O cinema e as artes visuais Desenvolvimento da literacia fílmica através das artes nos currículos do ensino básico
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- Dina Peixoto
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1 O cinema e as artes visuais Desenvolvimento da literacia fílmica através das artes nos currículos do ensino básico André Mantas Num contexto de educação pelos media, o cinema pode ser considerado como um das mais completas linguagens artísticas e visuais, além de enraizado na cultura visual das crianças e jovens. Pretende-se mostrar exemplos de como o cinema de Georges Méliès, por estar próximo da infância, pode ser operacionalizado nos currículos das disciplinas de artes visuais no ensino básico, estimulando a criação artística e contribuindo significativamente para uma alfabetização visual que se torna cada vez mais urgente. Este projeto foi desenvolvido com uma turma de 5º ano da Escola Básica Professor Paula Nogueira, Olhão, na disciplina de Educação Visual e Tecnológica (EVT) e na extinta área curricular não disciplinar de Área de Projeto. O presente texto não se destina a uma descrição metodológica da Unidade de Trabalho desenvolvida, que procurou integrar o cinema com as artes plásticas, mas sim refletir de um modo mais geral sobre a presença e integração do cinema nos currículos das disciplinas de artes visuais no ensino básico e secundário. Tendo sido desenvolvido no 2º ciclo, esta reflexão pretende também lançar pontes para projetos semelhantes noutros níveis de ensino, visando o desenvolvimento de uma literacia fílmica nas crianças e jovens. Quando falamos em cinema e escola, torna-se necessário enquadrá-lo nos currículos das disciplinas de artes visuais no ensino básico e secundário. Um aspeto é transversal a todos as disciplinas, mesmo fora do âmbito das artes: a utilização do cinema como recurso para motivação de uma Unidade de Trabalho ou tema a ser abordado. Os próprios programas curriculares, nomeadamente das disciplinas do secundário, sugerem vários filmes relacionados com os conteúdos ou áreas de exploração a trabalhar. No entanto, o cinema como conteúdo específico de trabalho surge também em muitas disciplinas. Em EVT e Educação Visual no 3ºciclo pode ser trabalhado como conteúdo, dado a questão do movimento e da sua representação visual
2 fazer parte dos programas. No caso de Educação Visual e Desenho A, no secundário, é mesmo sugerido o desenho de sequenciais visuais em formato de story-board, assim como a construção de objetos óticos para ilusão do movimento, aludindo ao cinema de animação. Nas disciplinas de História da Cultura e das Artes, o cinema surge como conteúdo programático, nomeadamente a sua invenção no contexto da época, assim como alguns casos paradigmáticos, como a personagem Charlot e a apropriação do cinema nas vanguardas artísticas no início do século XX. Em História das Artes, disciplina dos cursos tecnológicos, a presença do cinema no currículo é mais extensa, valorizando-se alguns casos específicos de realizadores importantes na história do cinema, assim como alguns percursos diferentes que o mesmo assumiu na contemporaneidade. É no entanto, na disciplina de Oficina Multimédia que o cinema tem um papel mais presente nos currículos, configurando-se como conteúdo de trabalho nas suas várias vertentes. Numa época onde se fala da implementação de um Plano Nacional de Cinema no sistema de ensino português, é importante referir uma experiência que tem sido desenvolvida no Algarve há 14 anos, e que constitui um modo diferente e mais ativo de utilização do cinema nas práticas educativas: o JCE (Juventude, Cinema e Escola). Sob o lema de Ver, Aprender e Amar Cinema, este projeto promove as aprendizagens da história do cinema e da sua linguagem técnica e artística, através da visualização de três filmes por ano em sala de cinema. Os conteúdos a trabalhar estão relacionados com os programas curriculares das disciplinas, sendo as artes visuais uma área com fortes potencialidades para o desenvolvimento de trabalhos de exploração dos filmes. A longevidade e o sucesso deste projeto no Algarve resultaram na criação da disciplina artística opcional de Cinema no 3º ciclo, constituindo-se um caso único no país. Nesta nova área curricular, com um programa e manual próprio, o cinema é a base para uma série de aprendizagens desenvolvidas em interdisciplinaridade. Independentemente da forma como é trabalhado, seja como conteúdo disciplinar específico ou como recurso didático, as potencialidades pedagógicas do cinema são evidentes. Qual é, então, a sua importância nos currículos escolares? Convém recordar que a educação através dos media, visando o desenvolvimento de uma literacia mediática nas crianças e jovens, tem sido umas das principais recomendações das instituições e Comissão Europeia em matéria de educação. Nesta época globalizada onde a facilidade de acesso às imagens e informação, assim como a sua consequente apropriação e
