Celso Halperin** Lisiane Milman Cervo** Caroline Milman*** Astrid Ribeiro**** Eliane Nogueira**** Ester Litvin****
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- Bruno Veiga Marroquim
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1 Celso Halperin et al. Celso Halperin** Lisiane Milman Cervo** Caroline Milman*** Astrid Ribeiro**** Eliane Nogueira**** Ester Litvin**** O trabalho busca uma conexão entre a visão da bissexualidade na obra de Freud (em que o destaque é dado ao papel da repressão) e dos Elementos Masculinos e Femininos puros na obra de Winnicott (cujo alicerce está na dissociação). Em Winnicott, há um desenvolvimento da idéia da bissexualidade, para além da questão do gênero, atribuindo-lhe um novo sentido: o Elemento Feminino, vinculado à experiência de SER, e o Elemento Masculino, base para o FAZER. A partir desses referenciais, os autores procuram compreender esse modelo de pensamento adotado por Winnicott, em que haveria um estado psíquico de SER prévio à pulsão o que questiona um dos paradigmas da psicanálise: o primado das pulsões. Bissexualidade. Ser. Fazer. Todo mundo é bissexual, no sentido da capacidade de se identificar com o homem e a mulher [...] Acho que o estudo da identificação do homem com a mulher tem * Trabalho apresentado no XV Encuentro Latino-americano sobre el Pensamiento de D. Winnicott. Buenos Aires: APA, ** Membros Associados da SBPdePA e Coordenadores do Grupo Espaço Potencial. *** Membro Associado da SBPdePA e participante do Grupo Espaço Potencial. **** Membros do Instituto de Psicanálise da SBPdePA e participantes do Grupo Espaço Potencial.
2 sido muito complicado por uma tentativa insistente por parte dos psicanalistas em chamar de homossexualidade tudo o que não é masculino num homem... (Winnicott, 1966b, p Se houver algo que eu faça que não seja freudiano, gostaria de sabê-lo. (Winnicott, 1967, p. 437). Para nos agregarmos às comemorações dos 150 anos do nascimento de Freud, nos propomos a fazer uma conexão com os 110 anos do nascimento de Winnicott. Pensar nas tantas conexões da obra de Freud e de Winnicott seria uma tarefa exaustiva, dada sua abrangência; assim, devido à coincidência do ano do nascimento de Winnicott com a abordagem inaugural da bissexualidade na correspondência de Freud, elegemos esse tema em Freud e nos propomos a examinar sua possível relação com as reflexões de Winnicott sobre os elementos femininos e masculinos puros, que estão apresentados em seu artigo sobre A Criatividade e suas Origens. Também nos motivamos a explorar esse tema em Winnicott porque os conceitos enfocados, ainda que tenham uma fascinante aplicação na clínica e na cultura, não circulam tanto no meio psicanalítico, tal como os conceitos dos fenômenos transicionais ou do verdadeiro/falso self. O importante papel da sexualidade como agente estruturante mas que, ao mesmo tempo, pode ser desorganizador da mente humana foi uma descoberta fundamental da ciência, que devemos ao fundador da psicanálise. O que Freud foi desenvolvendo ao longo de sua obra baseia-se invariavelmente na força pulsional, base do sujeito. Sem exatamente contrapor Freud, mas agregando um novo pensamento sobre a formação original do sujeito, surgiu Winnicott como uma das mais destacadas figuras da psicanálise pós-freudiana, dedicando-se principalmente ao estudo da natureza das relações humanas, em particular as da mãe e filho. Winnicott passou a abordar os elementos femininos e masculinos puros, atribuindo-lhes um novo sentido: o feminino ligado ao estado inicial, fusional com a mãe (SER), e o masculino ligado ao instinto, que emerge do potencial agressivo
3 aliado ao potencial erótico (FAZER). O feminino e o masculino começam, para Freud e Winnicott, a tomar dimensões diferentes, mas igualmente fundamentais em suas teorias (Rubinstein,1994). Celso Halperin et al. Em 6 de dezembro de 1896 (ano do nascimento de Winnicott), Freud escreveu a Fliess a conhecida carta 52 (1896). Da longa carta, contendo seu esboço de aparelho psíquico e idéias sobre a origem sexual das psiconeuroses, uma parte se destacava no que tange ao tema da bissexualidade. Observa-se aqui que a palavra bissexualidade apareceu pela primeira vez numa carta a Fliess. Interessante pensar que a forma como se desenvolveu esse conceito figura como um dos motivos de rompimento entre Freud e Fliess, antecipando as polêmicas futuras sobre tal