Morfologia hemipeniana dos lagartos microteídeos e suas implicações nas relações filogenéticas da família Gymnophthalmidae (Teiioidea: Squamata)
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2 ii Pedro Murilo Sales Nunes Morfologia hemipeniana dos lagartos microteídeos e suas implicações nas relações filogenéticas da família Gymnophthalmidae (Teiioidea: Squamata) (Versão simplificada) (Texto) São Paulo 2011
3 iii Nunes, Pedro Murilo Sales Morfologia hemipeniana dos lagartos microteídeos e suas implicações nas relações filogenéticas da família Gymnophthalmidae (Teiioidea: Squamata). Vol. 1 Texto. 137 pp. Tese (Doutorado) Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Departamento de Zoologia. 1. Gymnophthalmidae 2. Morfologia 3. Hemipênis I. Universidade de São Paulo. Instituto de Biociências. Departamento de Zoologia. Comissão Julgadora: Prof. Dr. Prof. Dr. Prof. Dr. Prof. Dr. Prof. Dr. Miguel Trefaut Rodrigues Orientador
4 iv A ciência nunca resolve um problema sem criar, pelo menos, outros dez. George Bernard Shaw
5 v Aos meus pais
6 vi INDICE VOLUME I EPÍGRAFE...iv DEDICATÓRIA...v 1- INTRODUÇÃO A família Gymnophthalmidae: Histórico sistemático Hemipênis e sua aplicação na sistemática de Squamata Morfologia hemipeniana da Família Gymnophthalmidae OBJETIVOS RESUMO ABSTRACT REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...14
7 1. Introdução
8 1 1- Introdução 1.1- A família Gymnophthalmidae: Histórico sistemático. A família Gymnophthalmidae é composta por cerca de 220 espécies, alocadas em 48 gêneros (Pellegrino et al., 2001; Doan, 2003; Doan & Castoe, 2005; Kok, 2005; 2009; Rodrigues et al., 2005; 2009a; 2009b; 2009c; Uetz et al., 2011) e reúne lagartos de pequeno a médio porte (de 4 a 15 cm de comprimento rostro-cloacal) que se distribuem do sul do México à Argentina, além do Caribe e outras ilhas das Américas do Sul e Central (Pellegrino et al., 2001). São animais diurnos e de hábitos bastante diversos, que ocupam uma grande variedade de habitats (terrestre, fossorial, semi-aquático e semiarborícola). Para a ocupação eficiente destes ambientes diversas adaptações morfológicas especializadas foram selecionadas, conferindo à família uma grande plasticidade fenotípica, envolvendo o alongamento do corpo, redução de apêndices em diferentes níveis, perda das pálpebras, do ouvido externo e de escamas da cabeça (Pellegrino et al., 2001). Atualmente a família é reconhecida como um grupo natural bem sustentado por caracteres morfológicos e moleculares (MacLean, 1974; Presch, 1980; Pellegrino et al., 2001; Castoe et al., 2004), representando o grupo-irmão da família Teiidae, compreendendo assim um clado mais inclusivo designado como superfamília Teiioidea (Estes et al., 1988). No entanto, é importante ressaltar que o monofiletismo recíproco das duas famílias foi somente demonstrado de forma consistente com base em seqüências de DNA mitocondrial e nuclear, através dos estudos de Pellegrino et al. (2001) e Castoe et al. (2004). Até a então, a família Teiidae era reconhecida por uma definição mais ampla do que a atual, abrigando, além dos táxons que hoje reúne, também os gêneros atualmente reconhecidos como gimnoftalmídeos. Essa classificação, proposta por Boulenger (1885) ainda no final do século XIX, encontrou suporte em estudos baseados em morfologia, sendo utilizada até o começo deste século (Harris, 1985; Hoyos, 1998; Myers & Donnelly, 2001). Nesta proposta eram reconhecidos quatro grupos supragenéricos: um deles (Grupo I) reunia os gêneros que hoje compõem a família Teiidae sensu stricto, ao passo que os demais táxons, foram alocados em outros três grupos (II-IV) formados por gêneros que hoje fazem parte da família Gymnophthalmidae. A evidente diferença de porte entre os lagartos que integram o Grupo I de Boulenger e os representantes dos outros três grupos levou Ruibal (1952) a referir-se aos componentes do primeiro grupo como macroteídeos e aos outros três grupos como microteídeos. Além do tamanho, MacLean (1974) demonstrou que essa separação informal de Ruibal (1952) era sustentada por outras características morfológicas
