RECONSTRUÇÃO EXPERIMENTAL DA TECNOLOGIA CERÂMICA GUARANI: gestos e pensamentos. Jedson Francisco Cerezer 1 André Luis Ramos Soares 2

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Transcrição:

RECONSTRUÇÃO EXPERIMENTAL DA TECNOLOGIA CERÂMICA GUARANI: gestos e pensamentos Jedson Francisco Cerezer 1 André Luis Ramos Soares 2 RESUMO Gestos e pensamentos e reconstrução experimental são apresentados neste artigo como argumento para o processo de experimentação arqueológica por nós desenvolvida. Nas linhas que se seguem podemos encontrar o processo experimental em tecnologia cerâmica de forma resumida e uma breve discussão acerca das observações possíveis ao cruzar vasilhas produzidas sobre o protocolo de experimentação com as oriundas das coleções arqueológicas e assim pretendemos motivar que outros trabalhos do mesmo teor possam ser desenvolvidos para ampliarmos as bases de análise e comparação cruzada de dados. Palavras-chave: Arqueologia experimental. Arqueologia Guarani. Tecnologia Cerâmica. ABSTRACT Gestures and thoughts and experimental reconstruction are presented in this article as an argument for archaeological experimentation process developed by us. In the lines that follow we find the experimental process in ceramic technology a summary and a brief discussion of possible observations while cruising vessels produced on the experimentation protocol with the coming of the archaeological collections and so we want to motivate other works of the same content can be developed to broaden the bases of analysis and comparison crossed database. Keywords: Experimental archeology. Archaeology Guarani. Ceramic Technology. 1 Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro UTAD. Fundação para a Ciência e a Tecnologia FCT projeto: SFRH/BD/74394/2010. Grupo de Quaternário e Pré-História, Centro de Geociências (ui&d 73 FCT). Instituto Terra e Memória. Museu de Arte Pré-histórica e do Sagrado do Vale do Tejo, Mação Portugal. E-mail: jcpithi@gmail.com. 2 Universidade Federal de Santa Maria UFSM. Núcleo de Estudos do Patrimônio e Memória- NEP. Memorial de Imigração e Cultura Japonesa do Estado do RS. E-mail: alrsoaressan@gmail.com. 234

Introdução Se para os Guaranis históricos tudo é palavra 3, para os Guaranis arqueológicos tudo é gesto. Ao cruzarmos os gestos arqueológicos com as palavras históricas, podemos de maneira especulativa chegar a pensamentos. Nosso trabalho de arqueologia experimental 4 sobre a tecnologia da cerâmica Guarani nos possibilita olhar de forma clara para aquilo que chamamos de processo produtivo de um material cerâmico. Esse processo produtivo tem, nas suas várias etapas, operações que são divididas em seqüencias de gestos preconcebidos, que por si só compõe uma cadeia de operações complexas. Antes de adentrarmos no tema, é pertinente fazer uma breve abordagem acerca da arqueologia Guarani. Pois as suas problemáticas se mesclam com a história das pesquisas sobre os Guaranis. Se olharmos simplesmente para a grafia onde a expressão Guarani aparece já é suficiente para notar as várias dissonâncias ao seu respeito. Essas dissonâncias têm suas origens ainda no século XIX e se arrastam até hoje, pois se trata de uma história marcada por problemas interpretativos, no que diz respeito aos grupos humanos, à cultura material e, sobretudo, à língua. No intuito de não prolongar uma discussão que se alonga no tempo e oferecer uma síntese acerca do termo Tupi e Guarani, usamos distintamente a palavra Tupi enquanto tronco linguístico, Tupi-guarani para família linguística, Guaranis enquanto identidade étnica conforme proposto por Soares 5 e para a cultura material referimo-nos aos artefatos produzidos pelos antepassados das sociedades indígenas Guaranis 6 contrariando assim o termo Tupiguarani que foi criado para definir uma tradição arqueológica. Outras questões relevantes dizem respeito a Expansão dos falantes Tupi-guarani (são entendidas como relevantes na medida que contribuem para a classificação do material cerâmico). A forma de abordar essa temática contribuiu para a criação de dois modelos interpretativos. Um dos modelos apóia-se em valores culturais reduzidos a objetos num período marcado pelo fóssil diretor, explicando a dispersão dos grupos humanos pela 3 MELIÀ, 1979 apud NOELLI, F.S., Sem tekohá não há tekó: em busca de um modelo etnoarqueológico da aldeia e da subsistência Guarani e sua aplicação a uma área de domínio no delta do Jacuí, Rio Grande do Sul, 1993, p. 12. 4 CEREZER, J. F., Cerâmica Guarani: Manual de experimentação arqueológica, 2011. 5 SOARES, A.L.R., Arqueologia, História e Etnografia: o denominador guarani, 2002. 6. Contribuição à arqueologia guarani: estudo do sítio Röpke, 2005, p. 8. 235

