O DEMÔNIO DO MEDO 1 : CONTRIBUIÇÕES DA EDUCAÇÃO EMOCIONAL PARA UM MUNDO LÍQUIDO MODERNO

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Transcrição:

O DEMÔNIO DO MEDO 1 : CONTRIBUIÇÕES DA EDUCAÇÃO EMOCIONAL PARA UM MUNDO LÍQUIDO MODERNO Michelle Aparecida Gabrielli Universidade Federal da Paraíba mikagabrielli@gmail.com Resumo: A emoção é uma reação natural e imediata, desencadeada a partir de determinada circunstância ou estímulo. As emoções podem ser caracterizadas como primárias (básicas ou universais), secundárias (derivadas ou sociais) e autoconscientes (autoavaliativas). A saber, as primárias são: nojo, tristeza, alegria, raiva, medo e surpresa; secundárias: ansiedade, ciúme, inveja, entre outras; e as autoconscientes: culpa, vergonha, orgulho e hubris. Neste artigo escolhemos trabalhar especificamente com uma das emoções primárias inata e presente em todas as culturas e nos seres vivos o medo. A discussão e reflexão acerca do medo propostas aqui têm como fio condutor a teoria da liquidez do mundo postulada por Bauman (2007; 2008). Assim, temos como objetivo fomentar discussões sobre a forma com que a educação emocional pode vir a contribuir com a compreensão do medo em uma sociedade líquida, marcada pelas relações instáveis e não duráveis. A metodologia utilizada para a análise em questão foi à investigação bibliográfica, tendo como principais temáticas: a emoção, o medo, a educação emocional e o mundo líquido moderno. Os referenciais teóricos que colaboram para esta construção foram: Bauman (2007; 2008), Darwin (2009), Gonsalves (2015) e Possebon (2017). Alguns dos resultados apontam que o medo, como qualquer outra emoção primária, não pode ser caracterizado como positivo ou negativo, pois isso depende do indivíduo estar regulado ou não. A função adaptativa do medo é a de proteger de uma ameaça real, por isso, é importante senti-lo. No entanto, o sistema capitalista vem a cada dia produzindo e estimulando novos medos que nem sempre são reais em prol de um capital do medo que gere lucro comercial ou político. Portanto, a educação emocional se faz relevante neste cenário ao possibilitar que o indivíduo adquira certas competências fundamentais para estabelecer relações inter e intrapessoais sadias e harmoniosas, além de fornecer mecanismos para que possamos enfrentar o mundo ao nosso redor. Palavras-chave: Emoção, Medo, Educação Emocional, Mundo Líquido Moderno. INTRODUÇÃO Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio porque esse não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte. Depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas. (DRUMMOND, 1940). 1 (BAUMAN, 2007, p. 32).

O poema acima, Congresso Internacional do Medo, de Carlos Drummond de Andrade foi escrito em 1940, em plena Segunda Guerra Mundial e traz à tona as diversas possibilidades de sentir medo diante de ameaças que podemos ver e tocar, mas também daquelas invisíveis e intocáveis. No contexto em que foi escrito visa a demonstrar o caos, a barbárie, o desespero que imperava nos indivíduos diante de um mundo em guerra, permeado de incertezas e rondado pela morte. Havia o medo de se morrer em meio a tantas desgraças promovidas pelo próprio homem, como também o de viver neste pano de fundo cruel, fascista e totalmente desumano. Zygmunt Bauman (2009, p. 08) faz a seguinte definição: medo é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça do que deve ser feito do que pode e do que não pode para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance. O poema de Drummond reflete os acontecimentos no Brasil naquela época, todavia, seu título ao empregar a palavra internacional clarifica que o medo é uma emoção que está sendo experienciada em todo o mundo, remetendo a universalização do mesmo. Deste modo, o medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda a parte, mas em lugar algum se pode vê-la (BAUMAN, 2009, p.08). Atualmente, não nos encontramos mais no contexto de uma grande guerra mundial como a descrita no poema drummondiano (apesar da iminência frequente), no entanto, guerras individuais e coletivas são travadas todos os dias. Experimentamos e vivemos o medo diariamente, enquanto indivíduo ou grupo. Importante destacar que, em nossa sociedade, normalmente, o medo é visto como algo negativo, que deve ser evitado, negado, espantado. Há a ideia de que uma emoção possa ser caracterizada como positiva ou negativa, boa ou má. Segundo Elisa Possebon (2017, p. 49), isto está fora de questão, uma vez que as emoções são possibilidades adaptativas diante de determinados eventos, neste sentido, não é boa nem má. A autora complementa destacando que a questão de ser boa ou má não é da emoção em si, já que ela é uma reação do ponto de vista neurofisiológico. Esta questão de ser boa ou má está relacionada com o aspecto psicológico, isto é, se são produzidas, mediante a reação, sensações agradáveis ou desagradáveis (POSSEBON, 2017, p. 49). Desta forma, o artigo em questão tem como objetivo caracterizar e desmistificar o medo, percebendo de que forma a educação emocional pode vir a contribuir para a formação de pessoas conscientes e equilibradas emocionalmente, além da construção de uma sociedade sadia, capaz de

