O OLHAR: PORTA PARA O PARAÍSO OU PARA O ABISMO!
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- Gilberto Prada Conceição
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1 O OLHAR: PORTA PARA O PARAÍSO OU PARA O ABISMO! Suilei Monteiro Giavara 1 Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento 2 Resumo: Na obra Um olhar a mais (2002), Antonio Quinet, retomando o conceito freudiano de função escópica, trabalha com a importância do olhar na subjetividade e na sociedade contemporânea. No entanto, desde Platão o olhar já é relacionado com o desejo erótico pela capacidade que tem de evidenciar o belo. Quando vivido sem culpa, o olhar pode ser motivo de felicidade, contudo, nem sempre ele é motivo de gozo para aquele que olha, pois muitas vezes se torna um catalisador de desejos proibidos guardados nos espaços mais recônditos. Assim, neste texto, a intenção é olhar os poemas, Se tu viesses ver-me..., de Florbela Espanca, e, Ilusão, de Judite Teixeira, sob esta perspectiva do olhar, priorizando-o como estimulador do erotismo que a literatura de autoria feminina da época era obrigada a colocar à margem. Palavras-chave: Florbela Espanca. Judith Teixeira. Poesia. Literatura de autoria feminina. O olhar, o desejo e o amor são elementos que estão presentes em toda a literatura. O olhar desencadeador do desejo, e este do amor, é um tema recorrente na poesia ocidental e suas raízes remontam à mitologia greco-romana com o famoso mito de Narciso. Na literatura, está presente nas mais variadas obras e épocas, expressando a busca e a atração do sujeito pelo olhar, ainda que do outro, instaurando uma relação recíproca de ver e ser visto. A incidência dessa imagem e a sua significação fez com o que o olhar se tornasse objeto de estudo em várias áreas do pensamento. E este olhar, enquanto responsável pelo desejo e pela fascinação, é uma das grandes teorias estudadas pela psicanálise e pela filosofia. Ser visto é o desejo de todo sujeito e a expectativa do olhar do outro causa apreensão. Olho e quero ser visto, esse é o movimento natural. Os olhos sempre foram o espelho da alma, enquanto representantes do desejo e, na poesia universal, representam tanto o campo do desejo quanto o campo da razão não só na poesia, mas em toda a literatura e, especificamente na portuguesa, desde o Trovadorismo de Paio Soares de Taveirós e D. Dinis até a literatura contemporânea, os olhos como vetor do desejo pintaram os versos com uma nuance erótica, quase sempre, condenada pela moral. Não obstante, no século XVII, devido às descobertas científicas, prevaleceu o olho da razão, em detrimento do olhar desejante. Esse olhar da razão iluminava as coisas jogando o desejo no esquecimento e fazendo com que o campo escópico fosse excluído do gozo. Desde então, foi preciso esperar por Freud e por Lacan para, respectivamente, iluminar o desejo e conceituar essa 1 Doutoranda em Literatura pela Unesp/Assis Bolsista Fapesp. 2 Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), CNPQ. 1
2 pulsão e elaborar a estrutura do campo visual com a inclusão da causa do desejo e do objeto de gozo: o mais-de-olhar. Neste ponto/momento de desenvolvimento da teoria do desejo, o olho entra em cena. O olho é o ponto de contato entre o homem e o mundo ou, como assegura Merleau-Ponty 3, a carne é o ponto de contato entre o corpo e o mundo e o eu existe no mundo por ele: Ver um objeto é ou possuí-lo à margem do campo visual e poder fixá-lo, ou então corresponder efetivamente a essa solicitação, fixando-o quando eu o fixo, ancoro-me nele, mas esta parada do olhar é apenas uma modalidade de seu movimento: contínuo no interior de um objeto a exploração que, há pouco, sobrevoava-os a todos, com um único movimento fecho a paisagem e abro o objeto... olhar o objeto é entranhar-se nele. (QUINET, 2002, p.43) O movimento do olhar é o que situa o ser no mundo. É o movimento sensível que celebra a existência humana. O indivíduo não escolhe olhar, ele simplesmente olha e é olhado. As relações que se estabelecem seguidas deste olhar é que passam pelas escolhas. Primeiro eu olho, para depois decidir se fecho os olhos ou se os abro mais, se desvio ou se vou de encontro. Certo é que, uma vez