9 2 relacionadas principalmente com mecanismos de alimentação; sendo assim, o autor propôs o reconhecimento formal de duas subfamílias: Teiinae, formada pelos nove gêneros de macroteídeos; e Gymnophthalminae, mais diversa e composta pelos gêneros de microteídeos. Quase uma década mais tarde, Presch (1983) listou 13 apomorfias que distinguem morfologicamente os dois grupos e elevou ao status de família os dois táxons considerados subfamílias de teídeos na proposta de MacLean (1974). A despeito das evidências morfológicas e de anatomia funcional, a elevação dos microteídeos ao status de família permaneceu controversa, com estudos suportando as idéias de Presch (1983) (Estes et al., 1988; Presch, 1980), enquanto outros autores, não convencidos dessa proposta, apresentavam evidências para a manutenção do sistema inicial de Boulenger para a família Teiidae (p. ex. Harris, 1985; Hoyos, 1998; Myers & Donnelly, 2001). Entretanto, as primeiras abordagens moleculares para essa questão vieram em seguida e forneceram suporte para a existência de dois clados independentes, apesar de intimamente relacionados. O primeiro trabalho nesse sentido foi de Pellegrino et al. (2001), que abordou a sistemática de 50 espécies de Gymnophthalmidae através da análise de seqüências de genes mitocondriais e nucleares, representando a hipótese filogenética mais completa para o grupo até então. Os resultados dessa análise, além de confirmar o monofiletismo da família em relação a representantes das duas subfamílias de macroteídeos [i.e. Teiinae e Tupinambinae (Presch, 1974; 1983)], apresentaram um novo panorama das relações entre os gêneros microteídeos (Fig. 1). A topologia obtida culminou em uma nova classificação para a família, com o reconhecimento de quatro subfamílias: duas delas (Gymnophthalminae e Cercosaurinae) foram divididas em duas tribos cada, enquanto as outras duas foram definidas como monotípicas (Alopoglossinae e Rachisaurinae). Os gêneros de microteídeos faltantes na análise de Pellegrino et al. (2001) foram alocados tentativamente dentro dos táxons propostos pelos autores, baseados em características morfológicas.
10 3 Figura 1: Hipótese filogenética recuperada através da análise combinada de partições de DNA mitocondrial e nuclear, utilizando critério de máxima verossimilhança. Clade I = Gymnophthalminae; Rodrigues Clade = Gymnophthalmini; Clade II = Ecpleopini; Clade III = Cercosaurini (modificado Pellegrino et al., 2001). Alguns anos mais tarde, Castoe et al. (2004) reavaliaram os dados de Pellegrino et al. (2001), incorporando novos dados à amostra destes autores, dentre os quais as sequências de três gêneros (Proctoporus, Petracola, e Riama na ocasião todos incluídos no primeiro gênero) e 12 espécies de gimnoftalmídeos ainda não amostrados. Apesar da semelhança geral entre as topologias de Pellegrino et al. (2001) e Castoe et al. (2004), incongruências pontuais levaram Castoe et al. (2004) a apresentar uma nova proposta taxonômica para a família. Estes autores demonstraram o parafiletismo da subfamília Cercosaurinae (sensu Pellegrino et al., 2001), que os levou a elevar a tribo Ecpleopodini ao status de subfamília. Adicionalmente, Castoe et al. (2004) não reconhecem a validade das tribos Gymnophthalmini e Heterodactylini, mantendo a subfamília Gymnophthalminae sem subdivisões internas.. Uma terceira mudança taxonômica foi motivada pela incerteza quanto à posição do gênero Bachia dentro da
11 4 família, já que as análises realizadas pelos autores indicaram diferentes alocações para o gênero. Nas diferentes árvores obtidas o gênero esteve relacionado à tribo Cercosaurini, à subfamília Ecpleopodinae ou a Rachisaurus brachylepis. Essa incerteza de posicionamento somada à grande distância genética entre Bachia e os demais Gymnophthalmidae, levaram os autores a decidir pela criação de uma nova tribo para abrigar apenas o gênero em questão (tribo Bachini). Adicionalmente, Castoe et al. (2004) perceberam que, por um equívoco de Pellegrino et al. (2001), parte das seqüências de Ptychoglossus brevifrontalis foram trocadas por dados de Potamites juruazensis, o que levou ao enraizamento equivocado da primeira espécie na subfamília Cercosaurinae. Com a correção do equívoco e a adição de novas seqüências de P. brevifrontalis, os autores alocaram o gênero Ptychoglossus na subfamília Alopoglossinae, posição suportada também por evidências morfológicas. Figura 2: Hipótese filogenética recuperada através da análise combinada de partições de DNA mitocondrial e nuclear, utilizando análise bayesiana (modificado de Castoe et al., 2004).