3 manipulação, torna-se urgente dotar as crianças e jovens de mecanismos que lhes permitam saber interpretar e conhecer esse excesso de imagens e informação audiovisual. Elas estão imersas neste mundo, mas o fácil acesso não é sinónimo de conhecimento ou aprendizagem significativa. Nas recomendações das instituições europeias neste âmbito, o cinema surge como meio audiovisual privilegiado, por conter uma linguagem e códigos próprios, além de ser um meio integrador de várias artes. Conhecendo e aprendendo a dominar esta linguagem específica, os alunos podem aprender gradualmente a interpretar e saber distinguir outro tipo de imagens e meio de comunicação audiovisual. A questão da integração de várias artes, com uma linguagem técnica e artística bem definida, além de códigos próprios, é outra das mais importantes razões para a importância do cinema nas escolas. Através dele há uma infinita possibilidade de exploração de várias formas de arte, de comunicação, e de temas e conteúdos de várias áreas disciplinares. Os exemplos comprovados de sucesso na educação são outro dos motivos que justificam a sua importância. O projeto JCE tem 14 anos e já envolveu quase todas as escolas do Algarve; no entanto, devemos pensar que em outros países europeus já têm sido desenvolvidos projetos similares há mais de 20 anos, com resultados e reflecções positivas. Por fim, é importante referir que o cinema é um dos hábitos culturais mais consumidos pelas crianças e jovens, fazendo pare da sua cultura juvenil, marcadamente visual. A democratização do cinema é um aspeto importante: a sala de cinema deixou de ser o local privilegiado de visualização dos filmes, a favor da televisão e internet. Se menosprezarem este facto, não tirando partindo dele, os professores arriscam cada vez mais a aumentar a barreira entre as vivências e conhecimentos dos alunos das atividades realizadas nas escolas. O cinema faz parte da cultura visual dos nossos alunos, têm referências e um imaginário construído pelo próprio cinema; será sempre uma maisvalia a ser explorada nas disciplinas do currículo nacional. Os alunos da turma onde este projeto foi desenvolvido estavam integradas no projeto JCE, o que nos permitiu aprofundar os conhecimentos e tirar partido de alguma literacia fílmica já apreendida durante o seu percurso no 1º ciclo. O cinema foi a base de uma Unidade Didática que se estendeu a várias formas de expressão artística como o desenho, pintura, escultura ou audiovisual. O grande desafio seria o seguinte: como explorar o cinema de Georges Méliès numa unidade didática onde o desenvolvimento
4 da criatividade fosse o principal objetivo? De que forma um cinema completamente afastado dos hábitos culturais dos alunos, imersos no digital e nas novas tecnologias, podia ser o mote para a criação de um trabalho de expressão artística? E como relacionar essas aprendizagens com os conhecimentos a adquirir sobre cultura cinematográfica? Importa justificar a escolha de Georges Méliès para este projeto. Como se disse em cima, o seu cinema está completamente desfasado dos hábitos de consumo de cinema dos alunos da turma: é um cinema antigo, a preto e branco, com uma linguagem ainda em formação, e onde só o encontramos disponível se tivermos um objetivo especifico de visualização. A questão da importância de Méliès para a cultura cinematográfica e geral foi uma das justificações, perfeitamente óbvia e plausível. Nos últimos meses, Georges Mélies tornou-se mais presente na cultura visual contemporânea, através da reedição do filme de 1902, Voyage dans la Lune em cópia restaurada e colorida, com uma banda sonora original composta pelos Air. Méliès foi também um dos personagens do filme Hugo, de Martin Scorsese, que levou esta fase da história do cinema ao público mainstream. Por outro lado, o percurso profissional de Méliès e as características do seu cinema tornam-no perfeitamente identificável com o universo infantil. O passado de ilusionista, a forma como encarou o cinema e o explorou ao máximo, criando os efeitos especiais e materializando a fantasia e o mundo dos sonhos, as histórias da literatura infanto-juvenil que adaptou e a marcada influência dos espetáculos de massas como o vaudeville ou o circo, aproximam-no do imaginário das crianças. Além disso, utilizou no seu cinema uma série de características que o aproximam não só do imaginário, mas também da linguagem gráfico-plástica infantil. A identificação das crianças com o seu cinema, a que juntam o efeito de surpresa e comicidade pela identificação dos truques e feitos especiais rudimentares e toscos (apenas possível neste contexto digital contemporâneo) torna-se óbvia e perfeitamente aberta à exploração criativa. O contacto com o cinema de Méliès foi o primeiro passo desta grande aventura. A seleção dos filmes procurou respeitar alguns aspetos que se pretendiam explorar, como a temática das histórias ou as influências do realizador. Através deste primeiro contato, foram identificados com a turma alguns elementos próprios do seu universo pessoal, expressos posteriormente através do desenho e pintura. Os alunos desenharam livremente a partir dos filmes, sugerindo-se narrativas ou simples desenhos da imagética própria de Méliès. Apercebemo-nos que a apreensão do seu universo foi uma realidade,