estabelecido o olhar, o resultado desta ação permanece em algum lugar. Registro visível e invisível atado-marcado no corpo. A carne não é matéria, mas algo substancializado e neste algo que se situa o ponto do olhar que faz daquele que vê um visível. Merleau-Ponty anuncia o que será o ponto central da teoria lacaniana do campo visual: a preexistência de um olhar no espetáculo do mundo. (QUINET, 2002, p. 40). Nesse mundo que vejo, sou, antes de tudo, visto. O olhar não está apenas ao nível dos olhos. A apreensão do mundo se dá com a visão e está reservada à instância do olhar a apreensão do olhar desse outrem. O olhar em questão na psicanálise não é um olhar do sujeito e sim um olhar que incide sobre o sujeito, é um olhar que o visa: olhar inapreensível, invisível, pulsional. O olhar é um objeto apagado do mundo de nossa percepção, que não deixa, no entanto, de nos afetar: a visão predomina sobre o olhar excluindo-o do campo do visível. Nessa separação entre o olho e o olhar encontra-se a esquize 4 do sujeito em relação ao campo escópico no qual se manifesta a pulsão. A pulsão está na base do dar-a-ver do sujeito e o afeta através de um olhar que o objetiva e ao mesmo tempo se encontra excluído da visão. (QUINET, 2002, p.41) Segundo Merleau-Ponty 5, essa esquize do olho e do olhar corresponde no âmbito visual à diferença entre o imaginário e o real, segundo a tópica lacaniana. O real é domínio da pulsão, que nos afeta quando é satisfeito o gozo do olhar. Nosso mundo da percepção visual é de ordem do 3 Apud QUINET, 2002, p Esquize é um termo utilizado por Lacan em seu Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. O termo se refere à angústia da perda, da castração. O olho e o olhar são, segundo Lacan, a esquize na qual se manifesta a pulsão a nível escópico. (Cf. LACAN, 1998, p.72). 5 Apud QUINET, 2002, p.39. 2
3 imaginário, estruturado e sustentado pelo simbólico. É um mundo de imagens cujo protótipo nos é dado pelo espelho e cuja geometria e perspectivas são dadas pelo simbólico. O eu, constituído pela imagem do outro no espelho, é um dos objetos do mundo visível cuja percepção se situa no âmbito especular e do qual se distingue o campo escópico, registro do real e pulsional do objeto a 6 enquanto olhar que escapa ao visível. O visível e o invisível se articulam a partir dos três registros: imaginário, simbólico e real. O registro do simbólico age como barreira entre o imaginário e o real ao mesmo tempo em que os articula.[...] O imaginário nos dá a forma da realidade. O espaço que a realidade compreende, segundo Freud, só pode ser a projeção da extensão do aparelho psíquico. A realidade é feita do imaginário e determinada pelo simbólico do qual o real está foracluído. A realidade é um esgar do real, formatado pelo imaginário e determinado pelo simbólico. E o Outro do simbólico é o lugar onde advém o sujeito já preso em uma rede simbólica como objeto do desejo do Outro. Esse Outro é, portanto, anterior ao sujeito que aí ingressa, e tem uma função de estruturação da realidade do sujeito ao barrar o objeto a, objeto real da pulsão, que não aparecerá como fenômeno na realidade do sujeito, pois o campo da realidade, diz Lacan, só se sustenta devido à extração do objeto a que, no entanto, fornece o seu enquadramento. Para que o campo da realidade se constitua para um sujeito é preciso que, simultaneamente à entrada do sujeito no campo do Outro, o objeto a seja extirpado. (COUTINHO JORGE, 2002, p.42) O objeto a, portanto, não faz parte do campo da realidade, ou seja, suas modalidades não são percebidas, vistas, ouvidas, sentidas, tocadas, nem provadas. O olhar é invisível. O objeto a, causa do desejo, causa angústia. É a eterna busca pelo preenchimento da falta de não sei o quê e não sei como, citada em tópicos anteriores. É o desejo que move o ser, que o faz olhar, ser olhado. O olhar se encontra no prazer escópico. (COUTINHO JORGE, 2002, p.119) O olhar não se encontra no campo da visão, mesmo que tenha aí seu lugar de causa. Do espetáculo do mundo vem um olhar que me olha e que eu não vejo, embora me sinta afetado por ele. O olhar é o invisível da visão, existe, dessa forma, uma demanda do sujeito de ser visto pelo Outro, uma demanda