozinho, terá uma cor incomparável. Mas é preciso acha-lo. VIII. Toma teus personagens pela mão e leva-os fi rmemente até o fi nal, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distraias vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abuses do leitor. Um conto é uma novela depurada de excessos. Considera isso uma verdade absoluta, ainda que não o seja. IX. Não escrevas sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, à metade do caminho. X. Ao escrever, não penses em teus amigos, nem na impressão que tua história causará. Conta, como se teu relato não tivesse interesse senão para o pequeno mundo de teus personagens e como se tu fosses um deles, pois somente assim obtém-se a vida num conto. A maior parte dos ensaios que têm como objetivo a definição do conto se fundamentam na noção de brevidade desta forma narrativa. Todavia o conto parece resistir às restrições impostas pelas categorizações. O conto é uma narrativa fi ccional, de reduzidos limites em relação ao romance e à novela, umas vezes de teor anedótico (Maupassant), outras vezes de teor espectral (Poe), ora intimista e nutrido de silêncios (Tchekhov), ora de narração objetiva e perversa (Faulkner), e não raro de conteúdo impressionista à maneira de Proust, ou com a aura poemática de Katharine Mansfi eld. Pode ter meia página ou 30 mil palavras, como em Henry James. 10 A Questão da Brevidade A afirmação de Hélio Pólvora incide sobre a questão da brevidade que insiste em caracterizar os contos. Entretanto, é sabido que este não é o único critério para a classificação de uma narrativa literária com conto. Henry James ( ) escreveu contos longos, acima de vinte mil palavras e que ele próprio chamava de the beautiful and best nouvelle. Sabemos da existência de contos de 50 páginas como, por exemplo, As Neves de Kilimanjaro do autor americano Ernest Hemingway ou de apenas um parágrafo, como o da escritora indiana Suniti Namjoshi: Case History by Suniti Namjoshi 11 After the event Little R. traumatized. Wolf not slain. Forester is wolf. How else was he there exactly on time? Explains this to mother. Mother not happy. Thinks that the forester is extremely nice. Grandmother dead. 10 PÓLVORA, Hélio. Itinerários do Conto.Interfaces críticas e teóricas da moderna short story.ilhéus: Editus, p. 15, NAMJOSHI, Suniti( ). In Feminist Fables, Escritora indiana, é professora do Depto. De Inglês na Universidade de Toronto. Organização e Gestão das Instituições do Ensino Fundamental 19
20 Wolf not dead. Wolf marries mother. R. not happy. R. is a kid. Mother thinks wolf is extremely nice. Please to see shrink. Shrink will make it clear that wolves on the whole are extremely nice. R. gets it straight. Okay to be wolf. Mama is a wolf. She is a wolf. Shrink is a wolf. Mama and shrink, and forester also, extremely uptight. 12 O autor chama a atenção para o fato de que mais importante que a extensão será o insight, aquele mergulho existencial. 13 A história acima é uma releitura, irônica, do tradicional conto Chapeuzinho Vermelho, em que a personagem principal, Chapeuzinho Vermelho, é, também, a narradora que questiona o comportamento da mãe. A narrativa é breve, fragmentada, cifrada, e deixa que o leitor manifeste um julgamento moral através do diálogo estabelecido entre o texto novo e a história tradicional, de conhecimento prévio do leitor. O Leitor Segundo Harold Bloom 14, os contos favorecem uma postura ativa do leitor, que é levado a trazer as respostas e explicações que o autor evita; they compel the reader to be active and to discern explanations that the writer avoids 15. Diferentemente dos romances, o leitor participa nos contos, inferindo sobre o que não está explicito, valendo-se, para tanto, das pistas oferecidas pelos escritores. A maior parte dos contistas evita um julgamento moral deixando que os leitores decidam sobre a sua relevância ou não. CURIOSIDADE Uma vez perguntaram ao escritor americano, Edgar Allan Poe como se ler um conto? e ele respondeu: em uma sentada... Poderíamos interpretar a resposta, como mais uma reiteração da obrigatoriedade