se colocar criticamente diante da liquidez do mundo, cada vez mais estimulada pelo sistema capitalista. Conforme Baumam, estamos passando da fase sólida da modernidade para uma fase líquida, [...] ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam [...] (BAUMAN, 2007, p. 07). Neste sentido, de acordo com Bauman, é improvável que as formas que delimitam as escolhas individuais e definem os padrões sociais se estabeleçam e sirvam como referências para as ações comportamentais e atitudinais humanas. Observamos então que [...] as estratégias existenciais a longo prazo, em razão de sua expectativa de vida curta: com efeito, uma expectativa mais curta que o tempo que leva para desenvolver uma estratégia coesa e consciente, e ainda mais curta que o necessário para a realização de um projeto de vida individual sejam firmadas (BAUMAN, 2007, p. 07). Possebon (2017, p. 19) sintetiza o conceito de emoção ao dizer que [...] é uma resposta que o indivíduo dá mediante elementos desencadeadores (excitação ou perturbação), que provoca sensações agradáveis ou não, porém vinculada a necessidade humana de adaptação. Complementando, [...] as emoções estão na fonte da aquisição de competências fundamentais para lidar com exigências sociais, que clamam por pessoas com disposição para trabalhar em grupos e que tenham capacidade de estabelecer relações interpessoais harmoniosas e saudáveis (POSSEBON, 2017, p. 13). Vemos, assim, a necessidade de buscarmos o desenvolvimento de certas competências fundamentais relacionadas às emoções tanto no que tange as questões pessoais quanto as de ordem coletiva. METODOLOGIA O trabalho em questão foi realizado a partir de uma revisão bibliográfica que tem como foco a compreensão do medo e a forma com que a educação emocional pode vir a contribuir para este entendimento e, assim, mostrá-la como uma estratégia para que o indivíduo e a sociedade sobrevivam ao mundo líquido moderno em que vivemos. Para tal, foram destacadas as seguintes temáticas: emoção, medo, educação emocional e o mundo líquido moderno. Os referenciais teóricos