que é sempre demanda de amor, pois o Ideal do Eu corresponde ao olho benevolente e protetor. (COUTINHO JORGE, 2002, p.119) 6 Objeto a, causa do desejo: ao criar o objeto a, Lacan sentiu que havia feito a contribuição mais importante à psicanálise Poucos conceitos na obra lacaniana foram elaborados de forma tão ampla, revistos de maneira tão significativa, examinados com minúcias a partir de perspectivas muito diferentes, e exigem tantas modificações em nossa forma habitual de pensar o desejo, a transferência, e a ciência. Fink, em sua obra O sujeito lacaniano, explica o advento do objeto a em uma série de contextos diferentes para explicar o advento do sujeito e as mudanças correspondentes no Outro. Os conceitos de objetos e de sujeitos formulados por Lacan foram revistos ao longo do tempo, e esses conceitos são imprescindíveis para se entender a obra de Lacan em qualquer momento específico. Para Lacan, o objeto a é apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud, por não importa que objeto, e cuja instância só conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo. (cf. FINK, 1998, p.107). O agalma termo grego que significa ornamento, tesouro, objeto oferenda aos deuses ou, de modo mais abstrato, valor e designa todo tipo de objeto precioso, representa o núcleo da conceituação lacaniana do objeto a. O agalma representa, assim, o caráter sumamente enigmático do objeto do desejo e sua relação com a falta e o real. O objeto a é um objeto faltoso, ou nos dizeres de Freud, para quem o encontro do objeto é sempre um reencontro, é um objeto perdido que o sujeito busca reencontrar. A rigor é preferível falar do objeto a como causa do desejo e não como objeto do desejo. (COUTINHO JORGE, 2002, p.139). 3
4 Com sua demanda de ser visto pelo Outro, para ser reconhecido e amado com sua particularidade, o sujeito busca um par ideal que possa encarnar o ideal do eu para admirá-lo e, se necessário, acudi-lo. A tendência do sujeito de constituir um Outro que tenha, contenha e detenha o olhar é universal. Afeto-me com esse olhar. Busco o olhar incessantemente, e sua ruptura causa angústia e dor. Esse é o olhar psicanalítico, e essa imagem percorre toda a literatura. As poesias de Florbela Espanca e de Judite Teixeira são exemplos de textos perpassados pelo olhar, o olhar desejante, um olho que quer ser visto e desejado, um olhar erotizado que deseja sem culpa. É estabelecendo o olhar no campo do desejo feminino que suas poesias subvertem o que era permitido à literatura de autoria feminina do início do século XX. Convém ressaltar que, na época, Portugal passava por um intenso surto moralizador que mobilizou não só os setores ligados ao universo religioso, mas também os vários meios de comunicação. Na contramão desse contexto, os modernistas, já conhecedores dos textos que pregavam a imanência do texto literário, buscavam dissociar a arte de qualquer princípio de moralidade, pois tinham a intenção de, pela arte, revolucionar a sociedade portuguesa, livrando-a dos valores hipócritas em que se pautava. É neste panorama que Florbela Espanca desenvolve a sua obra, que conta com 3 livros de poemas, dois publicados em vida e um póstumo. As imagens femininas que a perpassam trazem à tona questões relativas às mulheres de sua época, de forma a transgredir os modelos sociais e a moral, como assegura Maria Lúcia Dal Farra: Saiba-se, portanto, o que foi Florbela para o salazarismo: o antimodelo do feminino, da concepção de mulher e nisto reside, sem dúvida, a força mais primária de sua obra, cuja lucidez indomável questiona, insurrectamente, a condição feminina [...] e os históricos papéis sociais conferidos à mulher. (DAL FARRA, 2002, p. 17) Além disso, é inegável, ainda, na obra de Florbela, a presença da sensibilidade feminina, transbordante em seus versos, a qual tece, engendra a temática amorosa, a dor de amar, que se mescla com o erotismo pungente dos poemas. Essa relação amor-dor perpassada pelo viés erótico, possui como impulsionador, o olhar, que desencadeia o jogo amoroso, a busca pelo objeto de desejo, busca que culmina com a dor, pela ausência ou impossibilidade de alcança-lo, ou culmina com a expectativa de possuí-lo, numa entrega amorosa. O olho e o olhar, imagens constantes na poesia, são os responsáveis pelo desejo. O olhar no sentido escópico, o olhar que me olha e que me afeta, é o que permeia a poesia florbeliana. É esse olhar que desencadeia a demanda de ser visto pelo Outro, demanda de amor, como se observa nos versos do poema Se tu viesses ver-me.. (ESPANCA, 1999, p. 218): 4
