Abordagem às otites crónicas
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- Célia Affonso
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1 Introdução A maior parte dos casos de otite externa aguda são resolvidos com sucesso utilizando productos polivalentes que incluem um glucocorticóide, uma antimicrobiano e um antifúngico (para Malassezia ) e agentes de limpeza do canal quando necessário. Já os casos de otite crónicas são todo um problema diferente, implicando uma grande desconforto para o animal e sendo causa de frustação para tutores e médicos veterinários devido ao seu difícil maneio. O sucesso destes casos depende da identificação e maneio das causas subjacentes e dos factores que contribuem para a perpetuação e recorrência das otites. É particularmente importante reconhecer o papel da inflamação na otite. Na realidade os agentes patogénicos são raros. Quase todas as infeções são causadas por comensais ( Staphylococcus e Malassezia ) ou ambientais ( Pseudomonas ) oportunistas. Assim, a maioria das infeções são secundárias a uma inflamação pré-existente, corpos estranhos, obstruções ou outros problemas primários. Se a inflamação não for controlada terá início um ciclo vicioso com consequentes alterações patológicas progressivas que podem mesmo inviabilizar o maneio médico sendo, em última análise, necessária uma intervenção cirúrgica. A inflamação crónica também leva a uma maior dificuldade em debelar as infeções e um consequente aumento do risco de resitências.
2 2 Abordagem às otites crónicas Sinais clínicos e otoscopia A avaliação com otoscópio é fundamental. Em caso de doença bilateral, o lado considerado saudável ou menos afetado deve ser examinado primeiro. Esta observação permite-nos ter uma ideia mais correta do estado normal por comparação com a observação do lado alterado. Por outro lado diminuímos a possibilidade de contaminar o lado bom com agentes nocivos do lado mau. Evitamos também que o animal sinta dor logo de início e consequentemente resista à posterior examinação. Idealmente devem existir vários cones assépticos à disposição. A técnica ideal é aquela que permita obter uma visualização completa com menor grau possível de dor e trauma. Uma penetração profunda no canal horizontal só deve ser realizada se for necessário visualizar o tímpano. As lesões presentes, assim como a sua localização, devem ser registadas, nomeadamente as alterações proliferativas, tipo de quantidade de secreções, presença de eritema ou úlceras. O grau de estenose do canal deve ser determinado, uma vez que pode servir de monitorização da evolução do processo com o tratamento. Por vezes o exame otoscópico não permite avaliar corretamente a existência ou não de uma membrana timpânica intacta, sendo necessário recorrer a outros métodos. A otoscopia serve então para a avaliação do estado do conduto auditivo externo, o tipo e quantidade de exsudado e a integridade da membrana timpânica. No entanto, caso o animal tenha muita dor, a otoscopia tem que ser adiada ou ser realizada sobre sedação. Todos os casos de otite aguda devem ser examinados com cuidado para excluir a presença de corpos estranhos ou mesmo Otodectes (embora nem sempre se vejam mesmo quando presentes). As otites podem ser clinicamente classificadas com eritroceruminosas ou supurativas. Qual a diferença? As eritroceruminosas (imagem abaixo, do lado direito) caracterizam-se por presença de eritema, prurido e uma secreção ceruminosa e estão normalmente associadas a sobre crescimento por estafilococos ou Malassezia. Nas supurativas (imagem da esquerda) como o nome indica já temos a presença de pus, há eritema e dor. Estão muitas vezes associadas a infeções por Pseudomonas.
3 A citologia de preparações coradas e não coradas serve para rapidamente confirmar a presença de células inflamatórias, bactérias (cocos ou bastonetes) e mesmo Otodectes. 3 Causas subjacentes Para obtermos sucesso no maneio de otites crónicas temos que ter sempre presentes os seguintes objetivos: Identificação e maneio da causa primária; Correção dos fatores de predisposição (se possível); Remoção do cerúmen/exsudado Maneio das infeções secundárias; e Reversão das alterações patológicas crónicas. De facto há muitas causas de otite externa e vários esquemas de classificação. Uma abordagem prática baseia-se na etiologia e fatores patogénicos envolvidos, dando origem a uma classificação com quatro componentes: fatores predisponentes, causas primárias, causas secundárias e fatores perpetuantes. A maior parte das otites terá uma combinação destes fatores e para um tratamento eficaz a longo termo ou resolução da otite, necessitamos identificar cada um deles. Estas combinações também ajudam a explicar porque em determinados casos um animal com uma doença primária como uma alergia alimentar, que causa otite bilateral, pode ter uma otite unilateral crónica com infeções secundárias. A maior parte dos casos de otite crónica ocorrem porque a causa primária é uma doença que não pode ser curada. A segunda razão mais comum para otites recorrentes é a presença de fatores perpetuantes.