12 5 No trabalho em que descrevem Dryadosaura nordestina, novo gênero e espécie da tribo Ecpleopodini (sensu Pellegrino et al., 2001), Rodrigues et al. (2005) consideraram prematuras três das quatro propostas de Castoe et al. (2004) que alteravam a classificação da família. Entretanto, Rodrigues et al. (2005) concordaram com a alteração da alocação de Ptychoglossus na subfamília Alopoglossinae, confirmando a troca de identificação entre as seqüências deste gênero e de Potamites juruazensis. Também neste trabalho, a análise combinada de caracteres morfológicos e moleculares de Rodrigues et al. (2005) não resgatou o monofiletismo da subfamília Cercosaurinae sensu Pellegrino et al. (2001), e revelou o relacionamento próximo entre os gêneros Rachisaurus e Bachia, o que está parcialmente de acordo com as hipóteses postuladas por Castoe et al. (2004). Dois anos mais tarde, Rodrigues et al. (2007) descrevem um novo gênero de gimnoftalmídeo (Alexandresaurus), que foi alocado na subfamília Gymnophthalminae e inicialmente na tribo Heterodactylini, além de criarem um novo nome para alocar Colobosaura mentalis (Acratosaura gen. nov.). Os resultados obtidos na análise combinada de caracteres morfológicos e moleculares deste trabalho sustentaram o monofiletismo da tribo Heterodactylini pelo método da máxima parcimônia, mas obtiveram uma topologia bastante semelhante à recuperada por Castoe et al. (2004), acrescida de alguns táxons não amostrados anteriormente, pelo método de inferência bayesiana. Os autores não propuseram nenhuma reformulação na taxonomia naquele momento, entretanto, dois anos depois, Rodrigues et al. (2009a) descreveram mais um novo gênero deste grupo (Caparaonia) e novamente recuperaram uma topologia na qual a tribo Heterodactylini proposta por Pellegrino et al. (2001) não formava um grupo natural. Assim, os autores optaram por restringir o nome Heterodactylini ao grupo formado pelos gêneros Colobodactylus, Heterodactylus e Caparaonia e alocar os demais gêneros em uma nova tribo (Iphisiini). Também nesse trabalho, em uma nota de rodapé, os autores chamam a atenção para a grafia correta da subfamília Ecpleopodinae (Rodrigues et al., 2009a), ao invés de Ecpleopinae, como vinha sendo grafado até então. Os trabalhos que abordaram a sistemática dos microteídeos através de caracteres moleculares de forma mais completa (Pellegrino et al., 2001; Castoe et al., 2004), além de fornecerem suporte para o monofiletismo do grupo e oferecerem pela primeira vez um panorama amplo das relações filogenéticas da família, revelaram o parafiletismo de alguns gêneros amplamente reconhecidos com base em dados morfológicos, o que levou a reformulações taxonômicas relevantes neste nível hierárquico. Gêneros como Colobosaura, Neusticurus e Proctoporus foram desmembrados em dois ou mais táxons para a adequação da taxonomia da família às hipóteses filogenéticas inicialmente propostas pelos trabalhos citados e, mais tarde, corroboradas por abordagens mais
13 6 inclusivas que testaram especificamente o monofiletismo desses gêneros (respectivamente Rodrigues et al., 2007; Doan & Castoe, 2005). Adicionalmente, após a publicação dos trabalhos de Pellegrino et al. (2001) e Castoe et al. (2004), diversos outros gêneros de gimnoftalmídeos foram descritos com base principalmente em caracteres de morfologia externa como Alexandresaurus (Rodrigues et al., 2007), Caparaonia (Rodrigues et al., 2009a), Dryadosaura (Rodrigues et al., 2005), Kaieteurosaurus (Kok, 2005), Pantepuisaurus (Kok, 2009), Scriptosaura (Rodrigues & Santos, 2008). Dessa forma, apesar dos avanços recentes em diferentes níveis taxonômicos e filogenético da família Gymnophthalmidae, ainda existem questões sistemáticas controversas