assunto. Freud, em Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade (1905), definiu a sexualidade como polarizada na escolha entre homo e heterosexualidade sendo que a homossexualidade derivaria da existência, em todo o ser humano, de uma bissexualidade originária (em sua descrição sobre Desvios com Respeito ao Objeto Sexual ). Trouxe, então, de sua discussão fecunda com Fliess, o termo bissexualidade, e o utilizou como disposição universal e não como fator de desvio sexual, tornando-o um novo conceito de realidade psíquica constitutiva dos seres humanos. Freud fez da bissexualidade psíquica um aspecto fundamental para o desenvolvimento psicossexual e o estabelecimento da repressão, distanciando-se definitivamente de Fliess, passando a interessar-se pela maneira como cada ser sexuado reprimia ou não os caracteres do outro sexo. Foi em Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908) que Freud mais se aproximou, no tema da bissexualidade, de seu estilo de conceitualizar suas descobertas: partindo da patologia (histeria), chegou a uma origem comum entre doença e saúde (bissexualidade) e pôde achar o ponto nuclear dos humanos onde se dá a disposição a esta patologia. Ele descreveu que um sintoma histérico é a expressão, por um lado, de
4 uma fantasia masculina; por outro, de uma feminina, ambas sexuais e inconscientes. Percebeu que todas as pessoas passaram pela experiência de sentir os dois sexos atuando enquanto fantasia no ego onipotente, e somente a partir do fenômeno da repressão é que se estabelece a escolha de um dos lados constitutivos da pulsão. Nas notas adicionais aos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905/1915), Freud falou sobre masculino x feminino e passivo x ativo, e que não há possibilidade, do ponto de vista psíquico nem biológico, de indivíduos puramente femininos ou masculinos. Há uma mescla de feminino e masculino, ativo e passivo em todo ser humano. Em Além do Princípio do Prazer (FREUD, 1920), mudou o rumo do dualismo inicialmente proposto (pulsões sexuais e pulsões do ego) e trouxe à luz uma nova definição de pulsão, concebida agora como uma força que tende à restituição de um estado anterior, incluindo a própria força de vida ( pulsão de morte x pulsão de vida ). Em seu artigo O Ego e o Id Freud retomou com vigor o tema da bissexualidade, quando introduziu o conceito de superego como herdeiro do complexo edípico e teve de dar conta de uma escolha sexual e do material reprimido. A respeito desta constitucionalidade sexual e de seus caminhos até o Édipo, Freud (1923, p.47), disse: O desenlace do complexo de Édipo numa identificação com o pai ou com a mãe parece, pois, depender em ambos os sexos de uma energia relativa das duas disposições sexuais. Esta é uma das formas nas quais a bissexualidade intervém nos destinos do complexo edípico. Destacou ainda que o complexo completo, positivo e negativo, depende da bissexualidade originária do sujeito infantil (FREUD, 1923, p. 47). Comentou que as identificações primitivas, desde o início ambivalentes para com o objeto, dependem exclusivamente da bissexualidade e nela estão intrincadas. Freud percorreu um longo caminho e mudou muitas vezes de posição,
5 numa tentativa de demonstrar a universalidade de suas descobertas, evidenciando uma de suas mais ferrenhas características como cientista. Entre 1897 e 1937, fez inúmeras mudanças em seu conceito ou como entendia o direcionamento da bissexualidade em cada um dos sexos. Em Análise Terminável e Interminável (FREUD, 1937), voltou à sua idéia de que ambos os sexos reprimiam o que dizia respeito ao sexo oposto: a inveja do pênis na mulher e o rechaço ao feminino no homem (Roudinesco e Plon, 1997). Celso Halperin et al. No artigo intitulado Os Elementos Masculinos e Femininos Expelidos encontrados em Homens e Mulheres (1966a), Winnicott trouxe suas reflexões sobre o conceito psicanalítico de bissexualidade e também de como é constituída essa bissexualidade. Através de uma vinheta, Winnicott nos convidou a compartilhar uma experiência clínica: tratava-se da análise de um homem de meia idade, bem-sucedido na área profissional e familiar, que buscou uma re-análise por outros motivos nada relacionados a alguma questão homossexual. O paciente, que já se submetera a vários tratamentos anteriores, faz um comentário sobre a inveja do pênis, provocando a seguinte intervenção de Winnicott (1966a, p.105): Estou ouvindo uma moça. Sei perfeitamente bem