4 4 Fatores de predisposição Aumentam os riscos de surgir uma otite, mas sozinhos não a causam. Eles predispõem para a doença alterando de uma maneira discreta o ambiente normal, fisiológico ou a barreira epitelial do canal auricular. Estas alterações menores em conjugação com causas primárias ou secundárias tornam-se um problema significativo e originam a doença reconhecida clinicamente. Para um maneio bem-sucedido da otite externa, os fatores predisponentes tem que ser reconhecidos e controlados. Exemplos de fatores predisponentes incluem: existência de pelos no canal auricular; pavilhão auricular pendular; humidade, aumento da produção de cerúmen, presença de pólipos, doença imunossupressora sistémica, limpezas agressivas do canal auricular e arrancamento de pelos do canal auricular. Causas primárias São as doenças ou agentes que induzem diretamente a otite. Podem ocorrer isoladamente e induzir otite externa mesmo sem fatores predisponentes ou perpetuantes. As causas mais comuns são: atopia, alergia alimentar, alterações da epitelização, doenças metabólicas ou ácaros dos ouvidos. Parasitas como Otodectes cynotis, Demodex cati, Demodex canis, Sarcoptes scabiei, entre outros, têm sido associados a otite externa em cães e gatos. Não deixa de ser curioso saber que bastam 2 ou 3 otodectes para causar doença clínica, sendo que estes agentes passam muitas vezes desapercebidos. Ocasionalmente certos microrganismos são causa primária de otite externa. No entanto, a maior parte das infeções causadas por bactérias e leveduras, são infeções secundárias. Pontualmente, um bacilo gram negativo como a E. coli ou Pseudomonas pode ser causa primária. Nestes casos, se não foi encontrada uma causa que possa ser considerada primária aceita-se que a etiologia primária possa ser de origem bacteriana. Perante essa hipótese devem ser pesquisadas causas de imunossupressão. Gatos com FIV podem apresentar por exemplo otites bacterianas secundárias. Causas secundárias Não causam doença num ouvido normal. Contribuem ou causam doença em ouvidos que não se encontram normais ou em combinação com fatores predisponentes. Alguns exemplos incluem: Bactérias como Staphylococcus pseudintermedius, Pseudomonas aeruginosa ; leveduras como Malassezia pachydermatis ; produtos tópicos que contenham por exemplo propilenoglicol. Em alguns casos, como no sobrecrescimento por Malassezia, ao eliminarmos o fator predisponente ou a doença primária, o problema secundário resolve-se per se. A citologia é a forma mais adequada para determinar a importância das bactérias. Em caso de suspeita de uma reação adversa ao produto tópico usado,
5 toda a terapia tópica deve ser descontinuada e se necessário deve-se utilizar terapia sistémica de modo a diminuir a inflamação. Factores perpetuantes Ocorrem como consequência da inflamação. Não são específicos de nenhuma doença e encontram-se particularmente associados aos processos crónicos. Uma vez presentes vão exacerbar ou permitir o desenvolvimento de causas secundárias, proporcionando-lhes condições favoráveis ao seu desenvolvimento como a existência de nichos. Constituem exemplos destes fatores a estenose do lúmen, as alterações proliferativas e hidradenite do canal auricular. Nos casos crónicos muitas vezes estão presentes mais do que um tipo de factores perpetuantes (FP). Em casos iniciais de otite basta preocupar-nos com a causa primária, mas após o aparecimento de FP estes necessitam de ser tidos em conta quando da realização do tratamento. Biofilmes, o que são? Porque se fala tanto hoje de biofilmes? Eles podem ser identificados na citologia ou mesmo na otoscopia. Clinicamente apresentam-se como um exsudado aderente, viscoso e de cor escura. Na citologia dão origem a um véu que embebe as bactérias podem mesmo chegar a dificultar a sua visualização. Apesar de tradicionalmente pensarmos nas bactérias como organismos isolados, neste momento é claro que elas existem em comunidades complexas conhecidas como os biofilmes. Estes