5 Se tu viesses ver-me... Se tu viesses ver-me hoje à tardinha, A essa hora dos mágicos cansaços, Quando a noite de manso se avizinha, E me prendesses toda nos teus braços... Quando me lembra: esse sabor que tinha A tua boca... o eco dos teus passos... O teu riso de fonte... os teus abraços... Os teus beijos... a tua mão na minha... Se tu viesses quando, linda e louca, Traça as linhas dulcíssimas dum beijo E é de seda vermelha e canta e ri E é como um cravo ao sol a minha boca... Quando os olhos se me cerram de desejo... E os meus braços se estendem para ti... O poema é construído em torno dessa expectativa, na possibilidade criada desse convitesugestão: Se tu viesses ver-me.... A expectativa cria o momento mágico de sugestão desse eu lírico feminino, que inicia um jogo de sedução de palavras e imagens, no qual a intenção final não é verbalizada, mas sugerida pela conjunção condicional se e pelas reticências que assinalam o possível momento do prazer, o que deve ser silenciado, oculto. O soneto distingue-se por possuir a mesma oração condicional iniciando o primeiro quarteto e o primeiro terceto, dando continuidade à sugestão ao longo do poema, sem perder o fio que o conduz. A sugestão de ver-me é entremeada pela sedução do eu lírico, neste domínio, ainda, erótico, do corpo que deseja ser visto-tocado, construindo a relação olhar-desejo-corpo-carne na poesia. O horário da tarde, tardinha, do crepúsculo, é nostálgico, da dor e da saudade, e surge neste poema como horário da sugestão amorosa, é quando a luz solar se apaga e anuncia a noite, imagem da sedução feminina, pois o sujeito feminino é noturno, é na noite que a mulher se esconde e se agasalha. O horário da tardinha que é anunciado como de mágicos cansaços, remetendo aos cansaços extáticos, o prazer, é o convite para o encontro Se tu viesses ver-me.... E a sugestão para o convite seria E me prendesses toda nos teus braços..., assinalando a busca por esse Outro. O crepúsculo, imagem espaço-temporal, ganha, aqui, o relevo erótico, é a hora do prazer, e ao pôr do sol serão relacionadas as cores rubras, cores que simbolizam o fogo, o sangue e a paixão. Na segunda estrofe, a lembrança das sensações corporais já experimentadas vem à tona, e a boca de beijos, risos e sabores; as mãos a tocarem-se e os passos a anunciarem a chegada surgem 5
6 como o veículo corporal do amor, o erotismo evidencia-se pela sinestesia e fica explícito nas imagens da boca que sucumbe aos beijos, nos braços e abraços, na sugestão de atos amorosos que ficam na lembrança, representados pelas reticências em cada verso e também no título, que se repete em duas estrofes. Os adjetivos linda e louca, que descrevem o eu lírico na terceira estrofe, ajudam a compor o cenário da sedução e do desejo do eu lírico, no convidativo fim de tarde, em que a boca, veículo de toda a excitação, é o receptáculo para o amado; é a flor, o cravo. Esse momento de descrição culmina com o erotismo que preenche todo o poema, anunciado no último terceto: Quando os olhos se me cerram de desejo.../e os meus braços se estendem para ti..., assinalando a entrega dessa mulher, ou seja, a entrega do corpo aos desejos, à pulsão, ao gozo. A satisfação do desejo parece ser o único fim do eu lírico, ver-e-ser-visto, desejar e ser desejado são a demanda do sujeito feminino na poesia. A imagem do corpo feminino em ofertório, num espetáculo de sedução, cujo objetivo é o gozo, a satisfação amorosa e sexual, faz com que Florbela transgrida os padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal e salazarista. E na base desse rompimento se encontra o olhar, o olho do desejo, o desejo e necessidade de ver e ser visto pelo Outro. Diferentemente de Florbela Espanca, em que o olhar desencadeia um jogo amoroso em que a necessidade de ser vista pelo ser amado, o Outro, é quase uma obsessão, ao longo dos 