que você é homem, mas estou ouvindo e falando com uma moça. Estou dizendo a ela: Você está falando sobre a inveja do pênis. Através da contratransferência, Winnicott (1966a, p. 105) escutou a fala do paciente homem como sendo a de uma mulher. Após uma pausa, o paciente disse: Se eu falasse a alguém sobre essa moça, seria chamado de louco. Ao que Winnicott respondeu: Não é que você tenha contado isso a alguém; sou eu que vejo a moça e ouço uma moça falar, quando, na realidade, em meu divã acha-se um homem. O louco sou eu. Por meio de sua contratransferência, Winnicott descobriu que, embora seu paciente se sentisse homem, e nunca duvidara que o fosse, tinha provavelmente sido visto como uma menina por sua mãe em estágios primitivos
6 da sua vida. Foi isso que se repetiu na transferência, foi por isso que Winnicott (como a mãe) escutou uma mulher. Mais do que isso: a loucura da mãe que via uma menina onde existia um menino foi trazida diretamente ao paciente através da afirmativa de Winnicott (1966a, p. 106): sou eu que estou louco. Esse caso fez Winnicott perceber que, até então, nunca tinha aceitado integralmente a dissociação completa entre o homem (ou a mulher) e o aspecto da personalidade que tem o sexo oposto. Nesse caso específico, a defesa de dissociação abria caminho à aceitação da bissexualidade como qualidade do self total. Podemos entender que o Elemento Feminino Puro, dissociado e expelido, encontrou uma unidade com o analista e isso deu ao paciente a sensação de que começara a viver. Em outras palavras: o elemento feminino puro do paciente (provavelmente cultivado e hipertrofiado pela mãe) foi dissociado e expelido pelo paciente no analista, que sentiu na loucura uma identidade com tais elementos. Essa dinâmica deu ao paciente, finalmente, a sensação de uma vida própria. Com essa experiência, Winnicott pensou que, em muitos casos, a dissociação e não a repressão ilustra a relação entre elementos masculinos e femininos em homens e mulheres. E chamou a atenção para várias situações: uma pessoa pode ter o elemento de outro sexo completamente expelido, de maneira que um homem, por exemplo, pode não ser capaz de entrar em contato, de estabelecer vínculo algum com a parte expelida, ou seja, a parte não integrada que é colocada no outro; a parte do sexo expelida da personalidade tende a permanecer sempre na mesma idade. Um exemplo disto seria um homem (ou mulher) que depende de meninas (ou meninos) bem mais jovens para manter vivo seu eu (self) feminino expelido. Mesmo que se casem com essas mulheres, e vivam até a velhice, essas moças nunca atingirão a maturidade, pois, como tudo aquilo que é dissociado do self, não há o registro da passagem do tempo; outra situação seria a de homens (e também a de mulheres) que se
7 especializam em iniciar meninas (ou meninos) na experiência sexual. Esse homem (ou mulher) pode ser alguém que se sinta mais identificado com a menina do que consigo mesmo, o que lhe concede a capacidade de ir até o fim para despertar o sexo da menina e satisfazê-la. Para isso, ele precisa renunciar e obter apenas uma pequena satisfação masculina. Diz Winnicott (1966a, p. 111): Celso Halperin et al. Poderia se pensar que, no extremo patriarcal de nossa sociedade, a relação é o estupro; e, no outro extremo, o matriarcal (o homem com elemento feminino expelido), que tem de satisfazer muitas mulheres é valorizado, mesmo que assim procedendo se aniquile a si mesmo? Entre esses dois extremos encontra-se a bissexualidade. Winnicott chama a atenção para a existência desse Elemento Feminino Puro expelido que impede, na realidade, a prática homossexual. No exemplo do paciente descrito anteriormente, a prática da homossexualidade estabeleceria muito mais a busca dos elementos masculinos do que dos femininos expelidos. Enfim, parece ser necessário admitir a existência de elementos masculinos e femininos em homens e mulheres, ainda que, muitas vezes, esses elementos possam estar dissociados e expelidos uns dos outros em alto grau. Até aqui discutimos a questão da bissexualidade (masculino x feminino), no que tange a alguns aspectos do gênero, tanto em Freud como em Winnicott. A partir de então, Winnicott inovou o pensar psicanalítico ao introduzir os conceitos de Elementos Femininos Puros e Elementos Masculinos Puros, relacionando-os com o desenvolvimento emocional primitivo. Cabe agora compreender o que Winnicott denomina elementos masculinos e femininos puros: O Elemento Feminino Puro tem suas raízes em uma experiência fusional primitiva com a mãe. Um período em que ainda não há, do ponto de vista do bebê, uma diferença entre ele próprio e a mãe. O bebê e a mãe são uma unidade, não apenas sentindo-se como uma unidade, mas sendo