apresentam um papel cada vez mais reconhecido nas otites supurativas. Infelizmente as estratégias que funcionam bem com bactérias isoladas (planctónicas) podem não funcionar com bactérias em biofilmes. Todos nós já devemos ter tido casos em que estranhámos o antibiótico não funcionar mesmo sabendo que a bactéria era sensível no TSA... O desenvolvimento destas estruturas complexas implica um verdadeiro dialogo entre as bactérias, a passagem de informação (ex. material genético que confere resistência aos antibióticos) e uma grande sintonia quanto ao modus operandis. É desencadeado por situações ambientais inóspitas. De facto, este modo de vida oferece várias vantagens em termos nutricionais e quanto à proteção de predadores ou xenobióticos. No entanto, não se pense que as bactérias nos biofilmes são todas iguais existem diversos microambientes (variações em ph, disponibilidade de nutrientes e potencial oxidativo por exemplo) que originam expressões fenotípicas diferentes mesmo entre bactérias do mesmo clone, além de neles poderem coabitar várias espécies bacterianas. Estas estruturas são dinâmicas e em cada momento há células que deixam o biofilme e outras que a ele se juntam. Estão descritos biofilmes para várias espécies bacterianas incluindo Pseudomonas aeruginosa, Staphylococcus pseudintermedius, Escherichia coli e mesmo para leveduras como Malassezia pachydermatis. Na realidade 99% 5
6 das bactérias podem formar biofilmes se as condições ambientais assim o indicarem. Um estudo recente detetou a presenta de biofilmes em 92% dos casos de otite média em crianças, sendo que estes estavam ausentes nos casos de crianças sem otite média. Porque é que estas questões devem interessar a um clínico? Porque uma melhor compreensão da natureza e do impacto dos biofilmes tem efeitos práticos na clínica do dia-a-dia uma vez que leva a uma terapia diferente e potencialmente mais eficaz e consequentemente um melhor maneio dos pacientes. É de suma importância tentar atacar estas estruturas. 6
7 As bactérias em biofilmes sobrevivem mais facilmente porque são: Mais resistentes aos antibióticos (não conseguem penetrar; agem apenas nas bactérias mais periféricas; potenciação de mecanismos de resistência; não agem em estados de dormência/latência); Mais resistentes ao sistema de defesa,; Capazes de dano devido a uma inflamação sustentada e grave que resulta a falência dos mecanismos de defesa. E quais são as estratégias de tratamento/prevenção? Têm sido propostas várias estratégias para erradicação dos biofilmes incluindo a sua remoção mecânica, utilização de antibióticos tópicos ou terapias adjuvantes, como os surfactantes. 7 Entre as utilizadas em medicina veterinária em otologia encontram-se: N-acetil cisteína TrizEDTA Sulfadiazina de prata Mel Lavagens com aspiração/rompimento e remoção mecânica do biofilme Antibiótico tópico (maior concentração) Cultura e testes de sensibilidade aos antibióticos, há necessidade de as fazer? Não verdadeiramente para a maioria dos casos de otite externa e/ou quando vamos utilizar antibióticos tópicos. Através da citologia podemos identificar com bastante segurança os microrganismos mais prováveis. De facto, os testes de sensibilidade são menos úteis para os fármacos tópicos uma vez que as concentrações utilizadas no conduto auditivo externo são muito superiores ao que os testes in vitro contemplam e em que se baseiam. Tanto Malassezia como os estafilococos são facilmente identificados e a sua potencial sensibilidade pode ser deduzida com base nos padrões de resistências locais ou tratamentos prévios. As bactérias Gram negativas são as mais difíceis de diferenciar recorrendo apenas às citologias. Destas a mais comum é Pseudomonas. Nestes casos o padrão de sensibilidade é mais difícil de estimar, no entanto primeiras infeções são normalmente suscetíveis a aminoglicosídeos tópicos, polimixina B, sulfadiazina de prata e fluroquinolonas. No entanto, a Pseudomonas adquire resistências com muita facilidade e a maioria dos casos de infeções recorrentes são infeções multirresistentes. A realização de culturas e TSA identifica de forma definitiva as bactérias envolvidas na otite o que pode ser útil para microrganismos mais difíceis de