3 livros de poemas de Judith Teixeira, os motivos poéticos ligados ao olhar são geralmente desencadeadores de um processo de auto-observação, de sondagem interior na tentativa de autorreconhecimento, é, portanto, um olhar que incide sobre o sujeito e o desmascara para si mesmo. Mais do que isso, assim como no mito de Narciso, na poesia de Judith Teixeira o prazer e a solidão são sentimentos coexistentes, uma vez que o primeiro é concretizado apenas nos sonhos e a realidade traz sempre uma constatação amarga de que esse sentimento não encontra o objeto real, apenas o ideal, culminando numa solidão existencial, pois busca permanentemente a sua metade complementar. (Platão, 2001, p.124) Mais do que um erotismo convencional, em alguns poemas judithianos, como é o caso do poema Ilusão que segue citado na íntegra, há ainda uma insinuação homoerótica que, embora não marcada por nenhum componente linguístico, foi o mote para que a poetisa fosse vítima da coerção social nomeadamente pela Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, que exigiu do Governo Civil a apreensão de sua primeira obra intitulada Decadência (1923) e motivou-lhe o apodo desavergonhada : 6
7 Ilusão Vens todas as madrugadas prender-te nos meus sonhos, - estátua de Bizâncio esculpida em neve! E poisas a tua mão macia e leve nas minhas pálpebras magoadas... Vens toda nua, recortada em graça, rebrilhante, iluminada! Vejo-te chegar como uma alvorada de sol!... e o meu corpo freme, e a minha alma canta, como um enamorado rouxinol! Sobre a nudez moça do teu corpo, dois cisnes erectos quedam-se cismando em brancas estesias, e na seda roxa do meu leito, em rúbidos clarões, nascem maceradas, as orquídeas vermelhas das minhas sensações!... És linda assim: toda nua, no minuto doce em que me trazes a clara oferta do teu corpo e reclamas firmemente a minha posse!... Quero prender-me á mentir loira do teu grácil recorte... e os teus beijos perfumados, nenúfares desfolhados pela rajada dominante e forte das minhas crispações, tombam sobre os meus nervos partidos... estilhaçados!... Acordo. E os teus braços, muito ao longe, desfiam ainda a cabeleira fulva do sol por sobre os oiros adormecidos da minha alcova... visão bendita! repetida e nova! Loira Salomé de ritmos esculturais! Vens mais nua esta madrugada! Vem esconder-te na sombra dos meus olhos e não queiras deixar-me... 7
8 ai nunca, nunca mais! Agosto - madrugada 1925 (TEIXEIRA, 1996, p ) Desde o léxico o poema apresenta-se construído a partir do olhar. As pálpebras magoadas 7, do sujeito lírico são amenizadas apenas por uma visão que, como sombra, se mostra em sonho, no espaço do não real, onde é possível o desvendar de um erotismo diferenciado que a sociedade prefere manter na obscuridade, mas na fantasia pode ser vivido sem reservas. A cena erótica instaura-se a partir da imagem captada pelo o olhar, a estátua de Bizâncio, esse objeto a, caracterizado não pelo que é, mas pelo que o desejo quer ver - rebrilhante, iluminada, uma alvorada de sol - ganha forma e vida a partir daí e transforma-se, então, em objeto libidinal, que faz acender o prazer do eu lírico. Portanto, é o olhar o ato gerador da fantasia e, em decorrência dela, do prazer. A partir daí o que domina é uma ambiência povoada de sensações que envolvem todos os sentidos sinestesicamente. Contudo, como já foi dito, o erotismo na poesia de Judith Teixeira não gera somente prazer, neste caso, o olho é também uma porta para o abismo, porque a pulsão de morte que acompanha o sentimento de luxúria também é motivo de Dor, uma vez que não é possível conformar este sentimento ao que Freud chamou civilização, pois esta o reprime e interpõe-se entre o sujeito e o objeto do seu desejo, gerando insatisfação. É exatamente este sentimento que pode ser notado quando o eu lírico acorda e, muito ao longe no fio da memória ainda sob torpor, juntamente como o último verso do poema, vê deslocar os traços da visão bendita responsável pelos momentos de intenso prazer vividos mesmo que oniricamente. Então, ele prefere mantê-la escondida na sombra dos seus olhos, num gesto de sublimação que preserva a imagem somente para si para poder desfrutá-la, repetida e novamente, sem punição. Neste