8 uma unidade. Há uma identidade entre o objeto e o sujeito (WINNICOTT, 1969). O objeto é o sujeito. Essa identidade, que precede a idéia de estarem-união-com é a base do sentimento de Ser. Essa identidade primária, implícita no Elemento Feminino Puro, alicerce para o Ser, pode se constituir desde muito cedo, inclusive desde o nascimento. É a partir do Ser que se dá a origem dos processos de identificação que conduzem à diferenciação entre o Eu e o Não-Eu. Em contraste com o Elemento Feminino que pressupõe a idéia de unidade, o Elemento Masculino pressupõe uma separação do objeto. Isso implica a necessidade de que já haja uma mínima estruturação egóica para que seja possível discriminar sujeito e objeto, ou seja, para que o objeto possa ser reconhecido como distinto do Eu. A satisfação dos impulsos, de qualquer natureza, acentua a separação do objeto em relação ao bebê e conduz à objetivação do objeto (WINNICOTT, 1966a, p. 115). O que interessa fundamentalmente a Winnicott é o estabelecimento da capacidade de SER, como base para que o FAZER possa ter um sentido pleno para o indivíduo. Para desenvolver essas idéias, a de Ser e de Fazer, Winnicott utiliza arbitrariamente as denominações de Elemento Feminino para o Ser, e de Elemento Masculino para o Fazer da mesma forma que Freud elege o ativo e passivo para se referir à sexualidade do homem e da mulher. Ainda que os elementos masculinos e femininos, em homens e mulheres, sejam, na realidade, mesclados, Winnicott os destila artificialmente, apresentando-os como puros para desenvolver sua teoria. Em termos de Elemento Masculino, a relação com o objeto transita apoiada no instinto (ativo ou passivo), diferente do que ocorre em termos do Elemento Feminino Puro, em que ainda não teria lugar para o impulso instintivo. Para Winnicott, a Psicanálise talvez tenha concedido atenção especial a esse Elemento Masculino ou a aspectos impulsivos da relação de objeto, e negligenciado, contudo, a identidade sujeito/objeto, base da capacidade de Ser. O Elemento Masculino Faz, ao passo que o Elemento Feminino (em homens e mulheres) É.
9 Diz Winnicott (1966a, p. 120): Após SER-FAZER, e deixar-se fazer. Mas SER, antes de tudo. A importância do fator ambiental é crucial, pois é fundamental que a mãe se apresente, ou apresente um seio que É, para que o bebê também possa ser, quando o bebê e a mãe ainda não estão separados na mente rudimentar do bebê. Se a mãe não for capaz de dar essa contribuição, o bebê tem de se desenvolver sem a capacidade de Ser, ou pelo menos com a capacidade de Ser mutilada. Para WINNICOTT (1966a, p. 117), O Estudo do Elemento Feminino, puro, destilado e não-contaminado, nos conduz ao Ser, base para o sentimento de existir. [...] Quando o Elemento Feminino no bebê (ou paciente) masculino ou feminino encontra o seio, é o Eu (self) que foi encontrado. É evidente que, na saúde, uma quantidade variável de elementos femininos e masculinos são encontrados em meninas e meninos. Inclusive por fatores hereditários, é possível encontrar um menino com um Elemento Feminino (como aqui foi conceituado) mais intenso que o de uma menina que esteja ao seu lado. É importante ser ressaltado que a bissexualidade é uma característica comum a todos os seres humanos. Os princípios básicos, denominados por Winnicott como Elementos Masculinos e Femininos Puros, não se relacionam com o gênero assumido pelo indivíduo, e sim com os fenômenos do SER e do FAZER. Talvez valha a pena, nesse ponto, revisar como Winnicott compreende a origem e o destino do Ser, caso todas as condições favoreçam. Qual é a origem da vida no modelo psíquico de Winnicott que daria lugar ao crescimento e diferenciação do Ser? Diferentemente de Freud, Winnicott não considera o inorgânico como o estado originário de onde se parte e para onde se retorna. Em alguns momentos, Winnicott se refere a uma energia primitiva, uma vitalidade ainda não diferenciada, presente nos tecidos (como nos músculos, por exemplo) que chama de impulso vital. É essa força vital que dá lugar ao crescimento e diferenciação daquilo que chamamos de Ser. É no Ser que Celso Halperin et al.
