Federalismo às avessas: os reflexos do (anti)federalismo fiscal nos direitos fundamentais sociais

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Transcrição:

1 Federalismo às avessas: os reflexos do (anti)federalismo fiscal nos direitos fundamentais sociais André Frandoloso Menegazzo 1 Resumo: Na melhor exegese do constitucionalismo contemporâneo, atento aos ditames constitucionais e aos objetivos humano-sociais, expressos na Carta Magna de 1988, vislumbra-se o caráter fundamental dos direitos sociais e a sua necessária concretização. Para o fiel cumprimento da materialização destes encargos, o constituinte optou pela forma Federativa de Estado, a qual anuncia a descentralização do poder e a subdivisão das funções estatais. Aliada a essa divisão de tarefas, deve haver um sistema de distribuição do produto da arrecadação tributária apto a proporcionar aos Estados-membros e, no caso brasileiro, também aos municípios, a autonomia suficiente para o desempenho eficaz de seus atributos. Ocorre que, no Brasil, sabidamente, as receitas derivadas da tributação vêm se concentrando em demasia nos cofres da União em detrimento de uma distribuição mais equânime entre os estados federados e municípios. Tal realidade, além de embaraçar o progresso e desenvolvimento nacional, revela verdadeiro descaso com a concretização dos direitos fundamentais sociais e, neste ínterim, com a própria dignidade da pessoa humana, uma vez que os estados e os municípios, entes públicos que se encontram mais perto do cidadão e que, por consequência, conhecem melhor as necessidades sociais, recebem parcela limitada da arrecadação. Diante deste contexto, auxiliado pela análise de obras, estatísticas e artigos científicos foi elaborado este artigo, que tem por objetivo encontrar o nascedouro da barreira que obsta a execução dos direitos sociais e dos objetivos constitucionais previstos no pacto federativo brasileiro. Palavras-chave: Direitos Fundamentais Sociais. Distribuição do Produto da Arrecadação Tributária. Federalismo Fiscal. Pacto Federativo. Reserva do Possível. Abstract: By the best interpretation of the contemporary constitutionalism, attentive to the constitutional doctrines and to the social-human objectives expressed in Magna Carta of 1988, the fundamental character of the social rights and its necessary accomplishment are descried. In order to make the fulfillment of the materialization of these payroll taxes accurate, the constituting opted by Federated State form which denounces the decentralization of the power and the subdivision of the state functions. Allied to the division of these tasks, there must be a system of the distribution of the product from collection of taxes able to provide to Members State, and in case, the Brazilian one, also to the municipalities, the enough autonomy to the efficient perform of their attributes. However, in Brazil, we know, the income derived from the taxation has been concentrated on the Union safe in excess, in detriment of an equal income distribution between the Federated States and the municipalities. This reality, besides complicating the progress of the national development, it reveals a true negligence towards the accomplishment of the social fundamental rights once the States and municipalities, public beings that are closer to the citizen, and that, for consequence, they know better the social needs, receive limited parcel from the collection taxes. Towards this context, supported by books analysis, statistics and scientific articles, this article was elaborated, which has as purpose, to find the source of the barrier which impede the social rights accomplishment and the constitutional objectives foreseen in the Brazilian Federated agreement. Key-words: Social Fundamental Rights. Distribution of the product from the collection taxes. Fiscal Federalism. Constitutional Objectives. Federated Pact. 1 Acadêmico do curso de Direito da Faculdade Meridional, IMED. Email: andre.menegazzo@hotmail.com Orientação: Prof. Me. Rafael M. Marin