a serem abordadas. Além disso, o fato de alguns táxons-chave de microteídeos serem pouco representados em coleções científicas, muitas vezes sem amostras de tecido, além de diversas convergências adaptativas na morfologia de algumas espécies que dificultam a formulação de hipóteses de homologia primária, permanecem sendo fatores que dificultam uma definição mais clara e conclusiva para muitas das relações entre os gimnoftalmídeos Hemipênis e sua aplicação na sistemática de Squamata A genitália de muitos grupos animais apresenta características espécieespecíficas que, em muitos casos, conferem a estas estruturas um potencial informativo mais relevante nos níveis de gênero e espécie do que outras estruturas (Arnold, 1986a; Eberhard, 2009). Essa diferenciação relativamente rápida dos caracteres ligados aos órgãos copuladores é recorrente em diversos grupos animais e tem feito da morfologia genital uma ferramenta especialmente útil na distinção de espécies proximamente relacionadas (Arnold, 1986a; Eberhard, 1985; 2009). As explicações para justificar essas diferenças na velocidade de diversificação morfológica dos órgãos copuladores em comparação com outras estruturas são ainda controversas e levaram Arnold (1986a) a publicar um artigo bastante amplo e inexplicavelmente ignorado pelos trabalhos posteriores sobre o tema, aonde o autor discute questões intrigantes relacionadas à plasticidade morfológica desses órgãos baseando-se principalmente em exemplos provenientes dos seus estudos com lagartos da família Lacertidae. Em Squamata, os machos são dotados de hemipênis, órgãos copuladores pares, de formato geral cilíndrico e delimitados externamente por uma parede dupla. No espaço entre essas paredes existem dois sistemas de seios: um mais interno e maior, que é preenchido por sangue no momento da cópula; outro mais externo e menor, que se
14 7 comunica com a cisterna linfática e, portanto, preenchido por linfa (Volsøe, 1944; Dowling & Savage, 1960). Um grande músculo retrator que, dependendo do formato do órgão, pode ser simples ou dividido em dois ramos distais, ocupa o espaço central do cilindro e é o principal responsável pela retração do órgão após a cópula, juntamente com dois outros músculos menores. Todo o órgão é coberto por um epitélio estratificado e com um stratum corneum bem desenvolvido. Muitos grupos de Squamata apresentam hemipênis bastante ornamentados com espinhos, cálices, papilas, franjas e bolsas que, se presume, têm como principal função manter macho e fêmea firmemente conectados durante a cópula (Volsøe, 1944; Dowling & Savage, 1960). Os hemipênis de Squamata são tradicionalmente divididos em três porções: basal ou proximal (base), medial (corpo) e apical ou distal (lobos). Entretanto, essas frações podem não estar evidentemente delimitadas em todos os casos. A porção distal do órgão pode ser simples ou estar dividida em dois lobos. O sêmen é conduzido por um sulco longitudinal profundo (sulcus spermaticus), que tem origem na base, adjacente à cloaca e próximo à abertura dos vasos deferentes, terminando próximo ao ápice do órgão. Este sulco pode ser simples ou dividido em dois ramos, independente da condição unilobada ou bilobada do órgão. Quando em repouso, ambos os hemipênis permanecem invaginados entre a musculatura na face ventral da cauda como um tubo de fundo cego, posterior à abertura cloacal (Volsøe, 1944; Bellairs, 1968). No momento da cópula, após a aposição cloacal, apenas um dos hemipênis é evertido e inserido na cloaca da fêmea, por ação muscular e pela inundação dos seios por sangue e linfa (Volsøe, 1944; Bellairs, 1968; Porter, 1972; King, 1981). Curiosamente, Boulenger (1913) chegou a sugerir que ambos os órgãos seriam inseridos