VELDE, Rudi A. te. Aquinas on God. The divine science of the Summa Theologiae, Aldershot: Ashgate, Ashgate Studies in the History of Philosophical Theology, 2006, viii+192p. Marco Aurélio Oliveira da Silva* Os resultados mais importantes acerca de Deus alcançados pelo Doutor Angélico em sua mais relevante obra de síntese, a Summa Theologiae, são o norte de Rudi te Velde em seu trabalho Aquinas on God. O livro divide-se em seis capítulos, cada qual abordando um aspecto da teologia de Tomás, desde a estrutura de toda a Summa, até a questão da graça, passando pelos nomes divinos, pela primeira via para a existência de Deus, dentre outros temas fundamentais para a compreensão do assunto. No primeiro capítulo, o A. retoma uma tese apresentada por Chenu 1, segundo a qual a organização de toda a Summa Theologiae obedeceria ao esquema neoplatônico exitus-reditus segundo o qual as criaturas procederiam de Deus como sua causa eficiente e retornariam a Ele como sua causa final. Além disso, defende que o ato criador de Deus não deve ser compreendido apenas como a produção eficiente das criaturas, mas também como envolvendo sua distinção, sua manutenção e o governo que Deus exerce para com elas em direção a Si mesmo (p. 14). A estrutura que envolve a Ia, a Ia-IIae e a II-IIae partes da Summa Theologiae pode ser explicada segundo o esquema sugerido, uma vez que a Ia pars trata da natureza de Deus e de sua criação, enquanto que as duas partes da IIa pars versam sobre como Deus auxilia a criatura racional (o homem) a dirigir-se ao próprio Deus como seu fim último, através da lei e da graça. * Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). 1 CHENU, M.-D. Le plan de la Somme Théologique de Saint Thomas, Revue Thomiste, 47, 1939, pp. 93 107.
11 A dificuldade consistiria no papel atribuído à IIIa pars, que versa sobre Cristo. Enquanto Chenu considera que a IIIa pars da Summa Theologiae não pode ser compreendida dentro da lógica exitus-reditus, uma vez que a Encarnação é contingente, pois dependeu da livre vontade de Deus, por outro lado, para o A., Cristo deve ser visto como um instrumento do cuidado providencial de Deus na história humana (p. 15). Deste modo, mesmo sendo um ato livre, a Encarnação se insere no contexto do direcionamento final da criatura racional em direção a seu fim último, a saber, a visão beatífica de Deus. No segundo capítulo, o A. trata das cinco vias, mas dá um especial tratamento à primeira via para a existência de Deus, a prova do primeiro motor (Summa Theologia, Iª q.2 a.3 co.). Em vez de reconstruir o argumento de Tomás, o A. está mais preocupado em avaliar a famosa crítica ao argumento através do conceito de inércia tirado da física moderna. A prova conclui pela necessidade de um primeiro motor ao partir da premissa segundo a qual tudo o que é movido, é movido por outro. Ora, segundo a concepção de inércia, um corpo pode moverse sem o ser por outro. Deste modo, a primeira via parece ter uma refutação científica. O ponto central do A. no capítulo não é refutar a noção de inércia, mas reler a primeira via como um argumento metafísico como as demais quatro vias, e não como um argumento físico para a existência de Deus. Um ponto importante a salientar é que as vias para a existência de Deus são argumentos do tipo quia, ou seja, que a partir de constatações acerca das criaturas visíveis inferem a existência de sua causa transcendente. O capítulo conclui de modo muito interessante, uma vez que demonstra como o princípio o que é movido, é movido por outro, pressuposto por Tomás na primeira via, não é tão facilmente derrubado apenas pela lei da inércia. Pois esta seria uma lei físico-matemática, enquanto aquele, um princípio ontológico. No terceiro capítulo, o A. dá uma solução interessante contra a literatura que defende uma visão negativa com relação à teologia de Tomás, notadamente
12 David Burrel 2. Pois toda a teologia negativa do Doutor Angélico pressuporia o conhecimento de Deus como causa o conhecimento quia do segundo capítulo, o qual não é um conhecimento negativo, mas um conhecimento positivo acerca de Deus. Ou seja, admite-se conhecimento por remoção das criaturas, mas isto pressupõe a demonstração quia da existência do Criador. Deve-se aqui ter em mente a distinção entre vida presente e vida eterna, uma vez que na vida presente não se tem um conhecimento perfeito de Deus, o que só será possível na vida eterna no que diz respeito aos bem-aventurados, i.e., aos que vierem a gozar da visão beatífica. Estes terão um conhecimento afirmativo, presente, verão a Deus tal como Ele é. No caso dos que estão na vida presente, só podem conhecer a Deus imperfeitamente por uma característica da mente humana e de modo negativo. Ora, o que se conhece de modo negativo resulta da questão quid sit, o que Deus é?. Em contrapartida, a resposta a esta questão pressupõe a resposta à questão an sit, se Deus é (existe)?. Neste caso, a resposta pressuposta pela primeira questão e demonstrada pelas cinco vias por raciocínio quia é uma resposta afirmativa, na qual se conhece a existência de Deus por seus efeitos. No quarto capítulo, o A. aborda a questão dos nomes divinos, muito tratada no pensamento escolástico e que teve seu surgimento a partir do opúsculo de Pseudo-Dionísio intitulado De Divinis Nominibus. Segundo o A. (p. 103-4), Tomás critica duas visões sobre os nomes divinos. A primeira, atribuída a Maimônides, é a via remotionis, segundo a qual os nomes atribuídos a Deus o são apenas negando o que é próprio das criaturas. Uma segunda visão é a via causalitatis, na qual os nomes aplicados a Deus são vistos apenas do ponto de vista da causalidade, ou seja, Deus como causa daquilo do qual o nome é tirado. Tomás defende uma triplex via, ou seja, envolvendo tanto a via remotionis, a via causalitatis e a via excelentiae, de modo que aquilo do qual o nome é tirado existe em Deus de modo mais eminente. O exemplo apresentado pelo A. é o da vida. Quando dizemos que Deus é a vida, não se trata da vida como ocorre na vida 2 Cf. BURRELL, D. Aquinas: God and Action, Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1979.