5 permitindo-nos lançar bases para o desenvolvimento da Unidade de Trabalho. Foi realizada uma atividade mais específica sobre o filme Voyage dans la Lune, por ser um marco na obra de Méliès. Os alunos desenharam sobre o filme numa folha coberta com tinta-da-china sobre cera, o que permitiu obter um efeito que remetia aos primórdios do cinema. Os desenhos obtidos nesta fase estiveram na base do projeto para as esculturas. Foram selecionados algumas formas que dizem respeito à imagética de Méliès, como monstros, bruxas, objetos humanizados, meios de transporte ou dragões. Cada aluno desenvolveu o seu projeto pessoal com vista à transformação do desenho numa forma tridimensional. Surgiram assim esculturas construídas com a técnica do papel maché, ao mesmo tempo que eram explorados os conteúdos de forma e estrutura. Foi interessante verificar como os alunos deram cor às suas obras, dado que o cinema de Méliès não tem cor. O desafio seguinte foi aquele que ocupou mais aulas e constituiu o principal resultado de todo este longo processo. Iniciou-se a exploração da linguagem técnica de Méliès, a partir da identificação dos efeitos especiais utilizados nos filmes. Facilmente identificáveis pelos alunos, como foi referido antes, foram reproduzidos através de uma série de experiências com material básico, como uma câmara fotográfica ou de filmar e até mesmo telemóveis. Partindo de um plano único e fixo, uma característica de Méliès, os alunos recriaram os truques do realizador editando posteriormente as imagens no Windows Movie Maker. O desafio foi conseguir o domínio dos efeitos especiais através de material e software perfeitamente acessível aos alunos, através de uma fácil utilização. O interesse e entusiasmo foram evidentes, pois surgiram muitas filmagens feitas em casa recriando efeitos especiais mesmo através de um telemóvel. As experiências e os pequenos vídeos realizados nas aulas ajudaram na conceção do próximo grande desafio: a produção, realização e interpretação de um filme pela turma, baseado no mundo mágico de Méliès. As regras foram bem definidas: teria apenas de existir um plano único e fixo; todos os alunos da turma teriam de participar como atores, e finalmente deveriam ser introduzidos elementos que nos remetessem para o cinema de Méliès. O processo foi construído sempre em grupo, em EVT e Área de Projeto. O argumento foi definido por toda a turma e reescrito ao longo das aulas. Um aspeto interessante foi a fuga dos alunos do universo mágico e fantasioso de Méliès (como nos filmes no fundo do mar, ou no espaço). A turma preferiu centrar a narrativa no espaço
6 que mais lhes diz respeito: a sala de aulas. O universo mágico que foi pedido seria dado pela utilização dos efeitos especiais na própria história; as próprias roupas que surgem no filme são as normalmente utilizadas pelos alunos, exceto nos dois personagens principais: o professor Anastácio Bonifácio e o Diabinho. De referir também que a construção do argumento tendo como base a dualidade destes personagens mostra como os alunos apreenderam o cinema de Méliès: em grande parte dos filmes do realizador, a ação gira à volta de um personagem principal (quase sempre o próprio Méliès) e de um antagonista que lhe faz frente. No argumento, tentou-se também explorar algumas características dos próprios alunos: alguns surgem a desenhar e há uma cena de malabarismo. A literacia fílmica dos alunos também esteve presente: durante a construção do argumento, um aluno insistiu em citar Chaplin, através da recriação da cena com o globo do filme O Grande Ditador. A improvisação durante as gravações foi valorizada, o que resultou em profundas alterações ao argumento original. Foi interessante verificar como os próprios alunos discutiam durante as gravações sobre a forma mais eficaz de filmar com efeitos especiais. O objetivo do desenvolvimento da linguagem técnica e artística pareceu-nos no bom caminho. Através do resultado final, um filme com 12 minutos editado no Windows Movie Maker, é possível refletir sobre as enormes potencialidades de um projeto deste tipo: aquelas que foram observadas e outros domínios que poderiam ser explorados. A interdisciplinaridade é umas delas: foi explorada a expressão dramática através dos ensaios dos alunos para recriar a interpretação no cinema mudo; a expressão plástica na conceção dos figurinos e adereços; na História, a própria cultura cinematográfica através do estudo da vida e obra de Méliès, para não falar das aquisições a nível técnico através do domínio das filmagens e material informático. Outros campos poderiam ser
7 explorados, como a música. O pouco tempo que nos restou para a conclusão do projeto impediram a criação de uma banda sonora original. A forma como este projeto foi desenvolvido permite-nos refletir sobre as inúmeras possibilidades de integração do Cinema nos currículos do ensino básico. Mais do que estar exposto nos currículos como conteúdo, ele é uma forma de arte e comunicação privilegiada para o desenvolvimento de competências cognitivas e sociais. Aguardamos com expetativa o Plano Nacional de Cinema, que visa colmatar esta deficiência nos currículos e nas aprendizagens nas escolas, algo que apenas se fazia na região no Algarve e através de alguns projetos pontuais noutras cidades do país. A valorização do cinema no desenvolvimento integral dos alunos, apontando para uma literacia no domínio das imagens, configura-se como um dos principais objetivos educativos nesta era globalizada. O filme está disponível em
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