simultaneamente na cloaca da fêmea e, que com o contato das faces sulcadas dos hemipênis, ambos os sulcos espermáticos formariam um canal fechado. Entretanto, atualmente está claro que o sulco espermático é profundo o suficiente para a condução do sêmen, sem a necessidade da formação de um canal fechado (Volsøe, 1944). Os hemipênis de Squamata apresentam uma grande diversidade de características no que se refere ao tamanho, forma, ornamentação, condição do sulco espermático; estruturas apicais são também extremamente variáveis entre os diversos táxons. Essas características vêm sendo tradicionalmente utilizadas como fonte de informação para estudos em sistemática e taxonomia de Squamata desde o final do século XIX, com os trabalhos de E. D. Cope (1893; 1894; 1895; 1896; 1900). Nestes trabalhos, Cope procurou fornecer informações gerais e inéditas sobre a morfologia do hemipênis e utilizá-las para caracterizar alguns dos grupos supragenéricos de Squamata reconhecidos na época, realizando também estudos relevantes para a distinção entre gêneros e espécies relacionados. Dentre estes trabalhos, Cope explorou a genitália dos
15 8 lagartos em apenas um deles (Cope, 1896), enquanto os demais abordaram exclusivamente as serpentes (Cope, 1893; 1894; 1895; 1900), com uma abrangência de mais de 200 espécies representantes da maior parte das famílias reconhecidas atualmente (Dowling & Savage, 1960). Subseqüentemente, a morfologia hemipeniana passou a ser usada de forma freqüente nos trabalhos envolvendo a sistemática de serpentes em vários níveis (por exemplo, Dunn, 1928; Vellard, 1928; 1946; Dowling, 1957; 1959; 1969; Myers, 1974; Branch & Wade, 1976; Dowling & Duellman, 1978; Zaher, 1999, Myers et al., 2009, entre muitos outros), enquanto para os lagartos esta fonte de informação foi muito menos explorada. Após os trabalhos pioneiros de Cope, a morfologia hemipeniana só foi utilizada novamente para a classificação e definição de táxons com os trabalhos de Dunn (1928), Vellard (1928; 1946) e Bogert (1940). A partir de então, diversos outros autores passaram a utilizar informações provenientes da morfologia do hemipênis de serpentes na caracterização de espécies (por exemplo, Myers, 1974; 1986; Fernandes, 1995; Zaher, 1996; Schargel & Castoe, 2003; Schargel et al., 2005; Myers & Donnelly, 2001, entre vários outros) e como uma importante fonte de caracteres na adequação da sistemática do grupo em vários níveis (por exemplo, Dowling & Duellman, 1978; Jenner & Dowling, 1985; Cadle, 1984; Machado, 1993; Myers & Cadle, 1994; Zaher, 1999). Trabalhos envolvendo a sistemática de lagartos utilizando a morfologia do hemipênis praticamente não existiram desde a publicação de Cope (1896) até meados do século passado, quando o número de trabalhos abordando esse tema aumentou consideravelmente. Alguns exemplos são estudos abordando as famílias Lacertidae (Wöpke, 1930; Klemmer, 1957; Böhme, 1971; Arnold, 1983; 1986b), Chamaleonidae (Brygoo & Domergue, 1969a; 1969b; 1970), Amphisbaenidae (Rosenberg, 1967), os lagartos Platynota (Branch, 1982) e a família Gymnophthalmidae, táxon de lagartos cuja morfologia do hemipênis foi mais estudada (ver tópico abaixo). Entretanto, de forma distinta do que ocorreu com as serpentes, os trabalhos envolvendo a morfologia do hemipênis de lagartos mantiveram, em sua maioria, um enfoque descritivo, com poucas hipóteses de relacionamento baseadas nesse tipo de informação. Adicionalmente, as poucas hipóteses que utilizaram a morfologia hemipeniana como fonte de informação foram estabelecidas por similaridade global entre os órgãos, desprovidas de uma conotação filogenética ampla ou que contemplasse de forma satisfatória a diversidade dos grupos abordados.