seriação cerâmica, sugerindo uma trajetória abalizada pela degeneração da qualidade técnica dos acabamentos de superfície aplicada à cerâmica, que viveu um período áureo com a cerâmica pintada, vindo a sofrer regressões técnicas, passando pelo corrugado até seu fim com a chegada do europeu colonizador num período com a técnica do escovado. O outro modelo busca suporte nas raízes etnohistóricas para construir uma nova retórica em favor dos Guaranis pessoas, abandonando o Guarani objeto, apontando para uma ocupação dinâmica do território, em espaços manejados, com controle dos ciclos naturais, onde o material cerâmico tem forma e função conhecida dentro de uma sociedade complexa. Sendo assim a história da arqueologia Guarani marca-se em dois modelos interpretativos, modelos que se mantêm vivos nos debates acadêmicos, cada qual com seus argumentos e metodologias por um lado marcando o esgotamento de recursos e por outro preconizando o manejo ambiental. Processo experimental Para os estudos tecnológicos acerca do material cerâmico Guarani notamos a inexistência de trabalhos de arqueologia experimental que contemplassem todas as etapas do processo produtivo. Essa escassez de material aplica-se a todos os tipos de paralelos que envolvam experimentação em tecnologia cerâmica. Mesmo que no campo etnográfico os horizontes se ampliam, nunca podemos aplicar-los diretamente aos Guaranis, visto que os grupos remanescentes há tempos não produzem mais vasilhas cerâmicas. Partindo da premissa que os Guaranis no tempo dos contatos com o europeu e anterior foram grandes ceramistas, embasamos nossa pesquisa em duas fontes: uma na compilação dos dados etnohistóricos; outra nas informações arqueológicas. Sendo para nossa pesquisa a obra mestre, a segunda edição do livro de Fernando La Salvia e José Proença Brochado publicado em 1989, com o título Cerâmica Guarani 7. Embora nossas conclusões em momentos contradigam os autores, não existiu depois desta, outra obra que a superasse. Para desenvolver o processo experimental construímos um protocolo exclusivo edificado a partir de um processo heurístico. Pois em nenhum momento de nossas 7 LA SALVIA, F., BROCHADO, J.P., Cerâmica Guarani, 1989. 236

carreiras tivemos formação em olaria, o que de certa forma não condicionou os trabalhos. A gênese da criação experimental surgiu pela retórica da inversão. Nosso objetivo como arqueólogos é construir mecanismos que facilitem o estudo de achados arqueológicos, neste caso cerâmicas Guaranis. Na maioria das vezes o arqueólogo reconstrói formas cerâmicas a partir de fragmentos, nós nos propusemos fazer o inverso, transformar uma forma cerâmica em fragmentos. Se o objetivo é ter um vaso que possa virar fragmento há por detrás um longo caminho a percorrer. Esse caminho é marcado por escolhas, gestos e pensamentos. Cada um é determinante no resultado final, exigindo que cada etapa seja minuciosamente registrada para que ao finalizar o processo, quando a forma cerâmica se tornar fragmento, qualquer erro de percurso possa ser identificado exatamente quando ocorreu. À seleção das formas a serem reproduzidas, conjugaram-se aspectos ligados à forma e função das vasilhas dentro das sociedades guaranis etnohistóricas. Partindo das seis classes identificadas por Brochado, selecionamos quatro (Fig. 1). A opção por não usarmos as séries tipológicas apresentadas por Schmitz 8 (Fig. 2), se resume na não distinção que predomina entre as formas e os tipos de tratamento de superfície. Fig. 1 Tipos por forma e função Fig. 2 Tipos por seriação Entre as várias classes de vasilhas documentadas há uma predominância de determinados tipos de tratamento de superfície com relação às formas. O corrugado é mais comum nas que vão ao fogo, panelas e caçarolas; nas que não vão diretamente ao 8 SCHMITZ, P.I., Migrantes da Amazônia: a Tradição Tupiguarani, 1991. 237