10 começa a vida psicológica (WINNICOTT, 1988). É quando se dá o primeiro esboço de autoconsciência de estar vivo, de haver uma continuidade existencial, do registro do Ser no tempo, registros dos primeiros gestos criativos e atos espontâneos capazes de inaugurar uma existência verdadeira, de dar nascimento a um si mesmo verdadeiro (PAINCERA, 1994). É a partir do Ser, estado de onipotência, que gradativamente o objeto subjetivo vai sendo expulso da própria subjetividade, vai podendo ser percebido como fora do Ser, como objeto Não-Eu, permitindo que só então se estabeleça a relação objetal. Vai se criando, a partir de então, a percepção de um objeto Não-Eu, o espaço para o Fazer, para que se estabeleça um vínculo, uma relação de objeto. Antes dessa diferenciação podemos falar em identificação primária, agora já é possível uma relação objetal. Ainda que escape do presente trabalho, seria interessante ressaltar que é nesse espaço, entre o Eu e o Não-Eu, que Winnicott desenvolverá todo o seu estudo da Transicionalidade. A idéia da bissexualidade em Freud está alicerçada no mecanismo de repressão, enquanto que, para Winnicott, na discussão dos elementos femininos e masculinos destaca-se o mecanismo da dissociação. Diante dessa constatação, destacamos um artigo de Gurfinkel (2001), chamado O Carretel e o Cordão, em que ele justamente contrasta A Clínica da Repressão e a Clínica da Dissociação. Esse autor descreve como predominantemente a obra de Freud ocupou-se de uma Clínica da Repressão, mas, a partir do estudo do Fetichismo (1927), ele desenvolveu a noção de dissociação e só mais tardiamente sugeriu a aplicação desse mecanismo para a psicose e para toda a vida psíquica. Freud iniciou seu texto: A Divisão do Ego nos processos de defesa (1938a, p. 309), com a seguinte frase: Encontro-me na interessante posição de não saber se o que tenho a dizer deve ser encarado como algo há muito tempo conhecido ou como algo inteiramente novo e enigmático. Es-
11 tou, porém, inclinado a pensar que é esse último. Para Gurfinkel (2001), essa frase não é somente enigmática, mas profética. Nesse texto, Freud (1938a, p. 309) abordou a dissociação como um mecanismo em que a vida mental se bifurca em dois movimentos contraditórios e paralelos, que conduzem a [...] uma fenda no Ego que nunca se cura[...], mas que se aprofunda com o passar do tempo. Aqui, esse processo ainda foi descrito por Freud em torno da problemática da castração: por um lado, há um afastamento da realidade e da interdição dela originada e, por outro, o reconhecimento do perigo da realidade. Foi somente no final de sua obra, no Esboço de Psicanálise (1938b), que se deu em Freud uma real abertura em relação à Clínica da Dissociação, quando essa passou a ser pensada com relativa independência em relação à questão da castração. A questão do fetichismo foi uma porta de entrada para uma possível gênese da Clínica de Dissociação na obra de Freud (sucedendo a Clínica da Repressão), ainda que não encontremos nela um desenvolvimento pleno da mesma. Já em Winnicott, a Clínica da Dissociação ganhou ênfase, fazendo-se central para a compreensão das psicopatologias da área dos Fenômenos Transicionais, bem como em vários de seus estudos. Em plena maturidade, Winnicott retomou o estudo da dissociação em termos de uma exclusão completa por parte do homem (ou da mulher) do aspecto de personalidade do sexo oposto, conduzindo ao estudo dos elementos femininos e masculinos. Para Winnicott, o estudo da dissociação articulado ao da regressão tornou-se uma das ferramentas importantes da ampliação da clínica psicanalítica, revelando a emergência de um modelo teórico-clínico que se faz presente para muitos analistas atualmente (GURFINKEL, 2001). Outro ponto nuclear do pensamento de Winnicott que parece ter encontrado seu embrião nas idéias de Freud é o desenvolvimento da noção de SER, precedendo a de FAZER. Nos achados Pós-escritos de Freud (de 1938, publicado postumamente em 1941, p. 335), encontramos a seguinte citação a respeito do Ter e Ser na Criança : Celso Halperin et al.