8 diferenciar em citologia como os estreptococos, Escherichia coli, Proteus ou Klebsiella. O conhecimento das suas sensibilidades pode orientar o tratamento. 8 Terapêutica tópica ou sistémica? A terapêutica tópica deve ser escolhida sempre que possível. Ela resulta numa maior concentração dos princípios ativos no conduto auditivo externo. O tratamento sistémico poderá ser uma mais-valia no tratamento de otites externas supurativas e/ou otites médias. A via de administração sistémica está indicada quando o tratamento local não é possível (ex. por estenose ou questões relacionadas com a tolerância do animal à aplicação tópica) e na otite média. É muito importante garantir que uma quantidade adequada de produto é aplicada. Há dispositivos que dispensam já 1ml por aplicação (Easotic, Virbac ou Orsunia, Elanco). A inexistência de metabolização sistémica dos produtos aplicados parece fazer com que eles permaneçam em concentrações elevadas, e durante muito tempo, no conduto auditivo externo. A remoção de material/exsudados purulentos aumenta a eficácia dos antibióticos tópicos, principalmente dos aminoglicosídeos e da polimixina B. No caso da administração sistémica de antibióticos esta deve ter em conta a sensibilidade das bactérias. As fluroquinolonas devem ser reservadas para os casos em que há indicação baseada em TSA. No entanto importa também saber que os antibióticos não são todos iguais quanto à sua capacidade de chegar ao local da infeção. Os antibióticos hidrofílicos (como os beta-lactâmicos) têm um menor volume de distribuição do que os lipofílicos (como as fluroquinolonas ou as tetraciclinas) que podem assim apresentar uma maior capacidade de penetração nos tecidos. O itraconazol via oral pode ser utilizado para otites por Malassezia. Pseudomonas são bactérias resistentes a muitos antibióticos através de vários mecanismos/ferramentas sumarizados de forma simplificada no esquema abaixo ( resistência intrínseca, resistência adquirida, resistência adaptativa):
9 9 O TrizEDTA administrado antes ou em conjunto apresenta um efeito aditivo ao da clorexidina, gentamicina e fluroquinolonas. Esta combinação pode ser útil mesmo no maneio das infeções por Pseudomonas multirresistentes. A sulfadiazina de prata diluída em soro, água para injetáveis ou mesmo no TrizEDTA também pode ser eficaz nestes casos com a vantagem de ajudar na própria cicatrização. Outros antibióticos tópicos que podem ser eficazes incluem a ofloxacina, a polimixina B, amicacina, e tobramicina (disponível em colírio). Os antibióticos devem ser criteriosamente selecionados, sendo os casos de utilização off-label reservados para quando clinicamente justificável e após consentimento informado dos tutores. Os glucocorticoides são outro grupo farmacológico de grande importância no maneio das otites. Mais uma vez o tratamento local é preferível e a maioria dos produtos para uso em otologia apresentam um corticosteroide de potência variável. Por vezes mais forte é de facto melhor. Na ausência de um infeção, caso se pretenda apenas controlar a inflamação,, não devem ser usados produtos contendo antibióticos. Há uma variedade de soluções que incluem o recurso a colírios ou à preparação magistral de soluções de corticoides para uso tópico. Apesar da sua utilização tópica ser mais segura que a sistémica podem ser observados efeitos secundários, nomeadamente ao nível do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. O aceponato de hidrocortisona tem um melhor perfil de segurança. A utilização sistémica de glucocorticoides pode ser necessária por questões de adesão à terapêutica ou se há estenose do conduto por exemplo. Os glucorticoides ajudam a prevenir o efeito ototóxico das Pseudomonas.
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