fogo como os pratos, copos e talhas é comum o alisado; o ungulado é mais corrente em vasilhas de tamanho menor, como os pratos - podendo estar combinado ou misturado com outro tratamento de superfície -; o pintado, que apresenta cores como o vermelho, preto e branco em tons mais claros ou mais escuros, aparece nas vasilhas que não vão ao fogo depois de pintadas, como as talhas e os copos (usadas para armazenar ou servir bebidas fermentadas) 9. Estas e outras informações nos ajudaram a compor um quadro tecnotipológico a ser testado no processo experimental. Se por um lado sabemos da existência de formas, com tipos de tratamento de superfície específicos, com uma técnica de manufatura conhecida para a produção de grandes vasilhas, o mesmo não acontece para técnicas de cozedura nem para a seqüência gestual dos tratamentos de superfície. A sequência de operações, para se chegar as formas pretendidas, pode ser dividida em etapas, que em nosso caso chamamos de processo produtivo, compreendendo cinco aspectos gerais de análise: Argila, Antiplástico, Pasta; Estrutura de combustão e Peça. Para o item peças subdividimos em: Técnicas de manufatura; Acabamentos; Ambientes de produção e armazenamento; Cozedura, Mensuração; Testes adicionais, Fratura e Quantificação de fragmentos. As etapas acima descritas fazem parte de um plano maior que engloba alguns parâmetros gerais e estruturantes divididos em: Formas; Segmentos; Tamanhos; Processo produtivo; Fotografia e Análise dos Fragmentos. Partindo do princípio que todas as operações do processo produtivo são complexas, foi preciso eliminar variáveis no plano experimental. A primeira a ser eliminada foi o antiplástico. Consideramos para tal como único tipo antrópico o chamote caco de cerâmica moído, pois é comum haver inclusões de elementos não plásticos em depósitos de argilas e essa distinção de tipos exigiria análises laboratoriais consideradas para esse propósito desnecessárias. O mesmo aconteceu com as argilas. Embora tenhamos feito testes com argilas de depósitos fluviais, a sua pouca plasticidade e morosidade do processo de preparo forçou-nos à compra de pastas industrializadas. Além de análises de raio-x, os testes mecânicos aplicados foram os de maior proveito para a seleção das pastas. A opção por pastas de boa qualidade plástica eliminou inúmeras variantes e facilitou o processo de manufatura. 9 NOELLI, F.S., José Proenza Brochado: vida acadêmica e arqueologia tupi, 2008, p. 38. 238

O processo de manufatura das peças foi, dentre todos, o mais exigente, principalmente por necessitar habilidades manuais distintas, que só são aprimoradas com a constante repetição. Contudo o êxito desta atividade é visível na semelhança entre as peças experimentais com as arqueológicas. Para a cozedura buscamos um método dinâmico e controlado, nesse caso uma estrutura de combustão tipo forno a gás foi o mais adequado. Esta opção diminui o risco de quebras durante a cozedura, potencializando a produção e aumentando o grau de análises sobre o processo de manufatura. É certo que a cerâmica produzida pelos antepassados dos índios guaranis atuais não contava com fornos a gás, muito menos com indústrias para fornecer pastas de boa qualidade e o processo para obter uma vasilha em condições de utilização era distinto. Contudo, aquilo o que observamos nos fragmentos das peças experimentais remete a uma grande aproximação com aquilo visto em fragmentos arqueológicos. Se em períodos pretéritos uma peça fragmentava-se em diferentes momentos, nós o fizemos todos de uma mesma maneira. Fazendo uso de uma prensa hidráulica conseguimos exercer sobre o fundo de cada peça uma força de pressão progressiva até sua fragmentação, resultando em linhas de fratura verticais e horizontais, muito semelhantes às arqueológicas. Quando os primeiros fragmentos abandonaram sua posição de parede homogênea que ocupavam na vasilha, nosso pensamento ganhou forma. Tínhamos em mãos um caco de cerâmica e nele era possível ver tudo o que levou dias para ser construído. A orientação das pequenas partículas de argila e antiplástico indicavam a seqüência de gestos preconcebidos. Tornou-se possível de ver os vários roletes que construíram a parede. Negativos ou positivos de roletes se tornaram visíveis imitando aquilo se via em fragmentos arqueológicos. Marcas de impressões digitais estavam gravadas aparentes. Nas dobras do corrugado o movimento dos dedos indicavam o ponto do inicio e do fim de cada gesto que carregava porções de barro na função de unir um rolete ao outro. O sentido que as mãos tomaram ao alisar a peça tornavam-se visíveis nas muitas estrias espalhadas pelas paredes. O que tinha sido construído em pensamentos estava agora impresso na seqüência de gestos que compuseram operações distintas. As cores negras ou avermelhadas indicavam a intenção de tornar a cozedura mais oxidante ou mais redutora. Tudo que se via num fragmento estava registrado em fichas, gráficos e fotografias. Ao olhar os inúmeros cacos era possível recontar uma história em detalhes 239