2 INTRODUÇÃO Trilhando passos largos rumo ao progresso e desenvolvimento humano-social, com as lentes direcionadas aos princípios democráticos, o constituinte originário solidificou a transição entre o antigo regime, autoritário e centralizador, e a nova república. Para tanto, adaptou a Constituição Federal de 1988 às novas aclamações da sociedade e elaborou um documento que revela autêntica preocupação com o bem-estar social, na medida em que elencou um rol de direitos fundamentais sociais que colocam o Estado na obrigação de dar à sociedade o acesso à saúde, à educação, à previdência social, à moradia, ao trabalho, ao lazer, à segurança etc. Não obstante, adotou a forma federativa de Estado, equalizando a distribuição de encargos sociais e atributos constitucionais, na medida em que descentraliza o poder e garante aos cidadãos a onipresença da figura estatal nos quatro cantos da nação. Todavia, em que pese a distribuição de competências entre os entes federados definidos no texto constitucional, a realidade política e social brasileira está muito longe de respeitar os anseios federativos. Não obstante a carga tributária brasileira ser a mais pesada entre os países emergentes, e mais alta, inclusive, que países como Japão e Estados Unidos 2, bem assim o fato dessa extraordinária arrecadação colocar o Brasil entre as dez maiores economias do mundo 3, o país ocupa a 79ª colocação no Índice Mundial de Desenvolvimento Humano IDH 4. Sem embargo, frente essa monstruosa arrecadação de um lado, e a ineficácia na concretização dos direitos fundamentais sociais de outro, constata-se a existência de uma barreira que obstaculiza a passagem dos recursos públicos àqueles que verdadeiramente têm a tarefa de executar referidos direitos. Com efeito, a superação desse obstáculo revela-se de extrema essencialidade quando se pretende alcançar os anseios almejados pelo constituinte originário. Sob esse aspecto, o presente estudo objetiva analisar os reflexos do (anti)federalismo fiscal nos direitos fundamentais sociais e, nesse caminho, desvendar o nascedouro da barreira que obsta a realização desses direitos e a concretização dos anseios humano-sociais constitucionalmente asseverados. Para tanto, busca-se, inicialmente, encontrar a fundamentalidade dos direitos sociais. Logo após, a pesquisa irá revelar a importante conexão existente entre a materialização dos direitos sociais e o pacto federativo. Por fim, far-se-á um paralelo entre o sistema de distribuição do produto da arrecadação tributária, o pacto federativo constitucional e a reserva do possível. 1 DIREITOS SOCIAIS: A FUNDAMENTALIDADE PROCLAMA EFETIVIDADE Determinar a fundamentalidade de uma norma constitucional e classificá-la como pertencente a determinado grupo de direitos, influi, singularmente, nos resultados hermenêuticos e nos aspectos concernentes a sua aplicabilidade, na medida em que exprime a verdadeira natureza e extensão do 2 Disponível em: <http://veja.abril.com.br/tema/desafios-brasileiros-carga-tributaria> Acesso em: 22 mai. 2014 3 Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/noticia/2013/04/brasil-deve-recuperar-posto-de-6-maioreconomia-em-2013-mostra-fmi.html> Acesso em 20 abr. 2014 4 Disponível em:< http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/07/brasil-sobe-uma-posicao-no-idh-mas-sofrepara-vencer-desigualdade-4558927.html > Acesso em: 06 ago. 2014

3 fenômeno político que deu origem ao sistema constitucional vigente, informando, de forma peculiar, a ideologia preferencial, bem como os seus aspectos estruturais e seus objetivos capitais. Nesse particular, cumpre iniciar o estudo conceituando direitos fundamentais e direitos humanos - ou direitos do homem -. Para Canotilho (1998, p. 359), direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos; direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídicoinstitucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. O termo direitos fundamentais, portanto, aplica-se àqueles direitos de cunho humanístico efetivamente reconhecidos e positivados constitucionalmente por um determinado Estado, aclamando uma ótica interpretativa voltada a sua máxima concretização. Os direitos humanos, por sua vez, ultrapassam as fronteiras da Constituição nacional, sendo a sua principal característica o caráter supranacional. Pode-se concluir, pois, que a fundamentalidade do conteúdo, bem como a eficácia, tanto jurídica quanto social dos direitos humanos, dependem de expressa recepção na ordem jurídica interna. Sob uma fundamentação filosófica, a abordagem assentada na perspectiva sistemático-jurídica é essencial para demonstrar com clareza o conteúdo nuclear dos direitos sociais, determinando sua compatibilidade substancial com os princípios da ordem democrática brasileira. Na ponderação de Tavares (2002, p. 555), direitos sociais são aqueles que exigem do Poder Público uma atuação positiva, uma forma atuante na implementação da igualdade social dos hipossuficientes. No mesmo sentido, Silva (2006, p. 286) conceitua esses direitos como:... prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitem melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. Diante desse aspecto, são considerados e consagrados no artigo 6º como direitos sociais na Carta Magna de 1988: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança etc. Destarte, percebe-se uma estreita relação de reciprocidade e nexo de interdependência entre direitos sociais e o princípio da dignidade da pessoa humana. Ainda, vislumbra-se que os respectivos direitos fundamentais sociais apresentam uma estrutura peculiar por fazerem referência a valores e princípios sob o agasalho da dignidade da pessoa humana - malha protetora e núcleo dos referidos direitos. Assim, a concretização dos direitos fundamentais sociais, por estar ligada a dignidade da pessoa humana, constitui princípio-condição da Justiça Social (ROSA, 2008, p. 210), um dos objetivos da Constituição Federal de 1988, e vetor-guia na realização das políticas públicas. Ademais, a otimização de todos os objetivos do Estado brasileiro e não apenas a Justiça Social -, devidamente elencados no art. 3º da Constituição de 1988, demandam a necessária aplicabilidade e efetividade dos direitos fundamentais sociais. Contudo, a máxima concretização e aplicação desses direitos, na esteira do que proclama a Constituição Federal de 1988, perpassa, obrigatoriamente, pela escolha de uma forma de Estado dinâmica e equalizada, apta a atender às aclamações sociais e fomentar o progresso e desenvolvimento humanitário do país. Diante desse cenário, estudar-se-á a forma de Estado adotada pelo constituinte originário.

4 2 BRASIL: UM ESTADO FEDERATIVO No Brasil, a federação formou-se por meio de segregação, isto é, de dentro para fora, num movimento centrífugo, pois tínhamos um Estado unitário que se descentralizou para formar unidades autônomas de poder (BULOS, 2011, p. 901). A Constituição Federal de 1988 traz, no caput do art. 1º, a forma Federativa de Estado, composta pela união indissolúvel dos Estados, Municípios, e do Distrito Federal. Na imperiosa lição de Mendes e Branco, (2012, p. 860):... o Estado Federal expressa um modo de ser do Estado (daí se dizer que é uma forma de Estado) em que se divisa uma organização descentralizada, tanto administrativa quanto politicamente, erigida sobre uma repartição de competências entre o governo central e os locais, consagrada na Constituição Federal, em que os Estados federados participam das deliberações da União, sem dispor do direito de secessão. Com efeito, a pedra angular da federação consiste, essencialmente, na descentralização do poder entre os entes federados, interligados pela Constituição Federal, na medida em que, juntos, servem aos objetivos estabelecidos pelo constituinte originário. Nesse ponto, aliás, reside a principal disparidade entre as formas Unitária e Federativa de Estado, na medida em que aquela tem como característica o poder concentrado no governo central, que pode delegar parcelas de prerrogativas aos demais entes, na extensão de sua vontade e pelo tempo que houver interesse (AGRA, 2012, p. 110). Consectário lógico da descentralização do poder consiste a probabilidade maior de efetividade dos preceitos constitucionais, precipuamente no que tange a materialização dos direitos fundamentais sociais, na medida em que aproxima as necessidades aclamadas pela sociedade dos detentores do atributo de execução e realização desses direitos. Neste rumo, o divórcio do Estado com o unitarismo, que delongava, sobremaneira, a execução de direitos essenciais à plenitude da dignidade humana, atende aos anseios de uma nação propulsora, que busca no desenvolvimento humano-social a energia para o progresso econômico e, acima de tudo, sedimenta a democracia 5. Atento aos elementos formadores da federação, à sua importância e função estruturante, o legislador originário dispôs sobre a autonomia dos entes federados no pórtico inaugural do título constitucional referente à organização do Estado brasileiro 6. Na doutrina de Agra (2012, p. 111), a autonomia pode ser definida como a capacidade de autogoverno, sendo caracterizada por uma ampla gama de atribuições, como a capacidade orçamentária, administrativa, legislativa, financeira e, principalmente, tributária. 5 Segundo Streck e Morais: A Federação aparece como bloqueio à concentração autoritária do poder, em face da descentralização de poder que fomenta. Dessa forma, federação e democracia têm uma tendência simétrica, embora tal não seja uma contingência inexorável (2007, p. 171). 6 Art. 18: A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição (BRASIL, 2012, p. 19).