cenário, como diz a própria Judith Teixeira acerca de seus versos: Considerações finais Depois da realização artística dos meus poemas vermelhos e incendiários, onde esculpi corpos de beleza nas atitudes bizarras em que deslumbrei os meus sentidos, se eu quisesse encontrar o motivo real dessas concepções teria de descer ao meu mundo interior e interrogar o meu eu inconsciente. [...] A Natureza não basta, é certo, para corresponder às ambições do Artista. Para ele é preciso ir mais além daquilo que os olhos veem. (Teixeira, 2009, p. 217) 7 É conveniente ressaltar que o termo magoar em português de Portugal tem também o significado de ferir, machucar. Assim, pálpebras magoadas remetem para outra característica da poesia judithiana que é a associação do erotismo com a dor. 8
9 A relação entre o olhar e o desejo, elementos componentes da teoria psicanalítica da pulsão escópica, sempre esteve presente na literatura. O movimento olhar e ser olhado, ver e ser visto, impulsionador do desejo e do amor é impulsionador, ainda, dos versos eróticos e de liberação feminina de Florbela Espanca e de Judite Teixeira, pelos quais foram as poetisas condenadas pela moral da época, assim como fora condenado o olhar e o gozo durante séculos de domínio do olhar da razão, em detrimento do olhar psicanalítico. A busca por esse Outro que me olha, o desejo de ser visto e o gozo pelo olhar, tanto passivo quanto ativo, preenche os versos florbelianos de livros como Charneca em Flor. A negação do olhar é a desencadeadora de angústia e sofrimento na sua poesia, ao passo que a confirmação deste olhar alheio é responsável pelo deleite, gozo, por muitas vezes extático em seus versos. Juntamente com a poesia florbeliana, a poesia de Judite resgata o olhar do desejo no Portugal do início do século XX. Mas, enquanto o erotismo reside, na poesia de Florbela, na relação entre olhar e ser olhado, na poesia de Judite o erotismo advém do ato de olhar, do que vem juntamente com a visão: o que os olhos veem, ou seja, o que existe no campo especular. O olhar é o meio pelo qual o eu lírico identifica os elementos de desejo, mas não é o próprio elemento de desejo e gozo, como no texto florbeliano. Na sua busca por objetos de desejo mais distintos, que não o próprio olhar, Judite Teixeira parte muitas vezes do elemento onírico para olhar o que está além do permitido pelos olhos de sua época, entregando-se, assim como Florbela Espanca, às variadas possibilidades do olhar. Referências COUTINHO JORGE, Marco Antônio. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, v. 1: as bases conceituais. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar, DAL FARRA, Maria Lucia. Florbela, Inconstitucional. In: ESPANCA, Florbela. Afinado Desconcerto. Org. Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Iluminuras, Poemas de Florbela Espanca. Estudo introdutório, organização e notas de Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Martins Fontes, LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, PLATÃO. O Banquete. PLATÃO. O banquete. São Paulo: Martin Claret, QUINET, Antônio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, TEIXEIRA, Judith. Poemas. Lisboa: & Etc,
10 The look: door to the heaven or to the abyss! Abstract: At the work Um olhar a mais (2002), Antonio Quinet, resuming the Freudian concept of "scopic function", works with the importance of looking at the subjectivity and at the contemporary society. However, since Plato's, the look is already connected with erotic desire for the ability it has to evince the beauty. When it s lived blameless, the look can be a source of happiness, however, it is not always a joy to one who looks, because it often becomes a catalyst for forbidden desires stored in the innermost spaces. Thus, in this text, the intention is to "look" poems, "Se tu viesses ver-me...", by Florbela Espanca, and "Ilusão" by Judith Teixeira, from this look perspective, prioritizing the look like stimulator of the eroticism which the female authorship literature of that time was bound to leave on the margin. Keywords: Florbela Espanca. Judith Teixeira. Poetry. Female authorship literature. 10
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