de um processo tecnológico, das preferências e estratégias que motivaram nosso pensamento ao longo de meses de trabalho. Discussão O desenvolvimento de um processo de arqueologia experimental oferece muitas prerrogativas ao estudo do material arqueológico e consequentemente das sociedades que o produziram. Acreditamos que os benefícios advêm do modo como os processos são observados, pois o olhar de um experimentador circunda por três tempos diferentes: no passado, fonte da inspiração ou causa; no presente, seja no ato ou ação executada; no futuro, seja na premeditação do que se pretende fazer ou na análise do resultado com a memória daquilo que se executou. Dessa forma a experimentação traz novos aportes que vão sendo paulatinamente testados, analisados, repensados e voltam a ser questionados, para servirem de confrontação a uma realidade material cujas razões de sua existência caminham no campo da especulação. O que consideramos possível diante desse processo é a recuperação das técnicas e tecnologias para se obter um material/resultado semelhante ao encontrado no registro arqueológico, sem nunca ter a pretensão de afirmar que só é possível tal feito da maneira como a realizamos. O que é possível de fato está em dizer que da maneira como foi executado, o processo apresenta resultados que são semelhantes, supondo princípios de equiparação entre os resultados das duas realidades, a experimental e a arqueológica. A experimentação fornece resultados, esses sempre abrem possibilidade de estabelecer cruzamentos bilaterais, com as estratégias usadas no passado arqueológico para obter os fins, e assim saímos do campo da arqueologia experimental para entrar no campo da antropologia. Esse confronto surge principalmente na descrição da funcionalidade das peças e das suas classes morfotipológicas. Existem questões que podem ser observadas com um olhar tecnológico, não querendo dizer que seja essa a essência, mas é somente isso que conseguimos recuperar, de resto entramos num campo especulativo, sujeito a interpretações momentâneas, com risco de repetir os velhos erros do passado, erros que marcaram a arqueologia Guarani por repetir indistintamente alguns mitos, mitos que se 240

tornaram verdade acadêmica 10 e foram reproduzidos ao longo do tempo tanto por etnólogos e antropólogos como por arqueólogos. Alguns mitos da arqueologia Guarani nunca foram escritos, mas são repetidos continuamente em falácias, suposições que com o passar dos anos ganham forma de verdade e mesmo que nunca tenham sidos registrados são continuamente repetidos pelos corredores acadêmicos. A nossa experimentação traz algumas contribuições nesse sentido. Não apresentamos conclusões, mas sim reflexões, sobretudo no que concerne à manufatura, tratamento de superfície e cozedura do material cerâmico. Se hoje existem peças cerâmicas compondo coleções arqueológicas e essas têm datações por volta 1,5 mil anos BP 11, é certo que existe uma tecnologia que permitiu esse avanço no tempo e esta tecnologia está ligada diretamente com a manufatura e cozedura das peças. Quando falamos de cozedura lembramos que o fato de um material cerâmico ter atingido a temperatura necessária para fazer a inversão do quartzo alfa para o quartzo beta, aproximadamente aos 573 ±5º C, não quer dizer que seja o suficiente para ser uma boa cerâmica ; é preciso mais por volta de 900º C. Para atingir essas temperaturas não é muito difícil, visto que um material incandescente está no mínimo a uma temperatura de 800º C, portanto, as cerâmicas Guarani são cozidas a baixas temperaturas, baixa na escala das cerâmicas, o que corresponde a temperaturas até 1000º C. Outra questão relevante está no tipo de fratura e na coloração das paredes, que demonstramos ser muito mais uma questão de composição das pastas para o primeiro, e da atmosfera de cozedura para o segundo, do que da temperatura atingida por uma peça durante a cozedura, pois em nossa experimentação os resultados apresentaram variações nesses dois aspectos em cozeduras com temperaturas idênticas, na casa dos 900º C. Relativamente aos tratamentos de superfície faremos algumas considerações com base nos resultados obtidos. Não queremos dizer com isso que seja essa a lei da produção, mas foi essa a prática utilizada e os resultados podem ser descritos como positivos. Para os tratamentos de superfície, consideramos tudo que fosse aplicado sobre a superfície da peça, nesse caso não importando se fosse decorativo ou produtivo. A 10 NOELLI, F.S., op. cit., 1993, p. 11. 11 NOELLI, F.S., op. cit., 2008, p. 31. 241