5 A forma federativa de Estado reflete o esqueleto estrutural do Brasil, que encontra na descentralização do poder, e na autonomia dos entes federados, a sua espinha dorsal. Num plano teórico, a organização estrutural do Brasil na forma federativa representa a diminuição do hiato existente entre ordem constitucional estabelecida e a realidade social, porquanto descentraliza o poder, subdivide as funções, e coloca os agentes estatais frente aos problemas enfrentados pela sociedade. Nesse aspecto, e diante deste contexto jurídico-político, é importante o estudo do federalismo fiscal em voga no Brasil, sustentáculo da referida espinha dorsal deste Estado, 3 FEDERALISMO FISCAL: VESTÍGIOS UNITARISTAS AINDA PERMEIAM NO BRASIL A carreação de recursos financeiros para o preenchimento do cofre público, donde brotam os elementos econômicos necessários à materialização dos direitos fundamentais sociais, é realizada através da arrecadação tributária, função do Estado Fisco. Por esta razão, o pacto federativo estabelecido pela Constituição Federal de 1988 anuncia o estabelecimento de uma autonomia tributária aos entes federados, a fim de impulsionar o crescimento socioeconômico do Brasil. Com efeito, a Carta Política brasileira institui competências tributárias, nos artigos 153 a 156 7, outorgando à União, Estados, Municípios e Distrito Federal amplo poder legislativo para, por meio de legislação infraconstitucional, disciplinar a matéria e a legislação tributária. Além disso, a CF/88 disciplina um sistema de repartição de receitas entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Conforme disciplinam os artigos 157 a 159 8, a União entregará aos Estados, aos Municípios 7 Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: I - importação de produtos estrangeiros; II - exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III - renda e proventos de qualquer natureza; IV - produtos industrializados; V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI - propriedade territorial rural; VII - grandes fortunas, nos termos de lei complementar. Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; III - propriedade de veículos automotores. Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: I - propriedade predial e territorial urbana; II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar. 8 Art. 157. Pertencem aos Estados e ao Distrito Federal: I - o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem; II - vinte por cento do produto da arrecadação do imposto que a União instituir no exercício da competência que lhe é atribuída pelo art. 154, I. Art. 158. Pertencem aos Municípios: I - o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem; II - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto da União sobre a propriedade territorial rural, relativamente aos imóveis neles situados, cabendo a totalidade na hipótese da opção a que se refere o art. 153, 4º, III; III - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios; IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Parágrafo único. As parcelas de receita pertencentes aos Municípios, mencionadas no inciso IV, serão creditadas conforme os seguintes critérios: I - três quartos, no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios; II - até um quarto, de acordo com o que dispuser lei estadual ou, no caso dos Territórios, lei federal. Art. 159. A União entregará: I - do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados quarenta e oito por cento na seguinte forma: a) vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal; b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios; c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através