16 Morfologia hemipeniana da Família Gymnophthalmidae A morfologia hemipeniana de lagartos começou a ser explorada de forma mais detalhada por Cope (1896) em um trabalho em que reúne descrições e peculiaridades de diversos táxons de lagartos, dentre os quais as espécies Anadia bogotensis e Heteroclonium bicolor (= Bachia bicolor), hoje alocados na família Gymnophthalmidae., Depois deste trabalho de Cope, os artigos seguintes a utilizarem a morfologia de hemipênis de Gymnophthalmidae só vieram na segunda metade do século passado (p. ex. Uzzell, 1965; 1966; 1969a; 1969b; 1970; Fritts & Smith, 1969; Uzzell & Barry, 1971; Presch, 1974; 1978; Dixon, 1974; Harris & Ayala, 1987; Rodrigues, 1991; Kizirian, 1996; Ávila-Pires & Vitt, 1998; Myers & Donnely, 2001; 2008; Rodrigues et al., 2005; 2008; Donnelly et al., 2006; Peloso & Ávila-Pires, 2010; Myers et al., 2009). Dentre esses trabalhos, deve-se destacar a produção de Thomas Uzzell que, além de fornecer descrições bastante detalhadas e precisas da morfologia hemipeniana de diversos gêneros da família, chegou a fazer uso da morfologia hemipeniana para postular hipóteses de relacionamento entre vários táxons, como nas comparações entre os órgãos de Leposoma e Arthrosaura (Uzzell & Barry, 1971), entre Cercosaura (na ocasião Prionodactylus), Euspondylus e Pholidobolus (na ocasião Aspidolaemus) (Uzzell, 1973), e em alguns casos na criação de grupos supra-específicos informais dentro de alguns gêneros, como foram os casos de Neusticurus (Uzzell, 1966), Proctoporus (Uzzell, 1970), Cercosaura e Euspondylus (Uzzell, 1973). Outra obra, mais recente, que abordou a morfologia hemipeniana dos microteídeos com preocupação em frisar a utilidade desses caracteres para a sistemática do grupo, além de comentar sobre técnicas de preparação e ressaltar a dificuldade de se trabalhar com órgãos de espécimes com tamanho tão reduzido foi publicada por Myers et al. (2009). Nesse trabalho os autores também comentam a possível alocação supragenérica de alguns táxons de gimnoftalmídeos com hemipênis presumidamente sem espículas calcificadas como Alopoglossus, Adercosaurus, Kaieteurosaurus, Ptychoglossus e Riolama. Adicionalmente, os autores também comentam e discutem sobre a morfologia hemipeniana das espécies de Neusticurus e Anadia ocellata. Apesar dos gimnoftalmídeos representarem o grupo de lagartos melhor conhecido em relação à morfologia hemipeniana, a maior parte dos gêneros e das espécies de microteídeos permanecem sem informações quanto à morfologia do órgão. Além do pequeno número de espécies com hemipênis conhecidos, o enfoque dos trabalhos acima é quase que exclusivamente descritivo, existindo poucas hipóteses de relacionamento baseadas em caracteres hemipenianos. E, de forma semelhante ao que ocorre com os demais grupos de lagartos, mesmo estas poucas hipóteses foram postuladas sem a
17 10 realização de uma análise filogenética ampla que contemplasse de forma satisfatória a diversidade da família. Em um trabalho onde descreve brevemente e compara a morfologia hemipeniana de nove espécies de gimnoftalmídeos, Presch (1978) levanta a hipótese de existir uma relação direta entre a redução ou a perda completa dos membros nas serpentes e em alguns grupos de lagartos e a presença de estruturas maiores e mais complexas ornamentando os hemipênis desses táxons. Essa hipótese sugeria que os membros seriam a principal forma do casal de esquamados se fixar durante a cópula, creditando à impossibilidade dessa atuação ao maior desenvolvimento de ornamentos hemipenianos, que atuariam nesse sentido. No entanto, ao analisar os hemipênis de três espécies do gênero Bachia, táxon com membros reduzidos, e compará-los com os órgãos de outros gêneros da família, Presch (1978) não conseguiu demonstrar a existência dessa relação, deixando a questão ainda em aberto.