reflexão que fazemos sobre esse tema diz respeito, principalmente ao corrugado, alisado e ungulado, uma vez que não utilizamos o pintado. La Salvia e Brochado 12 levantam questões sobre o que é produtivo e o que é decorativo, Seria possível fixar a distância que separa um do outro? Aquilo que é produção e o que é decoração?. Essa questão refere-se principalmente ao tratamento tipo corrugado, segundo os mesmos autores 13, indicam que para se obter esse tratamento de superfície que é caracterizado por uma decoração profunda a peça precisa estar em estado de couro, somente depois que o processo produtivo tiver chegado ao fim é aplicado uma nova camada de argila na qual é elaborado o processo decorativo, dessa forma a peça já estaria sólida e não sofreria abalos. Sendo então dois momentos, um produtivo e outro decorativo. As nossas observações indicam que a técnica do corrugado é uma técnica produtiva. Para conseguir esse tipo de tratamento em uma peça, é preciso somente erguer as paredes deixando os roletes expostos, nunca erguendo uma peça de forma ininterrupta, sempre atento ao tempo de firmeza da peça, nunca deixando chegar ao estado de couro, caso isso aconteça o corrugado não cumpriria com a função que lhe atribuímos unir os roletes. Uma peça corrugada tem, portanto, só um momento de trabalho em sua superfície externa; quando o último rolete estiver unido, a peça tem sua superfície externa pronta. Sobre as questões de ser uma ação equilibrada para manter a estética das peças, acreditamos que sim, pois a uniformidade contribui para a estabilidade na atividade técnica, uma vez que os roletes tendo sempre as mesmas dimensões, a peça terá também melhor estrutura e consequentemente o corrugado seguirá as linhas dos roletes, o que trará um aspecto de ordenação/simetria para quem a observar. Com relação às funções que o corrugado cumpre além das já mencionadas, podemos dizer que em nossas peças não notamos propriedades diferentes do alisado até o momento. O que constatamos foi que são peças cujo aquecimento do conteúdo em seu interior é mais lento que uma peça alisada, portanto, se considerarmos que as peças corrugadas são utilizadas com maior frequência sobre o fogo louça utilitária precisamos de novas experimentações com relação à sua resistência termomecânica ou funcionalidade, até isso não ser verificado, não temos como indicar o motivo técnico 12 LA SALVIA, F., BROCHADO, J.P., op. cit., 1989, p. 38. 13 Idem, ibidem, p. 31. 242