utilizados para esta investigação bibliográfica e melhor entendimento do tema discutido neste artigo foram: Bauman (2007; 2008), Darwin (2009), Gonsalves (2015) e Possebon (2017). A seguir apresentamos uma breve contextualização sobre as emoções, mais especificamente sobre o medo e, posteriormente, a discussão relativa a esta emoção em uma sociedade líquida. Por fim, fazemos as considerações finais na tentativa de corroborar para um entendimento de como a educação emocional pode vir a contribuir com a desconstrução do medo enquanto uma emoção negativa e que deve ser evitada. RESULTADOS E DISCUSSÃO Charles Darwin, em 1872, lançou o livro A expressão das emoções no homem e nos animais, compilando inicialmente os resultados das pesquisas de diversos cientistas que já haviam estudado esta temática, aprofundando-a e fazendo novas e importantes descobertas ao que se refere às expressões nos seres vivos. Em um estudo minucioso complementar ao livro A origem das espécies (1859) Darwin comprovou que os seres humanos, em todas as culturas, sentem e expressam as mesmas emoções, assim como os animais também as fazem. Em A expressão das emoções no homem e nos animais (2009) há um estudo cuidadoso de expressões e emoções listadas da seguinte forma: sofrimento e choro; desânimo, ansiedade, tristeza, abatimento, desespero; alegria, bom humor, amor, sentimentos de ternura, devoção; reflexão, meditação, mau humor, amuo, determinação; ódio e raiva; desdém, desprezo, nojo, culpa, orgulho, desamparo, paciência, afirmação, negação; surpresa, espanto, medo, horror; preocupação consigo mesmo, vergonha, timidez, modéstia: rubor (DARWIN, 2009). Os estudos darwinianos ainda hoje servem como ponto de partida para muitas pesquisas no campo das emoções. Desta forma, das emoções apresentadas por ele, temos o medo, nojo, raiva, tristeza, alegria e surpresa, denominadas como primárias, básicas ou universais, visto que são inatas e estão presentes em todas as culturas, revelando um padrão biológico de resposta, claramente identificado através do comportamento, da ativação e da expressão facial (POSSEBON, 2017, p. 67). Essas emoções independem de fatores socioculturais. Além das emoções primárias, há as emoções secundárias também chamadas de derivadas ou sociais. São produções do meio sociocultural, logo, podem sofrer modificações de cultura para cultura. Gonsalves (2015, p. 34) clarifica que as emoções sociais [...] variam amplamente com a cultura, com a experiência prévia e com a época em que o indivíduo está inserido. Exemplos: culpa,

vergonha, simpatia, compaixão, embaraço, orgulho, inveja, gratidão, admiração, espanto, indignação, desprezo, dentre outras. Possebon argumenta que as emoções secundárias estão relacionadas exclusivamente com a interação social, como por exemplo, a vergonha, a culpa, ternura, a empatia, o altruísmo. Estas emoções são muito importantes na sociedade e frequentemente são confundidas com emoções básicas, porém, do ponto de vista biológico, para se considerar uma emoção básica é fundamental que ela seja universal, o que não acontece aqui, pois não atinge todos os animais, do seu nascimento até a morte, como também varia no tempo e de sociedade para sociedade (POSSEBON, 2017, pp. 72-73). Por último, temos as chamadas emoções autoconscientes ou autoavaliativas. São denominadas assim por atribuírem noção de valor, positiva ou negativa, nas ações do sujeito. Quer dizer, isto ocorre porque tais emoções possuem um traço específico, que diz respeito à produção de uma valoração positiva ou negativa de si mesmo com relação a um conjunto de critérios acerca do que se julga mais adequado ou não, em diferentes âmbitos (POSSEBON, 2017, p. 74). As emoções caracterizadas como autoconscientes são: culpa, orgulho, vergonha e hubris. As emoções possuem um caráter adaptativo, isto significa que é uma forma do organismo se adaptar diante de determinada situação, podendo ser entendido como [...] conjuntos complexos de reações químicas e neurais que cumprem um papel regulador para auxiliar o organismo a conservar a vida. A ideia de adaptação se refere à relação do organismo com o meio, bem como as ações daí decorrentes [...] (GONSALVES, 2015, p. 42). Neste ínterim, a função adaptativa do medo é a proteção. Logo, se um animal ou um indivíduo não sente medo perante uma ameaça estará se colocando em perigo. Sobre isso, Bauman (2008) afirma que os animais possuem um repertório de reações protetivas que vão da fuga à agressão em se tratando de uma ameaça às suas vidas. As características que podem ser observáveis ao sentir medo referem-se ao surgimento de respostas de fuga ou desvio de situações perigosas; focaliza quase que exclusivamente a atenção no estímulo temido, facilitando o modo rápido como o organismo reage; mobiliza uma grande quantidade de energia, o que permite executar respostas intensas e rápidas (POSSEBON, 2017, p. 50). Complementando, os humanos, porém, conhecem algo mais além disso: uma espécie de medo de segundo grau, um medo, por assim dizer, social e culturalmente reciclado, ou [...] um medo derivado que orienta seu comportamento [...], quer haja ou não uma ameaça imediatamente presente (BAUMAN, 2008, p. 09). O medo secundário ou derivado corresponde às estruturas mentais estáveis que são suscetíveis ao perigo e geram uma sensação de insegurança e vulnerabilidade, sendo estas