18 2. Objetivos
19 11 2- Objetivos O principal objetivo deste trabalho é fornecer descrições detalhadas da morfologia hemipeniana dos gêneros atualmente reconhecidos para a família Gymnophthalmidae (com exceção de Marinussaurus discutindo os padrões encontrados com base nas hipóteses filogenéticas disponíveis na literatura (p. ex. Pellegrino et al., 2001; Castoe et al. 2004; Rodrigues et al., 2005; 2007; 2009a), além de propor e definir novas hipóteses, contribuindo assim para a compreensão da história evolutiva do grupo e, conseqüentemente, para a adequação da sua taxonomia. Adicionalmente, também foram acessadas informações da morfologia hemipeniana de alguns gêneros da família Teiidae, na intenção de comparar as características anatômicas de ambos os táxons e assim postular hipóteses quanto à direção das transformações de algumas características hemipenianas na filogenia da família, utilizando para isso as hipóteses já existentes na literatura.
20 3. Resumo
21 12 3- Resumo A família Gymnophthalmidae é composta por cerca de 220 espécies de lagartos de pequeno a médio porte, alocadas em 48 gêneros e distribuídas desde o sul do México até a Argentina, além do Caribe e outras ilhas das Américas do Sul e Central. Atualmente a família é reconhecida como um grupo monofilético bem sustentado por caracteres morfológicos e moleculares, representando o grupo-irmão da família Teiidae, ambos formando um clado maior designado como superfamília Teiioidea. Apesar dos avanços recentes, ainda existem questões sistemáticas controversas a serem abordadas em relação entre os táxons da família Gymnophthalmidae. A morfologia do hemipênis vem sendo tradicionalmente utilizada como fonte de informação para estudos em sistemática e taxonomia de Squamata há mais de um século, apesar de ser mais extensamente explorada em Serpentes do que em lagartos e anfisbenídeos. Mesmo sendo historicamente um dos grupos de lagartos cuja morfologia hemipeniana foi mais explorada, as descrições deste complexo morfológico para a família Gymnophthalmidae são pontuais e nunca foram utilizadas como em um contexto sistemático abrangente. Neste trabalho foram analisados os hemipênis de 47 dos 48 gêneros atualmente reconhecidos para a família, sendo a única exceção o gênero recém-descrito Marinussaurus. Os hemipênis de 395 espécimes alocados em 145 espécies da família foram descritos detalhadamente e comparados entre si, bem como aos de representantes da família Teiidae, que representa o mais provável grupo-irmão de Gymnophthalmidae. Com base nas descrições e nesta abordagem comparativa, foi possível discutir e avaliar as hipóteses filogenéticas já existentes para a família e sugerir novos arranjos taxonômicos dentro do grupo.
22 4. Abstract
23 13 4- Abstract The family Gymnophthalmidae comprises more than 220 species of small and medium-size lizards, allocated in 48 genera that occur from southern Mexico to Argentina, as well as in the West Indies and other islands in Central and South America. The monophyly of gymnophthalmids is presently supported by morphological and molecular characters; moreover, its sister-group relationship to the family Teiidae is also well established, comprising a larger clade taxonomically recognized as the superfamily Teiioidea. Despite recent advances in the systematics of the Gymnophtalmidae, several questions regarding the taxonomic recognition of some genera, tribes and subfamilies within the family demand further investigation. In such a context, hemipenial morphology may help to clarify punctual and controversial aspects of the relationships among the gymnophthalmids. For more than a century, hemipenial morphology has been widely used in squamates systematics, especially with respect to snakes. Among lizards, the Gymnophthalmidae appears as one of the groups in which hemipenes are reasonably explored in the literature, but most data are restricted to punctual descriptions and were never assessed under a comprehensive phylogenetic background. Herein, we examined the hemipenes of 395 specimens of 145 gymnopthalmid species representing 47 of the 48 genera presently recognized in the family (the monotypic and recently described genus Marinussaurus is the only genus missing in our sample). The organs were described in detail and compared among the members of the family, as well as with some representatives of Teiidae, which represents the outgroup of Gymnophthalmidae in studies of explicit phylogenetic inference. Such an approach not only allowed us to discuss the phylogenetic assumptions and taxonomic systems available to date, but also provided new clues regarding the relationships of some gymnophthalmid terminals that may be informative in order to improve resolution of the systematics of the group in the future.