12 A criança prefere expressar a relação objetal por meio de uma identificação: Eu sou o objeto. O ter é posterior e volta-se a recair no Ser, quando o objeto é perdido. Exemplo: O seio materno. O seio é uma parte de mim, eu sou o seio. Somente mais tarde: Eu o tenho, isto é, eu não sou ele Observa-se como se articulam o TER de Freud com o FAZER de Winnicott: novamente Freud, no final de sua obra, lançou uma idéia, um marco inaugural, na qual Winnicott se apoiou, dedicando-se ao seu desenvolvimento e ampliação. Pensamos em destacar algumas questões que nos ocorreram ao longo deste estudo, visando a um debate sobre esse tema tão complexo: 1 Dentre as contribuições psicanalíticas mais recentes sobre a bissexualidade, há reflexões quanto ao que permanece atual nas obras de Freud e de Winnicott e o que poderia ser revisado e/ou complementado, com base nos conhecimentos atuais. Para instigar a discussão, trazemos um aporte de GREEN (1988, p ) a esse respeito: A Teoria freudiana da bissexualidade teve o mérito de distinguir a bissexualidade psíquica da bissexualidade biológica no entanto, quando se defronta com dificuldades nesse ponto, Freud recorre à biologia para solucionar o mistério (o que a ciência atual não parece confirmar). Além disso, a teoria freudiana parece exclusivamente fundada numa evolução individual, subestimando a relação genitor-criança, ou não articulada com esta. [...] Em contrapartida, a teoria de Winnicott põe ênfase na relação dos pais com a criança e leva em conta as interrelações entre maturação e meio ambiente materno, mas talvez subestime o papel do pai e da sexualidade parental. 2 Outro ponto que nos despertou muito interesse nesse trabalho foi o seguinte: Winnicott nos coloca que o Elemento Feminino, base para o Ser, constitui-se a partir da identidade mãe/bebê; identidade essa que ainda
13 não comporta uma diferenciação entre o Eu e o Não-Eu. Não havendo separação entre sujeito e objeto, ainda não há lugar para o elemento instintivo ou pulsão. Portanto, se a pulsão só tem espaço, nessa concepção de aparelho mental, a partir da separação do Eu e Não-Eu, Winnicott questiona aqui um dos paradigmas da psicanálise freudiana, qual seja, de ser a pulsão a propulsora, o fundamento do aparelho psíquico. Poderíamos, então, fazer um exercício crítico e questionarmos: Se o Ser se dá pela unidade mãe/bebê, não estaria o bebê sob influência não só do Ser da mãe, como propõe Winnicott, mas também sob a influência das pulsões da mãe? Ou seja, não está o bebê investido pela pulsão como objeto sexual da mãe desde os primórdios? Claro que, ao ressaltarmos que também há um instinto pulsional materno, ou seja, que há a presença de elementos masculinos presentes desde os primórdios, estamos questionando a afirmação da primazia temporal dos elementos femininos sobre os masculinos, ainda que reconhecendo que a chamada destilação, ou isolamento dos elementos masculinos e femininos, se presta a uma mais fácil compreensão clínica na questão de gênero do que na questão de estruturação do aparelho psíquico. 3 Por outro lado, ficamos inquietos frente a uma proposição teórica como a de Winnicott, que de alguma forma questiona o primado freudiano das pulsões. Ainda que Winnicott coloque o Ser como prévio às pulsões, também ele, ainda que sem muita ênfase, acena com a possibilidade de um instinto vital presente nos tecidos, parecendo buscar uma origem ou fundamento biológico para o surgimento do Ser. Disso tudo, parece que tal como Freud, que coloca as pulsões como a mitologia da psicanálise (32.ª Conferência Introdutória, 1933), nós todos somos presas ou reféns de um modelo de pensamento em que se fazem necessários a causalidade, o conhecimento da origem, mesmo que mitológica. Caberiam aqui algumas considerações: na civilização grega antiga, berço do pensamento ocidental, o fundamento era o Logos. Logos aqui entendido como um sistema de relação (de coisas, de palavras, seres, etc) feito sob determinado critério (SCHÜLER, 2000). Se pensarmos o Logos como uma relação, um conjunto Celso Halperin et al.