da preferência, a não ser pela facilidade da manufatura, sugerindo que por irem ao fogo devam ser repostas com maior frequência. Sobre os outros dois tratamentos, alisado e ungulado, as considerações demonstram se tratar de uma atividade de trabalho mais intensa. Uma vez que os roletes estejam unidos é preciso retornar à superfície das peças por mais de uma vez ou quantas forem precisas até atingir a intensidade necessária ou pretendida. Se o alisado exige essa atividade morosa, o ungulado exige mais, pois o retorno à superfície da peça é feito no mínimo mais uma vez, além de que imprimir as marcas da unha sobre toda a superfície exige muito tempo. Talvez seja por esse motivo que não vimos até ao momento grandes peças arqueológicas com o tratamento de superfície ungulado. Sendo assim podemos considerar o ungulado uma decoração, pois as funções técnicas até aqui estudas não são justificadas pela superfície com marcas de unha. Por fim iniciamos o processo de confrontação dos resultados de técnicas de reconstituição com os valores reais da peça antes da mesma virar fragmento. As indicações apresentadas sugerem grandes possibilidades de avançar para estimar a metodologia que melhor se adapta ao tipo de material em causa. Se olharmos para os bordos, notamos que a mesma peça, ao virar fragmento, apresenta vários tamanhos de raio de boca; dificilmente teremos dois fragmentos cuja reconstrução indique tamanhos iguais, indiferente de qual for à técnica de reconstrução utilizada, seja a do compasso para raio mediano ou do ábaco de círculos concêntricos para o diâmetro. Nesse caso, se forem considerados os fragmentos de bordo para estimar o número de vasilhas presentes numa coleção, somente os diâmetros reconstruídos a partir dos bordos não são suficientes para inferir uma análise satisfatória, visto que há sempre deformações pela força inerte ou simplesmente pela sua própria manufatura ser irregular, e os resultados ampliam o número de circunferências, automaticamente aumentando a quantidade de vasilhas. O que apresentamos, portanto, é uma sequência de estudos ligados à tecnologia cerâmica, voltado para a cerâmica Guarani. Partimos da revisão bibliográfica para o campo experimental, fechando o ciclo com o estudo do material em fragmentos, numa tentativa de repensar o processo completo pelo qual passa o material cerâmico que está presente numa coleção arqueológica, desde a obtenção das matérias-primas até a análise dos fragmentos. 243

Em nosso processo de reconstrução/experimentação para obter vasilhas cerâmicas Guaranis, notamos a existência de várias cadeias operatórias ao longo do processo produtivo, cada uma exigindo gestos e técnicas distintos. Nosso pensamento constantemente vagava pelo mundo do: como é que os guaranis as faziam?. Muitas noites e dias estiveram fadados a repensar estratégias que pudessem recuperar a gestualidade Guarani. Contudo, aquilo que produzimos, com maior ou menor similaridade é hoje de certeza uma nova contribuição para a Arqueologia Guarani. Agradecimento Este trabalho foi financiado pelo Estado Português através da FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto SFRH/BD/74394/2010. REFERÊNCIAS BROCHADO, J.P., MONTICELLI, G.; Neumann, E. S. Analogia etnográfica na reconstrução gráfica das vasilhas guarani arqueológicas. Veritas, Porto Alegre, 35:140, pp. 727-743, 1990. CEREZER, J. F. Cerâmica Guarani: Manual de experimentação arqueológica. Erechim: Habilis, 2011. LA SALVIA, F., BROCHADO, J.P. Cerâmica Guarani. Porto Alegre: Posenato Arte e Cultura, 1989. LEROI-GOURHAN, A. O gesto e a palavra. Edições 70: Lisboa, 1985. Col. Perspectivas do homem. NOELLI, F.S. José Proenza Brochado: vida acadêmica e arqueologia tupi. In: PROUS, A.; LIMA, T.A. (Orgs.) Os ceramistas tupiguarani. Sínteses regionais. Belo Horizonte: Sigma-Sociedade de Arqueologia Brasileira; IPHAN, pp. 17-47, 2008. NOELLI, F.S. Sem tekohá não há tekó: em busca de um modelo etnoarqueológico da aldeia e da subsistência Guarani e sua aplicação a uma área de domínio no delta do Jacuí, Rio Grande do Sul. Porto Alegre: PUCRS, 1993. [Origalmente apresentada como tese de mestrado]. SCHMITZ, P.I. Migrantes da Amazônia: a Tradição Tupiguarani. In: KERN, A. A. (Org.). Arqueologia Pré-Histórica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991, p. 295-330. SOARES, A.L.R. Arqueologia, História e Etnografia: o denominador guarani. Revista de Arqueologia Sociedade de Arqueologia Brasileira. São Paulo. 14-15, pp. 97-114, 2002. 244

. Contribuição à arqueologia guarani: estudo do sítio Röpke. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005. (Teses e dissertações. Série Conhecimento; 30). 245