A percepção do ritmo entre possibilidades sonoras e visuais
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- Henrique Farias Tomé
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1 A percepção do ritmo entre possibilidades sonoras e visuais Samira Machado de Oliveira 1 Resumo Com base em conceitos sobre os elementos fundamentais das linguagens visual e sonora, é possível perceber fenômenos que surgem em função das composições com eles construídas. Um deles é o ritmo, sobre o qual se pode traçar algumas relações entre o ritmo visual e o ritmo sonoro. Num segundo momento, com auxílio de textos sobre a obra do artista, foram identificados aspectos rítmicos em uma obra de Paul Klee. Palavras-Chave: ritmo sonoro; ritmo visual; Paul Klee. Abstract Based on some concepts about the fundamental elements of visual language and of language of sound, it is possible to perceive phenomena that occur due to the composition of them. One of these is the rhythm, on which some definitions are presented in a way that become perceptible some possible relationships between the visual rhythm and sound rhythm. In a second moment, based on previous considerations, rhythm aspects in Klee s work were identified. Key Words: sound rhythm; visual rhythm; Paul Klee. 1. Paralelos entre duas linguagens e a percepção do ritmo Este texto é resultado do recorte de uma pesquisa de mestrado que procura relacionar as linguagens visual e sonora. O interesse nessas relações veio inicialmente de uma formação acadêmica na área do design gráfico, que possibilitou acesso à conteúdos e imagens da arte, bem como aos complexos mecanismos que atuam numa composição visual. Os conhecimentos de música, provenientes de uma formação livre em violino, despertaram questões sobre quais relações poderiam ser traçadas entre essas duas linguagens, dotadas de estruturas completamente diferentes mas com muitos fenômenos em comum. A procura de diálogos entre as diferentes linguagens na arte não é uma questão que pertence somente aos dias atuais e já foi explorada por artistas como Paul Klee e Wassily Kandinsky. 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC. É Bacharel em Design Gráfico pela mesma universidade. Atualmente realiza projeto com foco nas relações entre as linguagens visual e sonora. samirowisky@gmail.com 1
2 Kandinsky, cuja formação inicial foi em Direito, optou pela vida de artista depois de alguns acontecimentos, entre eles uma experiência que viveu ao assistir a representação de uma ópera de Wagner, Lohengrin, no Teatro Real de Moscou. Düchting (2005) conta que a instrumentação de sons, até então inéditos para ele, o comoveu profundamente e cita algumas palavras do artista: Imaginei todas as minhas cores, elas estavam mesmo à frente dos meus olhos. Linhas selvagens, quase frenéticas, desenhavam se à minha frente (KANDINSKY apud DÜCHTING, 2005, p.10). Düchting (2005, p.10) conta ainda que Esta experiência sinestésica abriu a Kandinsky as portas para o poder da música e, simultaneamente, a possibilidade de pressentir os poderes ainda por descobrir da pintura. As relações que ele não apenas supunha, mas que considerava realmente existentes, entre as cores e os sons e a música e a pintura fascinavam-no de tal forma que esta correpondência secreta da arte se tornou a chave principal da sua convicção artística, para não dizer, o ponto de partida de toda a sua pintura. Em suas obras, Kandinsky procurou desenvolver algumas possibilidades de relações entre os elementos da música e da pintura, como correspondências entre cores e notas musicais. Klee, por sua vez, nasceu e se criou numa família de músicos: seu pai era um professor de música e sua mãe era cantora. Klee tornou-se violinista e permaneceu em contato com a música durante toda a sua vida. Düchting (2008) afirma que a música foi sempre o elemento norteador da vida de Klee, que nunca a considerou apenas uma forma artística de entretenimento. O processo de relacionar diferentes linguagens na arte pode contribuir positivamente para os processos cognitivos humanos. Em termos perceptivos, Schafer (1991) observa que os sentidos humanos foram fragmentados para que se pudesse aguçar os mecanismos da percepção, a fim de que certas sutilezas se tornassem apreciáveis. Ou seja, a fragmentação possibilitou uma especialização dos sentidos. O estudo da música, por exemplo, é útil como um meio de cultivar a capacidade auditiva, através