6 e ao Distrito Federal, parte da arrecadação de tributos de sua competência, através de repasses a automáticos, ou através do Fundo de Participação dos Estados e Fundo de Participação dos Municípios. Há, também, a previsão de partição dos Municípios nas receitas dos Estados provenientes do Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Portanto, o escopo principal do federalismo fiscal consiste em organizar sistematicamente as finanças do país em harmonia com as características da federação. A viga-mestra deste desejável sistema tributário nacional cinge-se, singularmente, em conferir aos governos municipais, estaduais e distritais a suficiente autonomia tributária. Entretanto, o anacrônico - mas atual - sistema de distribuição do produto da arrecadação tributária, principal característica daquilo que aqui se denomina como (anti)federalismo fiscal, concentra a riqueza financeira nos cofres da União, obstando a execução dos fins constitucionais, precipuamente no que pertine aos direitos sociais. Na leitura atenta dos dispositivos constitucionais mencionados, a desigualdade entre a União e os entes federados mostra-se clarividente. A soma dos impostos municipais (três), com os impostos estaduais (três), sequer alcança o número de impostos federais (nove). Não obstante, ainda existem as contribuições 9 instituídas pela União, que não necessitará dividir com os Estados, Municípios e Distrito Federal o produto da arrecadação, porquanto os sistemas constitucionais de distribuição automática da arrecadação tributária, conforme acima relatado, são constituídos, essencialmente, pelos impostos. Afora isso, a desprezível e insignificante porcentagem da arrecadação federal repassada aos governos regionais e locais não é satisfatória a ponto de garantir àqueles governos a autonomia suficiente para autogovernar-se, provocando abalos enfraquecedores na própria solidez do pacto federativo e, por conseguinte, na força normativa da Constituição. Com efeito, a Carta Magna ainda confere à União, através da competência residual 10, a possibilidade de criar, de forma ilimitada, novos impostos e contribuições, desde que, por meio de legislação complementar e mediante o atendimento dos critérios ali estabelecidos, sejam definidos novos fatos geradores e novas bases de cálculos distintas do previsto na Constituição. Nessa linha, segundo Machado (2011, p. 29), o sistema de distribuição de receitas em vigor no Brasil tem o inconveniente de manter os Estados e os Municípios na dependência do Governo Federal, a quem cabe fazer a partilha das receitas tributárias mais expressivas. de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer; d) um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano; II - do produto da arrecadação do imposto sobre produtos industrializados, dez por cento aos Estados e ao Distrito Federal, proporcionalmente ao valor das respectivas exportações de produtos industrializados. III - do produto da arrecadação da contribuição de intervenção no domínio econômico prevista no art. 177, 4º, 29% (vinte e nove por cento) para os Estados e o Distrito Federal, distribuídos na forma da lei, observada a destinação a que se refere o inciso II, c, do referido parágrafo. 9 Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo. 10 Art. 154. A União poderá instituir: I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição.