13 humana, há uma remoção aqui. Também não se trata apenas do fato de que Deus é a causa da vida, mas também que a vida em Deus se dá de modo mais eminente. O A. conclui que o tratamento dado por Tomás na questão 13 da Ia pars da Summa Theologiae, no que tange aos nomes divinos, não deve ser interpretado como um mero apêndice sobre as considerações sobre a essência divina (p. 101). Pois no caso específico de Deus haveria uma discrepância entre o modo como Ele é inacessível ao nosso modo terreno de conhecer e o modo como nós pensamos acerca d Ele, i.e., sempre por similitude através do conhecimento quia. Neste sentido, os nomes de Deus Lhe são atribuídos mais ao modo como nós O pensamos do que como Ele é em si mesmo, o que nos é inacessível no atual estado da nossa vida. No quinto capítulo, o A. trata da tríplice característica da criação descrita por Tomás na questão 44 da Summa Theologiae, a saber, a produção quando há transmissão pela parte de Deus do Seu ser para as criaturas, a distinção que implica a multiplicidade e a diversidade nas próprias criaturas, e o governo que consiste na relação de causalidade final das criaturas com relação ao próprio Deus. Deste modo, o A. considera que Tomás trata de Deus como a causa universal do ser de todas as coisas (p. 139). É feita também uma distinção entre a causalidade de Deus com relação a Sua criação, na qual Ele transmite a existência para as criaturas, o que não deve ser confundido com as causalidades existentes dentro da natureza, denominadas pelo A. de causas secundárias. Por fim, enquanto a relação de causalidade entre Deus e as criaturas é propriamente denominada criação, há apenas dois modos de causalidade entre as criaturas: a geração (genaratio), na qual uma nova substância advém à matéria, e a transformação (alteratio), na qual um novo acidente advém a uma determinada substância. No último capítulo, o sexto, temos uma abordagem mais teológica do que filosófica. Trata-se da questão da graça. O A. define o que é graça através de três características principais, a saber, a iniciativa livre de Deus para entrar em uma
14 relação especial com o homem, para restaurá-lo do estado de pecado e para permiti-lo participar da bem-aventurança da vida divina. Para o A., a graça não decorre apenas do pecado humano, pois mesmo se o homem não tivesse pecado, ainda existiria a possibilidade da graça, expressa pelo desejo presente em Deus de compartilhar a Sua bondade com a criatura. Ocorre que o pecado humano apenas permitiu a manifestação da graça divina. Deste modo, o A. assinala a triplex conversio do homem a Deus (p. 163). A primeira é aquela pela qual o homem se prepara para receber a graça; a segunda, pela qual a vontade é aperfeiçoada por ela; e a terceira, que consiste na conversão pela qual o homem goza da vida eterna na visão beatífica de Deus. Por fim, a visão beatífica é própria apenas da natureza divina, de modo que os intelectos criados (anjos e almas humanas) dependem de uma concessão divina i.e, a graça para poder participar desta visão beatífica, uma vez que as substâncias intelectuais criadas não podem alcançar a visão beatífica apenas por sua própria natureza. Deste modo, a graça é um auxílio de Deus para o homem agir livremente em Sua direção. Em suma, Aquinas on God é um livro digno de ser lido, uma vez que trata de modo sistemático e linear o tema de Deus, tão vastamente abordado pelo Doutor Angélico tanto na Summa Theologiae quanto ao longo de sua vasta obra.