da observação e análise de seus fenômenos acústicos específicos. No entanto, Schafer (1991, p. 291) afirma que uma total e prolongada separação dos sentidos resulta em fragmentação da experiência. Perpetuar esse estado de coisas pela vida a fora pode não ser saudável. Gostaria que considerássemos mais uma vez a possibilidade de síntese das artes. Como Schafer, Arnheim (1996), ao tratar da linguagem visual, aponta a importância de aprimorar a percepção de outros sentidos para o desenvolvimento de outras linguagens. Segundo ele, compreender as coisas através de outros sentidos é um poder que tem sido negligenciado, de forma que, na dificuldade de descobrir significado naquilo que se vê, os indivíduos recorrem ao familiar meio da linguagem verbal. O próprio desenvolvimento da 2
3 linguagem verbal, entretanto, depende de outros mecanismos perceptivos como a visão, a audição e o tato. Se os processos cognitivos humanos dependem da percepção dos fenômenos que ocorrem ao redor dos indivíduos, é imprescindível que se conheça os diferentes mecanismos perceptivos que atuam nesses indivíduos e, a partir daí, as possibilidades expressivas que oferecem as diferentes linguagens humanas, assim como suas possíveis inter-relações. A linguagem visual e a linguagem sonora dependem de órgãos distintos para a captação de sensações e para a percepção de estímulos do ambiente. Cada uma destas linguagens possui códigos e regras, o que possibilita seu registro, seu aprendizado e análise. Apesar de matrizes distintas, são muitos os fenômenos que ocorrem em ambas as linguagens, o que permite traçar alguns paralelos entre som e imagem, entre música e artes visuais. Ao deparar-se com uma imagem, um observador pode, através de alguma análise, identificar elementos que são relativos à sua composição. O ponto, a linha e o plano foram apontados por Kandinsky (2006) como os elementos básicos da composição visual. Além destes elementos, Ostrower (2004) fala a respeito da superfície, do volume, da cor e da luz como elementos fundamentais da composição visual. Aqui, algumas considerações a respeito desses elementos se fazem necessárias. Kandinsky (2006) compara o ponto geométrico ao silêncio, uma herança semântica da linguagem verbal, onde sua ocorrência no texto escrito marca uma pausa no discurso. Entre diversas definições que se pode apresentar, o ponto geométrico pode ser percebido como uma forma concisa que se mantém firme no espaço. Uma linha surge do resultado da atuação de uma força aplicada em um ponto, que o empurra para alguma direção. Ostrower (2004) explica que a linha nasce do poder de abstração humana e configura apenas uma dimensão no espaço, bem como estabelece uma direção de movimento. A superfície, por sua vez, abrange duas dimensões no espaço e surge do fechamento de algumas linhas num contorno ou, bem como pode ser definida por uma área interior. O volume surge da relação que é estabelecida entre superfícies e abrange três dimensões no espaço, ultrapassando o que Ostrower (2004) chama de plano pictórico. Ela considera elementos mais dinâmicos o volume, a luz e a cor, quando comparados à linha e à superfície. De modo que, enquanto o ponto, a linha e a superfície estão diretamente ligados ao plano pictórico, o volume, a luz e a cor ultrapassam a abrangência desse plano. 3
4 A luz surge do contraste formal entre claro e escuro, que gera efeitos de profundidade, como a sensação de algo que avança ou recua no espaço. A cor é percebida principalmente com base nas relações que entre elas se estabelecem. Ostrower (2004) explica que a cor difere dos outros elementos expressivos pois dificilmente se consegue imaginar seus efeitos visuais. Suas propriedades são percebidas somente quando vistas diretamente e sua percepção vai depender do contexto visual no qual ela está inserida. Para estes autores, os elementos citados são considerados os elementos básicos da composição visual. Da mesma maneira que estes elementos são identificados nas mais diversas imagens, uma música vai constituir-se de som, que também possui atributos básicos tais como altura, timbre e amplitude. O som é uma onda mecânica, originada por qualquer elemento que produza uma oscilação de ar acima de uma frequência específica. A modulação das frequências emitidas vai definir diferentes alturas para os sons, o que dá origem às sete notas musicais conhecidas e utilizadas na música ocidental. O