desenvolvidas a partir do enfrentamento de uma ameaça real e que deixou rastros. Deste modo, o comportamento humano passa a ser modelado por esta experiência mesmo não havendo mais um perigo à vida. Este tipo de medo adquire a capacidade de propulsão, visto que uma pessoa que tenha interiorizado uma visão de mundo que inclua a insegurança e a vulnerabilidade recorrerá rotineiramente, mesmo na ausência de ameaça genuína, às reações adequadas a um encontro imediato com o perigo [...] (BAUMAN, 2008, p. 09). A sensação de insegurança e de vulnerabilidade faz com que pensemos que o mundo está a cada dia mais perigoso e por isso devemos tomar cuidado, evitá-lo. Ou seja, nos precaver diante de um perigo real, mas também de uma ameaça imaginada. As casas estão cada vez mais protegidas com grades nas janelas, cercas elétricas, câmeras de segurança. Os passeios na rua com o cachorro são mais escassos, pois há o risco de um assalto. Sair à noite não faz parte da rotina de muitos indivíduos, já que temem o pior, entre outros perigos que nos rondam constantemente. Sob este prisma, há três tipos de perigos que podem desencadear tanto o medo quanto o medo derivado: alguns ameaçam o corpo e as propriedades. Outros são de natureza mais geral, ameaçando a durabilidade da ordem social e a confiabilidade nela, da qual depende a segurança do sustento (renda, emprego) ou mesmo da sobrevivência no caso de invalidez ou velhice. Depois vêm os perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo a posição da hierarquia social, identidade (de classe, de gênero, étnica, religiosa) e, de modo mais geral, a imunidade á degradação e à exclusão social (BAUMAN, 2008, p. 10). Sabemos que o medo é uma resposta às situações de ameaça, servindo como uma medida protetiva do nosso organismo. Contudo, o medo derivado nem sempre está ligado aos perigos que o causam, ou seja, o indivíduo acometido por ele pode alocá-lo em quaisquer dos três tipos de perigos definidos por Bauman (2008). Assim, sua compreensão é dificultada e as reações defensivas ou agressivas resultantes, destinadas a mitigar o medo, podem assim ser dirigidas para longe dos perigos realmente responsáveis pela suspeita de insegurança (BAUMAN, 2008, p. 10). Como visto anteriormente, o medo faz parte de todas as culturas e é experienciado por todos os seres vivos. Mas, a forma com que cada indivíduo o sente, é única. Há o medo de morrer (naturalmente, doença, violência, acidente), de pessoas (pai, mãe, chefe, professor(a), assaltante, policial), de animais (aranha, barata, cobra, gato, rato), da natureza (mar, mata, tempestade) e do que cada um destes elementos pode desencadear nas nossas vidas. Porém, outros tipos de medo são criados no mundo líquido em que vivemos. Temos medo dos alimentos transgênicos e com

agrotóxicos, da corrupção, do terrorismo, da guerra ao terror, de aspirar a fumaça de cigarro de um fumante, do monóxido de carbono que saem dos carros, da exposição ao sol do meio dia, do efeito estufa, do mal, do câncer, de viver sozinho, de perder o emprego, entre outros. Estes exemplos demonstram a capacidade que, numa sociedade líquida, o medo tem de se autoperpetuar e se autofortalecer, como se tivesse autonomia em relação ao indivíduo, em outras palavras, fazem o mundo parecer mais traiçoeiro e assustador, e estimulam mais ações defensivas que vão, infelizmente, acrescentar vigor à capacidade do medo de se autopropagar (BAUMAN, 2007, p. 18). No entanto, isso é uma ilusão. O medo não é autossuficiente, mas sim estimulado pelo capital do medo que é utilizado para conquistar benefícios seja de ordem comercial ou política, mas que visam sempre o lucro e que promovem um ciclo do medo e das ações por ele inspiradas que segue em frente, sem perder nem um pouco do seu ímpeto embora sem se aproximar de seu aparente objetivo (BAUMAN, 2007, pp. 18-19). É neste sentido que a educação emocional se torna ainda mais relevante num mundo líquido, pois tem a capacidade de desenvolver no indivíduo a (auto)percepção, (auto)consciência e (auto)conhecimento no que diz respeito as relações inter e intrapessoais, conseguindo assim, distinguir a origem do medo, se é real ou imaginário, além de encontrar formas positivas de compreender e lidar com esta emoção. A educação emocional tem um papel essencial na atualidade, uma vez que [...] emerge como uma necessidade social e educativa com o objetivo de desenvolver habilidades emocionais para contribuir satisfatoriamente para o bem-estar pessoal e social dos indivíduos [...] (POSSEBON, 2017, p. 08). CONCLUSÕES Faz parte da existência humana sentir medo, diz respeito a própria sobrevivência, uma vez que o medo saudável nos afasta do perigo. Ter medo pode ser sadio e normal, desde que o indivíduo esteja regulado emocionalmente. Todavia, o mundo em que vivemos descobriu no medo uma fonte de lucro. Consequentemente, os vínculos afetivos vão se afrouxando e se enfraquecendo, o individualismo e a vida solitária passam a ser cada vez mais estimulados, dando mais espaço para que o medo líquido ganhe espaço, tome forma e prevaleça sobre o indivíduo e a sociedade. Neste sentido, retomamos ao título deste artigo ao fazer referência ao medo como sendo o demônio do medo. Bauman (2007) acredita que,

O medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época. Mas é a insegurança do presente e a incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável. Essa insegurança e essa incerteza, por sua vez, nascem de um sentimento de impotência: parecemos não estar mais no controle, seja individual, separada ou coletivamente, e, para piorar ainda mais as coisas, faltam-nos as ferramentas que possibilitariam alçar a política a um nível em que o poder já se estabeleceu, capacitando-nos assim a recuperar e reaver o controle sobre as forças que dão forma à condição que compartilhamos, enquanto estabelecem o âmbito de nossas possibilidades e os limites à nossa liberdade de escolha: um controle que agora escapou ou foi arrancado de nossas mãos. O demônio do medo não será exorcizado até encontrarmos (ou, mais precisamente, construirmos) tais ferramentas (BAUMAN, 2007, p. 32). Diante do exposto é evidente que precisamos desmistificar a ideia de que o medo é uma emoção negativa ou má e, mais que isso, de que é um demônio. A forma com que o medo vem sendo incitado e banalizado através de ameaças fantasmas forjadas pelo capital do medo, faz com que ele ganhe uma conotação contrária ao que de fato ele representa, que é ser uma emoção protetiva para que os seres vivos sobrevivam aos perigos reais do mundo. Vislumbramos a educação emocional como uma prática (ou ferramenta conforme sugere Bauman) que emerge como uma necessidade social e educativa com o objetivo maior de desenvolver habilidades emocionais para contribuir satisfatoriamente para o bem-estar pessoal e social dos indivíduos. [...] (GONSALVES, 2017, p. 08). A educação emocional possibilita que o indivíduo apreenda acerca do universo das emoções, corroborando para que adquira (auto)conhecimento e desenvolva competências e habilidades que o auxiliarão a lidar consigo e com o mundo que o circunda. Portanto, ao aprender sobre as emoções e a forma de lidar harmoniosamente com ela, aprenderá a identificar o medo real e o imaginado, desconstruindo a ideia do medo como algo ruim, como um demônio. Por fim, Gonsalves (2017, p. 09) afirma que [...] para educar-se emocionalmente é preciso libertar-se do estado de analfabetismo emocional e assumir uma nova condição cidadã, a de sujeito consciente do seu processo de empoderamento individual, pressupostos básicos para sobrevivermos ao mundo líquido moderno e as estratagemas do capitalismo.

REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Congresso Internacional do Medo. 1940. Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/392991>. Acesso em: set. 2017. BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. DARWIN, Charles. A expressão das emoções no homem e nos animais. Trad. Leon de Souza Lobo Garcia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. GONSALVES, Elisa Pereira. Educação e emoções. Campinas: Editora Alínea, 2015. GONSALVES, Elisa Pereira; LIMA, Francisca Alexandre de O livro das emoções: uma abordagem neurofisiológica, comportamental e educativa dos estados emocionais. Curitiba: Editora CRV, 2015. POSSEBON, Elisa Gonsalves. O universo das emoções: uma introdução. João Pessoa: Libellus, 2017.