da brevidade do conto. Entretanto, o que Poe se referia era a capacidade da obra literária em seqüestrar o leitor de forma a não querer parar de ler a história até o seu desfecho, em uma só sentada. A qualidade do conto está diretamente relacionada à sua capacidade de provocar no leitor um arrebatamento que não o faça abandonar a leitura até chegar ao seu final. Pressupõe-se, portanto, uma relação entre a tensão e a extensão do conto, uma vez que, o autor necessita não cansar o leitor com uma leitura longa e, ao mesmo tempo, mantê-lo interessado no texto. É, portanto, no efeito (singular) que o conto causa ao leitor que Poe vai estabelecer a diferença entre romance e conto, afirmando que no conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora da leitura atenta, a alma do leitor está sob o controle do escritor. Não há nenhuma infl uência externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção 16. De acordo com Poe, o conto é o resultado de um trabalho consciente do autor, e do seu controle sobre o material que pretende narrar, ten- 12 NAMJOSHI, Suniti. Case History - Three Feminist Fables. In Wayward Girls & Wicked Women.CARTER, Angela, editor. New York: Penguin Books, p PÓLVORA, Hélio.Op.cit. loc. cit. 14 BLOOM, Harold. How to read and why. New York: Touchstone, 2000.p SIMON, Sonia. Tradução livre. eles (os contos) compelem o leitor a se tornar ativo e buscar explicações evitadas pelos escritores. BLOOM, Harold. Op.cit. Loc. cit. 16 POE, Edgar A. Apud GOTLIEB, Nádia B. Op. Cit. p FTC EaD CURSO NORMAL SUPERIOR
21 do sido concebido desde o início com o intuito de causar um efeito singular. Segundo Nádia Gotlib, trata-se de conseguir, com o mínimo de meios, o máximo de efeitos 17. Edgar Allan Poe Edgar Allan Poe ( ) é considerado um mestre desta forma narrativa e escreveu contos portadores de um forte conteúdo simbólico. Sua obra influenciou escritores do século XX, na Europa e nos Estados Unidos, que iniciaram o movimento conhecido como modernismo. Os contos de Poe possibilitam uma investigação psicológica dos seus personagens. A psicologia e o simbolismo são traços que renderam a Poe o título de pai do conto moderno. Seus contos narram histórias de horror, morte, vingança, ruína, em cenários variados; as histórias dizem respeito a conflitos psicológicos e os seus personagens geralmente se encontram em estágios mentais limítrofes da loucura. Saiba mais! Edgar Allan Poe é considerado o pioneiro das histórias de detetive e de terror, seus contos remetem o leitor a uma atmosfera de terror e medo e tornaram-se referências neste tipo literatura. Tomemos como exemplo o início do conto The Black Cat datado de 1843, em que o narrador diz: The black cat FOR the most wild, yet most homely narrative which I am about to pen, I neither expect nor solicit belief. Mad indeed would I be to expect it, in a case where my very senses reject their own evidence. Yet, mad am I not --and very surely do I not dream. But to-morrow I die, and to-day I would unburthen my soul. ( ) In their consequences, these events have terrifi ed --have tortured --have destroyed me. Yet I will not attempt to expound them. To me, they have presented little but Horror --to many they will seem less terrible than baroques. Desde o primeiro parágrafo, o leitor é introduzido em uma atmosfera de morte: to-morrow I die... e loucura: Mad indeed would I be to expect it Os temas de morte e loucura, recorrentes nos contos e poemas de Edgar Allan Poe, fi z eram parte também de sua vida pessoal, marcada por perdas familiares e abuso de substâncias tóxicas como o álcool e que resultaram no seu trágico desaparecimento precoce. 17 GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do Conto. Série Princípios. São Paulo: Ática, 2004, p. 35 Organização e Gestão das Instituições do Ensino Fundamental 21