24 5. Referências Bibliográficas
25 14 5- Referências bibliográficas Arnold, E. N Osteology, genitalia and the relationships of Acanthodactylus (Reptilia: Lacertidae). Bulletin of the British Museum (Natural History) Zoology 44: Arnold, E. N. 1986a. Why copulatory organs provide so many useful taxonomic characters: the origin and maintenance of hemipenial differences in lacertid lizards (Reptilia: Lacertidae). Biological Journal of the Linnean Society 29: Arnold, E. N. 1986b. The hemipenis of lacertid lizards (Reptilia: Lacertidae): structure, variation and systematic implications. Journal of Natural History 20: Arredondo, J. C., Sánchez-Pacheco, S. J New Endemic Species of Riama (Squamata: Gymnophthalmidae) from Northern Colombia. Journal of Herpetology 44: Ávila-Pires, T. C. S Lizards of Brazilian Amazonia (Reptilia : Squamata). Zoologische Verhandelingen 299: Ávila-Pires, T. C. S., Vitt, L. J A new species of Neusticurus (Reptilia: Gymnophthalmidae) from the Rio Jurua, Acre, Brazil. Herpetologica 54: Bellairs, A. d A Reptiles. Second Edition. Hutchinson University Library. London. 200 p. Bogert, C. M., Herpetological results of the Vernay Angola expedition. Bulletin of American Museum of Natural History 77: Bohme, W Ober das Stachelepithel am Hemipenis lacertider Eidechsen and seine systematische Bedeutung. Z. Zool. Syst. EvolForsch. 9: Boulenger, G. A Catalogue of the Lizards in the British Museum (Natural History). 2nd edition. Vol. i., Geckonidae, Eublepharidae, Uroplatidae, Pygopodidae, Agamidae; xii. & 436 pp., 32 pls. Vol. ii., Iguanidae, Xenosauridae, Zonuridae, Anguidae, Anniellidae, Helodermatidae, Varanidae, Xantusiidae, Teiidae, Amphisbaenidae; xiii. & 497 pp., 24 pls Catalogue of the Lizards in the British Museum. Unpaginated. Boulenger, G. A The Snakes of Europe. 8vo The Snakes of Europe. 8vo. (xi+269 pp.). Branch, W. R Hemipenial morphology of platynotan lizards. Journal of Herpetology 16: Branch, W. R., Wade, E. O. Z Hemipenial morphology of British snakes. British Journal of Herpetology 5: Brygoo, E. R., Domergue, C. A. 1969a. Description d'un nouveau Brookesia de Madagascar: B. vadoni n. sp. (chamaeleonides). Bulletin du Muséum National d Histoire Naturelle, Paris 40: Brygoo, E. R., Domergue, C. A. 1969b. Notes sur ies Brookesia de Madagascar. 4. Une serie de petits Brookesia de Nosy Mangabe. Bulletin du Muséum National d Histoire Naturelle, Paris 41: Brygoo, E. R., Domergue, C. A Notes sur les Brookesia de Madagascar description de deux especes nouvelles: B. lambertoni n.sp. et B. therezieni n.sp. Bulletin du Muséum National d Histoire Naturelle, Paris 41: Burt, C. E., Burt, M. D South American lizards in the collection of the American Museum of Natural History. Bulletin of the American Museum of Natural History 61(7):
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