7 Assim, cai por terra a nobreza do sistema federativo de descentralização do poder e imediato atendimento das premências peculiares dos Estados e Municípios, ao passo que o Sistema Tributário Nacional, no que pertine a distribuição do produto arrecadado, não confere aos entes federados, exceto à União, a autonomia tributária e financeira essencial à materialização dos direitos fundamentais sociais e aos objetivos constitucionais, encargos descentralizados que envolvem alocação de verba pública, gize-se, centralizada. Como principal reflexo desse federalismo fiscal às avessas, exsurge a barreira jurídica da reserva do possível, que entrava o desenvolvimento social e econômico do país, conforme análise a seguir. 4 A POSSÍVEL E (IN)TRANSPONÍVEL RESERVA DO POSSÍVEL A cláusula da reserva do possível, outro instituto jurídico importado do direito alemão 11, corresponde, em sua essência, aos elementos da realidade, ao cenário fático capaz de influenciar a aplicação dos postulados jurídicos, e a implementação de políticas públicas. Seguindo o magistério de Caliendo, (2009, p. 203) a reserva do possível é entendida como limite ao poder do Estado de concretizar efetivamente direitos fundamentais a prestações. Na esteira do que leciona Barcellos (2002, p. 236), a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. Assim, o fundamento racional da reserva do possível consiste na possibilidade ou não da Administração Pública financiar a materialização dos direitos sociais frente à escassez do objeto precípuo desses direitos. Desse modo, a execução máxima dos direitos fundamentais sociais no quadro constitucional brasileiro está sob a reserva do possível limite à realização dos direitos fundamentais, que comporta, pelo menos, duas dimensões: fática e jurídica (KELBERT, 2011, p. 71). A dimensão fática consiste na objeção da falta de recursos necessários à concretização dos direitos fundamentais, representando, neste sentido, o obstáculo da ausência do objeto nuclear desses direitos. Na lição de Caliendo (2009, p. 204), a ausência total de recursos necessários para o atendimento de um direito a prestações impede faticamente o cumprimento da demanda social. Cumpre destacar, neste foco, que a referida ausência fática de recursos não se restringe essencialmente aos econômicos e financeiros, mas também, aos recursos humanos e materiais indispensáveis. Neste sentido, destacamos como exemplos a falta de escolas públicas e de professores para atender à demanda social e garantir o direito à educação. Em primeiro plano, poder-se-ia justificar a nascente dessa situação numa possível arrecadação parca e diminuta, tendo em vista o alto custo que os direitos sociais denotam. Assim, não havendo recursos econômico-financeiros suficientes no cofre público, não haveria como dispor do objeto fático destes direitos para materializá-los. Contudo, esta não é a realidade brasileira. 11 A reserva do possível tem sua origem no direito alemão, no caso numerus clausus, em 1970. Na ocasião, debatiase a questão de vagas nas universidades, e a razoabilidade de se exigir do Estado uma vaga para cada cidadão interessado em um curso superior. Isso porque a Lei Maior da Alemanha trazia expressamente a possibilidade da livre escolha da profissão. Contudo, os cidadão que postularam a ação afirmavam, em síntese, que para escolher livremente a profissão, em condições de igualdade, era necessário conceder à todos o acesso a um curso superior, tendo em vista que muitos profissões exigiam graduação para o efetivo exercício. No Brasil, a seu turno, a reserva do possível passou a ser objeto de discussão a partir da década de 90, e em um cenário um pouco diferente. Em nosso país, a reserva do possível mostrou-se como obstáculo à concretização dos direitos fundamentais sociais tendo em vista o alto custo desses direitos e a (in)disponibilidade econômica do Estado, ao passo que na Alemanha referiase, precipuamente, aos institutos da razoabilidade e da proporcionalidade.