timbre é o atributo que confere individualidade ao som. Ele permite que se possa diferenciar um mesmo som quando este é emitido por diferentes instrumentos. Schafer (1991) considera o timbre a cor do som. Sem os timbres, o som é uniforme. A amplitude é o que vai diferenciar o som forte de um som fraco. Schafer (1991) relaciona as oscilações de amplitude com a perspectiva visual. Segundo ele, é a amplitude que vai transmitir a ilusão da perspectiva na música. Estes são alguns dos elementos com os quais se constrói uma composição sonora. Trein (1986) observa que as composições, por sua vez, são caracterizadas por três elementos fundamentais: a melodia, a harmonia e o ritmo, abordados mais adiante. Numa composição, seja ela visual ou sonora, é possível perceber características que vão surgir em função do conjunto. A teoria da Gestalt, que aborda os fenômenos em termos de relações, especificou uma série de situações que são identificáveis em composições visuais, dependendo da disposição e da relação que se estabelece entre os elementos básicos da linguagem visual. Ostrower (1998, p. 70) afirma que um dos princípios básicos da teoria da Gestalt é uma definição formulada pelo teórico Max Wertheimer, que diz que a soma do todo é maior do que a soma das partes. Isso significa que numa composição vão surgir fenômenos expressivos que até então não apareciam nos elementos isolados, pois o todo não é simplesmente a soma desses elementos, mas sim o resultado de uma integração que é formada entre suas partes. Em outras palavras, a percepção que se tem dos elementos isolados se 4
5 modifica quando o todo, resultado da integração desses elementos isolados, passa a ser o objeto da percepção. Dessa maneira, ao arranjar numa composição elementos básicos da linguagem visual pode-se perceber efeitos como simetria, direção, agrupamento, entre outras possibilidades. Dessa mesma maneira, uma composição sonora também vai acarretar o surgimento de novos fenômenos em função do conjunto e das relações formadas entre os elementos básicos da linguagem sonora. A partir dessas relações pode-se construir melodias, obter harmonia, dissonância e outras diversas possibilidades acústicas. Das diversas relações que se estabelecem entre os elementos básicos dessas linguagens, surgem muitas coincidências de linguagem que transitam em seus aspectos compositivos. Uma dessas coincidências é o fenômeno do ritmo, que é abordado neste texto. A palavra ritmo está relacionada à diversos fenômenos e possui muitas interpretações em diferentes campos de estudo. Aqui, entretanto, aborda-se o ritmo relacionado às composições em linguagens visual ou sonora. Embora Lupton e Phillips (2008) afirmem que estamos familiarizados com o ritmo graças ao mundo do som, esse fenômeno não ocorre exclusivamente na música ou num ambiente sonoro. É possível encontrar referências sobre o ritmo sob diversas outras denominações: pulsação, cadência, batimento, repetição, sequência e mais. A multiplicidade de definições desse fenômeno demonstra sua abrangência. O ritmo é parte da experiência cotidiana humana. O caminhar dos animais e dos seres humanos tem ritmo próprio, assim como os batimentos cardíacos, as estações do ano, as marés, a passagem das horas, os diferentes idiomas falados no mundo: A vida biológica experimenta o ritmo em muitas manifestações da natureza. Os seres humanos, em contato com os sons, são capazes de identificar auditivamente ritmos sonoros. Da mesma forma, os olhos são capazes de perceber ritmo visual nas paisagens e nas imagens que observam. 2. O ritmo sonoro Com origem no termo grego Rhythmos, Kiefer (1984, p.23) diz que o ritmo é aquilo que flui, aquilo que se move. Sua explicação sobre o fenômeno envolve principalmente três noções: fluidez, medida e ordem. A fluidez é uma noção ligada ao que gera movimento. Entretanto, Kiefer (1984) explica que se fala em ritmo a partir do momento em que se aplica descontinuidade a um fluxo, por exemplo, um som contínuo. É aí que entra a noção de 5