22 PARA REFLETIR A presença deste traço biográfico na obra de Poe reverbera para a discussão sempre presente nos estudos literários sobre a pertinência de estudar a biografia do autor para entender a sua obra. De um lado temos o historicismo, que realiza um estudo do pano de fundo da obra (contexto histórico e biografia do autor), de outro lado, temos os estudos de base estruturalista, que defendem uma outra leitura, privilegiando a análise do texto em sua imanência, ou seja, em sua estrutura, desconsiderando qualquer coisa que não seja a linguagem. Antoine Compagnon postula a conjugação destas duas vertentes, pois, conforme este demônio da teoria, ainda uma vez, trata-se de sair desta falsa alternativa: o texto ou o autor. Por conseguinte, nenhum método exclusivo é sufi ciente 18. Poe foi o pioneiro na escrita de histórias de crime em que o detetive utiliza o raciocínio para a elucidação dos assassinatos, diferentemente das histórias tradicionais em que os investigadores se limitam a seguir as pistas deixadas pelos criminosos sem, contudo, se deter, por exemplo, na análise dos dados e do estudo da patologia do criminoso. Este procedimento cria um envolvimento lúdico com o leitor que participa na decifração de códigos que levarão à descoberta do autor do crime. Em Os assassinatos da Rua Morgue, conto inaugural deste gênero narrativo, o personagem principal é um detetive, Monsieur Dupin, cuja perspicácia na investigação dos crimes o consagrou na tradição posteriormente seguida por outros escritores de língua inglesa como, Arthur Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, e Agatha Christie, criadora do Monsieur Poirot e Miss Marple. Edgar A. Poe dividiu seus contos em duas categorias: Arabesque e Grotesque. Denominou Arabesque a narrativa predominantemente em prosa, em que o estado psicológico dos personagens encontra-se no limite da sanidade, ou em situação física e/ou mental de agonia a ponto de estarem sempre prontas a se entregarem à morte de forma prazerosa. A categoria descrita como Grotesque se refere à prosa que remete a um poema. A morte está sempre presente na obra de Poe e as heroínas de seus contos e poesias são mulheres que já faleceram ou que encontram a morte durante a narrativa. Poe também se destacou como poeta e ensaísta; o seu poema The Raven (O Corvo) e o ensaio The Philosophy of Composition são obras referenciais em suas respectivas áreas. Em The Philosophy of Composition, Poe retoma algumas observações sobre o conto e defende o seu ponto de vista acerca da totalidade de efeito ou unidade de impressão que se consegue ao ler o texto de uma só vez COMPAGNON, Antoine. O Autor. In:. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p GOTLIB, N. Op. Cit. p. 35. The Raven 22 FTC EaD CURSO NORMAL SUPERIOR
23 Saiba mais! Para Poe, o processo de criação literária é consciente e intencional. Ele trabalha com o intuito de causar um efeito no leitor, e todas as suas escolhas são feitas com o objetivo de conseguir esse efeito. Nesse sentido ele não compartilha da crença na inspiração, mas defende que o escritor parte de uma proposta de construção de um conto, baseado em um acontecimento que cause este efeito, predeterminado e singular, sobre o leitor. Cortazar resume o conceito de conto em Poe dizendo que um conto é uma verdadeira máquina literária de criar interesse e amplia esta noção identificando o acontecimento como fundamental para despertar e manter o interesse do leitor. Flâmeur As contribuições de Poe estendem-se, ainda, à configuração do fl âneur, que influenciou autores como Baudelaire. Segundo Walter Benjamin, o fl âneur é o sujeito que se entrega à multidão dos grandes centros urbanos, contemplando a transitoriedade da vida na cidade. Um conto exemplar que traz a figura do fl âneur e ilustra este elogio às multidões é O homem da multidão. Este conto traz a história de uma personagem, o narrador, que, encontrando-se no Café D., observa a multidão. Atendo-se, inicialmente à visão da grande massa indistinta que caracteriza o cenário observado, o narrador, progressivamente, é levado a particularizar os grupos de transeuntes que passam em sua frente. Cada grupo, contudo, não escapa à massificação imposta pelos grandes centros e logo a personagem passa a qualificar os transeuntes em tipos, quais sejam, the tribe of clerks ( a casta dos empregados ), the upper clerks of staunch fi r ms ( a dos empregados de maior categoria de antigas firmas sólidas ), the race of swell pick-pockets ( a raça dos batedores de carteiras fantasiados de peraltas ), entre outros. As pessoas eram, assim, qualificadas conforme o seu tipo, como ilustra o trecho abaixo sobre a caracterização dos jogadores (gamblers): The gamblers, of whom I described not a few, were still more easily recognizable. They wore every variety of dress, from that of the desperate thimble-rig bully, with velvet waistcoat, fancy neckerchief, gilt chains, and fi ligreed buttons, to that of the scrupulously inornate clergyman than which nothing could be less liable to suspicion. Still all were distinguished by a certain sodden swarthiness of complexion, a fi lmy dimness of eye, and pallor and compression of lip. There were two other traits, moreover, by which I could always detect them; -- a guarded lowness Organização e Gestão das Instituições do Ensino Fundamental 23
24 of tone in conversation, and a more than ordinary extension of the thumb in a direction at right angles with the fi ngers. -- Very often, in company with these sharpers, I observed an order of men somewhat different in habits, but still birds of a kindred feather. They may be defi ned as the gentlemen who live by their wits. They seem to prey upon the public in two battalions -- that of the dandies and that of the military men. Of the fi rst grade the leading features are long locks and smiles; of the second frogged coats and frowns 20. Divertindo-se ao reconhecer cada tipo que por ele transita, repentinamente, o seu olhar passa para um plano mais individual. É o momento em que narrador se depara com um sujeito que escapa a qualquer classificação. Este homem é um decrepit old man, some sixty-fi ve or seventy years of age ( um velho decrépito, de uns sessenta e cinco ou setenta anos de idade 21 ). Em meio àquela multidão, a aparência estranha daquele homem lhe chama a atenção a ponto de sair em meio a multidão perseguindo-o. Nesta trajetória, tem a impressão de estar acompanhando em vão aquele velho que, concluindo ser o tipo e o gênio do crime profundo, desiste de persegui-lo, pois como já traduzira um certo livro alemão, citado no começo da história, talvez ele seja um caso que não deve ser lido. Para refletir É interessante ponderarmos que apesar de haver uma ênfase sobre o caráter fantástico das Histórias extraordinárias de Poe, elas não deixam de registrar marcas do contexto histórico e social no qual o escritor viveu. A configuração de um cenário tal como o descrito no conto, a caracterização das personagens e a apresentação de tipos sociais da cidade moderna oferecem uma visão em nada superficial do que seria a sociedade da época. Além de Poe, a literatura anglófona conta com uma gama de escritores que se destacaram na escolha do conto como forma literária: Henry James, James Joyce, D.H. Lawrence, Ernest Hemingway, Eudora Welty, Flannery O Connor, Virginia Woolf, Katherine Mansfield, William Faulkner, Scott Fitzgerald, e muitos outros. Enquanto Poe considerava fundamental o efeito causado pelo conto, outros estudiosos o definem como a representação de um momento especial ou de crise. Discute-se, porém, se o momento especial seria o da leitura, o do acontecimento, ou ainda aquele vivido pelo narrador. Ainda há críticos que consideram que o conto representa justamente a falta de crise. De acordo com Gotlib, o importante é que o conto representa, de forma especial, algo que faz parte da vida. James Joyce & Epifania Dentre os autores que se distinguiram por retratarem momentos especiais James Joyce ocupa um lugar de destaque pela sua concepção de epifania. 20 POE, Edgar Allan. The man of the crowd. Disponível: modeng&data=/texts/english/modeng/parsed&tag=public&part=1&division=div1. Acesso: 31 jan POE, Edgar Allan. O homem da multidão. In:. Ficção completa, poesia e ensaios. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p FTC EaD CURSO NORMAL SUPERIOR
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