8 Pesquisa divulgada pelo jornal Folha de São Paulo 12 demonstra que, entre os anos de 2001 e 2010, a arrecadação brasileira cresceu 264,5%, quase o dobro da inflação, e mais de 16% acima do Produto Interno Bruto PIB. Não obstante, a carga tributária brasileira bateu recorde em 2012, chegando ao patamar de 36,27% do PIB 13. Além disso, dados divulgados pela revista Veja 14 revelam que, entre os anos de 2000 e 2013, a carga tributária brasileira, per capita, cresceu 284,3%, ao passo que o PIB, no mesmo período, cresceu 273,3%. Estudo realizado IBPT 15 revelou, ainda, que a carga tributária, em 2013, foi quase o dobro dos demais países em desenvolvimento que compõem o Bric, quais sejam, Rússia, Índia e China. Outrossim, o dispêndio de aproximadamente 28 bilhões de reais extraídos do cofre público federal para a realização da Copa do Mundo em 2014 demonstra a extrema capacidade econômica e financeira da União 16. Portanto, o nascedouro da problemática concernente à impossibilidade de materialização dos direitos fundamentais sociais não reside na arrecadação tributária insuficiente. Ocorre que, no atual sistema de distribuição de competências tributárias e do produto da arrecadação tributária, conforme demonstrado, a riqueza nacional fica concentrada nas mãos da União. É a ausência desta ponte de passagem de recursos entre a União e os entes federados que dissocia o federalismo fiscal do pacto federativo, e, como reflexo lógico, estrutura com solidez a barreira jurídica da reserva do possível, entravando, nesse compasso, a realização dos direitos fundamentais sociais. Segundo Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2012, p. 562), o aspecto jurídico da Reserva do Possível guarda conexão com a distribuição de receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas e, em países como o Brasil, ainda reclama equacionamento em termos de sistema federativo. Calcada em linha semelhante de raciocino é a lição de Kelbert (2011, p. 83), para quem a dimensão jurídica da Reserva do Possível diz respeito à disponibilidade de meios e recursos para a efetivação dos direitos sociais. Isso significa que os recursos existem, mas por alguma razão não estão disponíveis e não podem ser utilizados. A questão é atuarial e matemática. Afinal, se o Estado brasileiro, através da União, arrecada uma montanha imensurável de verbas públicas que, a priori, seriam suficientes para ultrapassar todas as barreiras que obstam a materialização dos direitos sociais e a efetivação dos fins constitucionais, e estes recursos, por sua vez, não retornam de maneira satisfatória à sociedade, por certo que há, no momento da distribuição, clara inobservância à forma federativa de Estado e a forma democrática de governar. 12 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/me1602201114.htm>acesso em: 30 jan. 2014 13 Disponível em: < http://www.ibpt.com.br/noticia/559/carga-tributaria-recorde-em-2012-36-27-do-pib> Acesso em: 25 mai. 2013 14 Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/economia/carga-tributaria-por-habitante-cresceu-2773-nosultimos-14-anos> Acesso em 05 ago. 2014 15 Disponível em: <https://www.ibpt.org.br/noticia/1443/carga-tributaria-brasileira-e-quase-o-dobro-da-media-dos- BRICS> Acesso em 05 ago. 2014 16 Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/esporte/folhanacopa/2013/06/1297264-gastos-publicos-com-acopa-2014-sobem-e-chegam-a-r-28-bilhoes.shtml> Acesso em 05 ago. 2014

9 Consequência desse sistema unitarista e refratário é revelada pelo Índice de Retorno de Bem- Estar à Sociedade IRBES 17, estudo da relação da carga tributária versus retorno dos recursos à população em termos de qualidade de vida, segundo o qual, entre os 30 países com a maior carga tributária do mundo, o Brasil é o que pior retorna esses recursos à sociedade. Assim, na medida em que a responsabilidade pelo preenchimento do caixa público é conferida quase que exclusivamente pelo produto da arrecadação tributária, e este caixa, a seu turno, mostra-se em constante crescimento arrecadatório, como é público e notório, hoje, no Brasil, a má distribuição da receita, principal reflexo do atual (anti)federalismo fiscal, obstaculiza e impede diametralmente a materialização dos direitos fundamentais sociais. Neste ponto, exsurge a dimensão jurídica da reserva do possível como sustentáculo e raiz fundante da dimensão fática, obstaculizando o atingimento dos objetivos constitucionais, precipuamente no que tange a justiça social. CONSIDERAÇÕES FINAIS A democracia plasmada na ordem constitucional brasileira proclama a efetividade dos direitos fundamentais sociais como potente vetor-força do progresso e desenvolvimento humano-social, constituindo numa categoria ético-jurídica que salta a planície e ganha os mais altos relevos de importância. A vinculatividade das normas definidoras de direitos fundamentais sociais reclama do Estado, seu destinatário principal, a função de arrecadar recursos econômico-financeiros, tendo em vista os custos que esses direitos carregam em sua essência e, desta forma, construir um organizado sistema institucional, formado por um aparato material e humano