6 medida, aplicada aos fragmentos daquilo que flui. A comparação entre as medidas dos fragmentos e dos intervalos gerados possibilita a percepção da descontinuidade. Ou seja, criando intervalos de pausa num som contínuo é possível obter a noção de medida, relacionada à duração dos fragmentos do som e à duração das pausas aplicadas no fluxo. Quando se fala de ritmo geralmente pressupõe-se uma ordenação entre os elementos que o geram, que podem ser iguais ou apenas semelhantes. A ordenação geralmente vem acompanhada de uma idéia de regularidade, embora o ritmo também possa ser irregular. Schafer (1991) explica que o ritmo regular sugere divisões cronológicas do tempo que ele chama de real e que se baseia na marcação do relógio uma divisão mecânica. O ritmo irregular altera essa exatidão, de modo a encurtar ou esticar o tempo do relógio. Essa irregularidade lida como o que ele chama de tempo virtual ou psicológico. Schafer (1991) relaciona ainda o ritmo com a noção de direção, pois é um fenômeno que articula percursos. Uma melodia, por exemplo, sugere direção, tal qual uma linha visual. Ao adicionar intervalos numa linha visual cria-se o ritmo, da mesma maneira que, ao modular intervalos ou sons sucessivos numa melodia, tambem é possível expressar de maneira análoga o fenômeno. Pode-se perceber o ritmo musical de diversas maneiras. As duas principais são pela alteração da duração do som, através da fragmentação ordenada, regular ou irregular, de um som contínuo, ou pela alteração da intensidade ou amplitude do som, entre som forte e som fraco. Além disso, a alteração de timbre também pode gerar ritmo, bem como a variação na altura dos sons, que se conhece por notas musicais. Kiefer (1984) observa que essa última variação possibilita a construção melodias que podem ascender e descender de modo a originar uma ondulação melódica ritmada. Em outras palavras, a melodia pode ser percebida como uma organização de sons sucessivos. Os próprios sons, quando articulados em diferentes notas, transmitem uma sensação de ritmo, pela variação nas alturas das frequências. O caráter de uma melodia é diretamente influenciado pelo ritmo quando este é aplicado na duração dessas notas ou em outros aspectos, como o timbre (TREIN, 1986). Numa melodia, os fragmentos podem ser mínimos, como notas soltas, ou mais extensos, como os que são formados por linhas melódicas ou acordes. Kiefer (1984) compara essas unidades musicais com as unidades da poesia, onde além das sílabas existem agrupamentos de palavras ou versos. O ritmo transita e pulsa em todas estas unidades. Trein (1986) numa analogia com a imagem, observa que a melodia pode ser comparada à linha e é percebida 6
7 como um aspecto horizontal da música, enquanto a combinação de melodias sobrepostas que soam simultaneamente leva à construção da harmonia, o aspecto vertical da música. A complexidade do ritmo na música advém justamente do fato de que todas essas possibilidades rítmicas frequentemente aparecem sobrepostas. Por exemplo: a variação de amplitude sonora pode ocorrer simultaneamente junto à variação de altura das notas, originando crescendos e descrescendos de volume junto com oscilações melódicas. Kiefer (1984) diz que se intitula plástica musical o conjunto dessas interações rítmicas e afirma que isso demonstra que o ritmo, mais do que simples padrão de marcação ou ordenação de um conjunto de elementos no tempo, é um conceito bastante complexo e um dos mais importantes de qualquer obra musical, pois pode ditar seu estilo, seu caráter, seu andamento, entre outros. De maneira semelhante, o ritmo visual também possui essa complexidade. Ele pode ser percebido em diferentes níveis, através da progressão de cores, de luz, com repetição de linhas paralelas ou de outros elementos, em diferentes pulsações simultâneas, conforme se vê adiante 3. O ritmo visual O ritmo visual está atrelado a diferentes aspectos da percepção. Lupton e Phillips (2008) relacionam o ritmo com a noção de equilíbrio. Elas afirmam que as pessoas têm com o equilíbrio uma relação intuitiva e implícita por ele ser um aspecto fundamental da condição humana: O equilíbrio físico é primordial para que se consiga ficar de pé, por exemplo, bem como, psicologicamente, é um aspecto buscado na vida pessoal e profissional. A noção de equilíbrio visual está ligada à distribuição proporcional de pesos visuais em busca de uma estabilidade. Estabilidade, porém, não é sinônimo de estaticidade: É possível construir equilíbrio de diferentes maneiras, estáticas ou dinâmicas. Uma composicão simétrica é considerada estática por distribuir igualmente os pesos visuais entre os dois lados de um eixo. A concentração ou escassez de peso em apenas um dos lados do eixo vai tornar necessária uma compensação visual do outro. Compensando os pesos é possível atribuir equilíbrio e estabilidade à uma composição assimétrica. A diferença aqui será a tensão espacial que se formará em cada caso. 7