14 de palavras, por exemplo, estamos falando do Logos como um discurso. Esse discurso tende sempre à união, à harmonia dentro do universo do homem grego, ou seja, na natureza. Alias, para os gregos, tudo era compreendido como fazendo parte da natureza. Não existia a questão da origem no sentido linear como estamos acostumados a pensar. Os homens, os mitos, as histórias, os deuses; enfim, o universo era compreendido como fazendo parte da natureza em um perpétuo movimento, em uma circularidade como tão bem fundamenta Herácilto, segundo Schüler (2000). Há uma circularidade, não uma lineralidade com uma origem determinada. No pensamento grego, o Zero (0) não é considerado como alguma coisa. Pitágoras começa seu sistema a partir do Um (1). Zero não é nada, é coisa alguma. Assim, nada não existe, pois a natureza é coisa alguma, é o Um. A partir da aproximação do pensamento grego com o pensamento judaico, a noção de origem, de criação, chega ao ocidente. Para o judaísmo, e mais tarde para o pensamento judaico/cristão, o fundamento é a criação do mundo por Deus. Deus, uma entidade fora do Universo, tem o poder de operar a transformação do Zero ao Um. Deus é o criador. O Zero, que não existia para os gregos, passa a existir para justificar o aparecimento do Um. Quem faz a transformação? Deus. Assim, vai se cristalizando na nossa civilização um modelo de pensamento linear que busca sempre a origem. Seja no pensamento, seja na religião, na ciência, na mitologia, etc. Qual é a origem do universo? O big-bang. Qual a origem do bigbang? Qual é a origem do aparelho psíquico? As pulsões. Qual é a origem das pulsões? Qual é a origem do Ser? O impulso vital. Qual é a origem do impulso vital? Com tudo isso queremos apenas poder pensar que o questionamento do primado das pulsões, feito por Winnicott, não é um ataque à psicanálise nem a Freud. Mas traz à psicanálise todo um questionamento filosófico, trazido por Derrida (1967), que nos fala, a partir da desconstrução, de um outro fundamento: Já não mais o Logos, não mais o criador e criatura, mas
15 uma nova circularidade dada pela permanente desconstrução, desconexão, descentralização de qualquer conceito ou verdade dada, para uma contínua reconstrução. Ou seja, não se busca mais a origem, o início de tudo, o Zero. Há um permanente movimento de desconstrução e reconstrução sem que exista, necessariamente, essa questão. Talvez isso nos traga algumas angústias, mas também pode nos estimular e liberar para outros modelos teóricos de pensamento que repercutam ou coincidam com muito da nossa clínica atual. Celso Halperin et al. Abstratc: This paper seeks a connection on how the bisexuality is seen in Freud s work (in which the repression plays a crucial role), and the Pure Masculine and Feminine Elements in Winnicott s work (in which the dissociation is the cornerstone). Winnicott develops an idea of bisexuality that goes beyond the issue of gender, assigning a new meaning to it: the feminine element, which is linked to the experience of BEING, and the masculine element that is the ground for DOING. Based on these references, the authors try to understand this model of thinking adopted by Winnicott, in which there would be a psychic state of BEING prior to the drive, questioning one of the psychoanalysis paradigms: the prevalence of the instinctual drive. Key-words: Bisexuality. Being. Doing. El trabajo busca una conexión entre la visión de la bisexualidad en la obra de Freud (donde el destaque se lo da al papel de la represión) y de los Elementos Masculinos y Femeninos Puros en la obra de Winnicott (cuyo cimiento está en la disociación). En Winnicott, hay un desarrollo de la idea de la bisexualidad, para más allá de la cuestión del género, atribuyéndole un nuevo sentido: el Elemento Femenino, vinculado a la experiencia de SER y el Elemento Masculino, base para el HACER. A partir de esos referenciales, los autores buscan comprender ese modelo de pensamiento adoptado por Winnicott, en el que habría un estado psíquico de SER previo a la pulsión, lo que cuestiona uno de los paradigmas del psicoanálisis: el primado de las pulsiones. Bisexualidad. Ser. Hacer. DERRIDA, J. (1967). Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, FREUD, S. (1896). Correspondência a Fliess: carta 52. In:. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. 1.
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