apto a torná-los realidade. Objetivando, portanto, a concretização dos direitos fundamentais sociais, e a otimização dos anseios constitucionais, o legislador originário optou pela aliança federativa na forma de Estado, descentralizando o poder e, desta forma, redistribuindo os encargos sociais e atributos constitucionais aos governos municipais e estaduais, de modo a equalizar a tarefa estatal na realização dos ditames constitucionais com celeridade e eficácia. Umbilicalmente relacionado aos elementos estruturantes do pacto federativo, deveria estar o federalismo fiscal, porquanto a garantia de autonomia tributária é imprescindível para a fiel materialização daqueles direitos assegurados aos cidadãos. Assim, a segurança jurídica de todo arcabouço constitucional pressupõe, juntamente com a descentralização dos encargos estatais, também a descentralização organizada e democrática de competências tributárias e do produto da arrecadação tributária. Neste ponto, encontramos uma latente desarmonia entre o federalismo fiscal e o pacto federativo e, portanto, a nascente da barreira da reserva do possível. Afinal, a barreira fática da reserva do possível, que se cinge, singularmente, na indisponibilidade de recursos econômico-financeiros, na realidade brasileira, não é outra coisa senão o resultado da dimensão jurídica, reflexo do (anti)federalismo fiscal em vigor, que impede a passagem dos recursos existentes aos detentores dos atributos constitucionais de realização dos direitos fundamentais sociais. Diante desta realidade fático-jurídica, a aliança federativa estabelecida no constitucionalismo pátrio representa mais do que uma esperança à sociedade, uma ilusão. Não existe uma relação imediata entre teoria e práxis. Em que pese o federalismo trazer em sua estrutura o dinamismo ideal à organização político-administrativa de um país extremamente populoso, sedento pela garantia de condições sociais mínimas, essenciais à redução das desigualdades sociais, à erradicação da pobreza, e ao desenvolvimento nacional, a elevada concentração do produto da arrecadação tributária nas mãos da União afronta a garantia da autonomia aos entes federados, distorce o federalismo pactuado, e entrava, sobremaneira, o progresso humanitário da Nação, jogando às traças todos os vetores constitucionais orientados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. 17 Disponível em: <http://ibpt.com.br/noticia/64/retorno-de-impostos-no-brasil-e-pior-que-no-uruguai> Acesso em: 15 abr. 2014

10 Portanto, a equalização na distribuição do produto da arrecadação tributária em atenção às necessidades sociais identificadas pelos entes federais locais e regionais daria a devida sintonia ao pacto federativo. Este seria, portanto, o primeiro passo para alavancar o progresso e desenvolvimento nacional numa simetria perfeita com a concretização dos direitos fundamentais, de modo a dignificar a existência humana, promover a inclusão social, a igualdade material e, por fim, aproximar o Brasil da justiça social. Dito de outro modo, o respeito ao pacto federativo seria o meio adequado para ultrapassar a barreira da reserva do possível e concretizar os direitos fundamentais sociais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGRA, Walber de Moura Agra. Curso de Direito Constitucional. 7.ed..Rio de Janeiro: Forense, 2012. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2012. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional: revista e atualizada de acordo com a Emenda Constitucional n. 66/2010. 6.ed.. São Paulo: Saraiva, 2011. CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 2009. CANOTILHO, Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2.ed.. Coimbra: Almedina, 1998. KELBERT. Fabiana Okchstein. Reserva do Possível e Efetividade dos Direitos Sociais no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 32..ed..São Paulo: Malheiros, 2011. MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7.ed..São Paulo: Saraiva, 2012. ROSA, Marizélia Peglow da. Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais. In: GOREZEVSKI, Clóvis e REIS, Jorge Renato dos (org.). Direitos Fundamentais Sociais como Paradigmas de uma Sociedade Fraterna: constitucionalismo contemporâneo. Santa Cruz do Sul: IPR, 2008. SARLET, Ingo Wolfgang; MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Direito Constitucional. 1.ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. 7.ed..Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2010. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 1.ed.. São Paulo: Saraiva, 2002.