8 Exemplos de composição: À esquerda: simetria. À direita: equilíbrio dinâmico. Ostrower (2004) fala da tensão espacial como aquilo que assegura a unidade interior da imagem, a integridade do conjunto, bem como assegura também que nossa atenção não se disperse. Ela diz que o criador de uma composição visual geralmente desdobra os elementos visuais em dois principais caminhos: em contrastes, geradores de tensão, ou em semelhanças, geradoras de sequências rítmicas. O contraste se comporta como uma interrupção no curso do movimento visual. Ele marca uma subdivisão na imagem e direciona a atenção do olhar para algum elemento da composição. O contraste acontece quando ocorre um confronto de forças, uma oposição formal como o claro x escuro, por exemplo é a expressão de um conflito. Através do contraste se articula o espaço. Já as semelhanças geram repetições rítmicas. Ostrower explica que a percepção compreende as semelhanças como uma espécie de fundo, enquanto os contrastes passam a ser figura. Através de semelhanças se articula o tempo. Espaço e tempo são os aspectos fundamentais contidos no movimento. Para Kandinsky (2006), a repetição de um ponto geométrico no plano cria um ritmo primitivo. Da mesma maneira, pode-se produzir pontos em música com diversos instrumentos tais como o tambor ou o triângulo. A partir de partituras Kandinsky fez algumas analogias pictóricas, traduzindo em pontos algumas notações musicais, de forma a representar não só o ritmo como também a duração e a altura das notas. 8
9 Wassily Kandinsky. Sem título. Tradução de partitura musical em pontos pictóricos. Além da multiplicação de um ponto, Kandinsky (2006) exemplifica ritmos que podem ser criados com a repetição de linhas. Para ele, a linha, em comparação ao ponto, costuma expressar de maneira mais perceptível o elemento-tempo. Numa repetição de linhas, os intervalos entre elas podem ser idênticos, podem aumentar ou diminuir regularmente, bem como podem ser intervalos irregulares. Cada uma dessas configurações vai gerar ritmo de diferentes maneiras. Kandinsky (2006) vê a repetição de intervalos idênticos como um reforço quantitativo, o que na música seria o equivalente a diversos instrumentos produzirem um mesmo som de maneira uníssona. Os ritmos com intervalos irregulares criam o que ele chama de ressonância qualitativa, o que corresponderia em música à repetição de um mesmo tema alguns compassos adiante ou por um outro instrumento. Wassily Kandinsky. Sem título. À esquerda: ritmo regular - reforço quantitativo. No meio e à direita: ritmo irregular - ressonância qualitativa. Além disso, ele afirma que mais complexo é o ritmo que combina cruzamentos quantitativos e qualitativos. Como outros autores, Kandinsky (2006) vê a linha como o modo de expressão dominante na música, uma analogia à melodia. 9
10 Wassily Kandinsky. Composição oposta de uma linha curva com uma linha quebrada. Cruzamento quantitativo e qualitativo. 4. Paul Klee e o aspecto rítmico na pintura Paul Klee realizou em suas pinturas e em seus diários diversos registros sobre as possíveis relações entre a música e a pintura. É o que afirma Düchting (2008), que percebe na obra de Klee uma procura incessante por analogias entre essas linguagens. O autor afirma que Klee se interessou particularmente pelo ritmo, ao enxergar nele uma possibilidade de traçar um paralelo entre música e pintura: Para Klee, o ritmo marcava o movimento do tempo na música mas também nas artes visuais. O autor observa que Klee não estava sozinho em seu interesse pelo ritmo: Havia em sua época um considerável interesse pelo fenômeno em resposta a alguns estudos realizados por Bergson e Nietzsche a respeito da importância do ritmo nas artes visuais. Düchting (2008) explica que a compreensão de Klee a respeito do ritmo se formou a partir de estudos sobre tema e sobre psicologia da percepção, mas também da sua habitual apreciação musical. Para Klee, o grande mérito da expressão musical eram as estruturas claramente articuladas e a refinada variação de temas, aspectos que ele encontrou nas fugas polifônicas. O termo polifonia, em música, refere-se a várias vozes. A pintura que Klee chamou de polifônica, porém, era para ele superior à música no sentido de que possuía uma dimensão espacial a mais. A partir dos conceitos abordados previamente é possível identificar algumas expressões rítmicas nas composições de Klee. Aqui toma-se como exemplo a aquarela Fuga em Vermelho, de Pode-se destacar inicialmente as formas em vermelho que estão em 10
11 contraste com o fundo preto. Cada forma torna-se um ponto de interrupção do curso visual, gerando intervalos no fluxo do olhar. Aqui podemos retomar a noção de um ritmo que é gerado por interrupções em um fluxo, colocada por Kiefer (1984). Cada uma destas formas é composta de diversas camadas sobrepostas que formam projeções numa escala de cor. A projeção das cores em escala de valor tonal se inicia no fundo preto, passa ao cinza, ao vermelho e depois a um tom de bege. Paul Klee. Fuga em vermelho Düchting (2008) afirma que o caráter temporal é claramente indicado pelo modo como as cores se projetam do fundo escuro e se tornam mais saturadas. O posicionamento das sobreposições e a gradação de cores também confere uma ilusão de perspectiva ou profundidade às formas: As formas de cor mais saturada localizam-se acima das formas mais escuras, que se localizam mais próximas ao fundo preto. O elemento rítmico também se forma pela própria repetição das formas semelhantes entre si e entre elas mesmas com suas próprias projeções. É possível perceber na forma, com seu conjunto de projeções em camadas sobrepostas, a sugestão de um percurso na imagem, como um caminho que a forma tem percorrido, uma espécie de sequencialidade. Há repetição aqui de diversas outras maneiras: Nas formas vermelhas arredondadas, nas formas vermelhas triangulares ou circulares. A repetição também acontece pelas cores os vermelhos, os 11
12 cinzas, os tons de bege. Há repetição igualmente na sugestão direcional, que leva o movimento sempre num sentido horizontal. Também há um padrão na projeção de cores e camadas, que ocorrem sempre na mesma ordem em todas as figuras. Por estes padrões jé se percebe que a pulsação do ritmo pode ocorrer em diversos aspectos da composição simultâneamente, como ocorre também na música. Pode-se ainda decompor as formas sólidas para analisar somente seus contornos. Assim, percebe-se na repetição das linhas os reforços quantitativos, quando há entre elas intervalos regulares, conforme explica Kandinsky, bem como ressonâncias qualitativas, quando há aumento ou diminuição, dando irregularidade a esses intervalos. Disso se percebe que entre linguagem visual e linguagem sonora são possíveis certas analogias e inter-relações. O ritmo nas composições musicais ultrapassa a simples forma de marcação do tempo, pois ele está diretamente relacionado aos aspectos plásticos da música no que diz respeito à suas melodias, seu caráter expressivo ou seu andamento. Afinal, alterando o ritmo que se relaciona com as alturas, com a amplitude do som ou com seu andamento, todos os aspectos anteriormente citados são alterados. Na imagem o ritmo dita percursos do olhar, pois a cada contraste ou tensão surgem interrupções do percurso. Um andamento mais fluído pode ser conseguido trabalhando com menos contrastes de cores, dimensões e outros. A simultaneidade do ritmo, que em música se manifesta em diversas, também ocorre na pintura, conforme se percebe na aquarela de Paul Klee. E daí advém sua complexidade: Assim como na música, onde o ritmo pode pulsar simultaneamente na sucessão de notas, em sua duração e na variação de amplitude, na pintura não é diferente: O ritmo surge igualmente na variação de cores, na repetição de linhas e nos contrastes entre figura e fundo, entre claro e escuro, na profundidade, na repetição de formas, na multiplicidade dos pontos, entre outros fenômenos a serem descobertos e estudados. Referências Bibliográficas ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: Uma psicologia da visão criadora. 10ª ed.são Paulo: Pioneira, DÜCHTING, Hajo. Kandinsky. Köln: Paisagem, Paul Klee: Painting Music. London: Prestel, KANDINSKY, Wassily. Ponto, linha, plano. Lisboa: Edições 70,
13 KIEFER, Bruno. Elementos da linguagem musical. Porto Alegre: Movimento, LUPTON, Ellen; PHILLIPS, Jennifer Cole. Novos fundamentos do design. São Paulo: Cosac Naify, OSTROWER, Fayga. A sensibilidade do intelecto. Rio de Janeiro: Campus, Universos da Arte. 24. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, TREIN, Paul. A linguagem musical. Porto Alegre: Mercado Aberto,
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