Relatos de casos do Hospital Universitário Prof. Polydoro Ernani de São Thiago

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Transcrição:

Coordenadora: Profa. Simone Van De Sande Lee Subcoordenador: Prof. Evaldo dos Santos Chefe de Expediente: Lucas Indalêncio de Campos Editor do Boletim: Prof. Fabricio de Souza Neves Bloco didático-pedagógico do HU (1º andar) medicina@contato.ufsc.br www.medicina.ufsc.br 3721-2282 BOLETIM do CURSO DE MEDICINA Novembro 2017 Volume 3 número 6 Quando se fala em "Coordenação do Curso de Graduação em Medicina da UFSC", qual a primeira palavra que vêm à sua cabeça? Esta pergunta foi respondida por 189 alunos do curso, em uma pesquisa realizada pelo Chefe de Expediente Lucas Campos, em disciplina do mestrado em Gestão do Conhecimento, na UFSC. As respostas estão abaixo: Também foram apontadas as características relacionadas à coordenação do curso: Eficiente, Resolutiva, Organizada, Prestativa, Ágil, Dedicada. Este conjunto de características definiu o principal arquétipo associado à Coordenação do Curso: o Homem-Comum. Os resultados servem como registro do perfil da atual Coordenação do Curso e também como aprendizado a todos que atuam e atuarão profissionalmente: mais do que o prédio, equipamentos e recursos financeiros, são as pessoas humanas os principais definidores do perfil de um serviço. E no nosso caso, a personalidade do serviço reflete a busca da Medicina pelo equilíbrio, chamado de Homeostase : o Homem-Comum é aquele que está funcionando como deveria, e por isso é pouco percebido mas é o mais importante para as sociedades e para os organismos. É como o nosso coração pulsando regularmente, sem que sequer percebamos sua existência. Mas sem ele, estaríamos doentes ou mortos. Como as pessoas comuns merecem nossa gratidão! Nesta edição Pág. 2 Relatos de casos do Hospital Universitário Prof. Polydoro Ernani de São Thiago: Caso 4/2017 De amarelo para verde Locks BC, Corrêa CD, Rafaeli MVS, Delai M. Agenda A próxima discussão de caso clínico do HU será em 16 de novembro, às 18:00, no auditório do hospital com o tema Terapia Intensiva 1

Relatos de casos do Hospital Universitário Prof. Polydoro Ernani de São Thiago Caso número 4/2017: De amarelo para verde Bárbara Cavalheiro Locks, Catarina Dantas Corrêa, Marcos Vinícius Souza Rafaeli, Milena Delai (acadêmicos de Medicina) Editor: Prof. Fabricio de Souza Neves Editora convidada: Profa. Janaína Luz Narciso Schiavon Caso relatado na Reunião de Discussão de Casos Clínicos do Hospital Universitário Prof. Polydoro Ernani de São Thiago, iniciada pelos Profs. Jorge Dias de Matos, Marisa Helena César Coral e Rosemeri Maurici da Silva, em julho de 2017. No dia 19 de outubro de 2017, no auditório do HU, realizou-se a apresentação e discussão do caso cujo registro é apresentado a seguir: Figura 1. Icterícia Janaína Narciso Schiavon (Gastroenterologista): Boa noite. Apresentaremos o caso de um paciente do sexo masculino, com 41 anos, casado, professor de artes marciais, que fez um quadro de icterícia intensa há 40 dias. Encaminhado para acompanhamento com gastroenterologista devido a aumento progressivo de bilirrubinas. Presença de acolia fecal e colúria. Ausência de comorbidades. Uma internação hospitalar prévia para cirurgia de ginecomastia. Em uso de fluconazol 150mg por semana há cerca de 6 meses, tenoxicam e ciclobenzaprina em ciclos de 10 dias há pelo menos 2 meses, etoricoxibe há 3 dias, estanozolol por 45 dias e testosterona há 45 dias. É proprietário de uma academia e trabalha dando aulas o dia inteiro. Sem relatos de doenças na família. Nega tabagismo e uso de drogas recreativas. Etilista social. Ao exame físico: Bom estado geral, lúcido, orientado e contactuante. Ictérico (4+/++++), acianótico, hidratado, afebril. Pressão arterial 120/80 mmhg; frequência cardíaca 64bpm. Ausculta cardíaca com ritmo regular em dois tempos, sem sopros; ausculta pulmonar com murmúrio vesicular presente bilateralmente, simétrico, sem ruídos adventícios. Ao exame abdominal: abdome plano, com ruídos hidroaéreos presentes, flácido e indolor à palpação. Hepatimetria de 12cm, sem massas palpáveis, com espaço de Traube livre. Devemos então fazer o diagnóstico diferencial de icterícia, e para isso primeiro lembrar como funcionam as coisas: Primeiro: Será que é um aumento às custas de Bilirrubina Direta (BD) ou Bilirrubina Indireta (BI)? O fato de ele ter acolia fala a favor de aumento de BD. O aumento de BD pode ocorrer por lesão das vias biliares extra-hepáticas ou intra-hepáticas ou lesão hepatocelular (hepatite). Se fosse aumento de BI não teríamos colúria ou acolia e deveríamos pensar nos distúrbios de aumento da BI: hemólise, Síndrome de Gilbert (icterícia discreta, normalmente paciente saudável, sem outras queixas). Nas colestases de causa extra-hepática geralmente o paciente se queixa de dor, porque são quadros obstrutivos. Não é o caso aqui, o que torna a doença extra-hepática menos provável. De qualquer forma, sempre que há icterícia fazemos imagem para descartar que haja alguma forma de obstrução. E como vamos diferenciar a lesão de via biliar intrahepática da lesão hepatocelular? Quais exames pediríamos? Indicam lesão hepatocelular as alterações predominantes de aspartato aminotransferase (AST) e alanina aminotransferase (ALT). Sugerem lesão biliar intra-hepática as alterações predominantes de gama glutamiltransferase (GGT) e fosfatase alcalina (FA). Além disso, pedimos as dosagens de bilirrubinas (total e frações direta e indireta). Para lembrar: No sangue a bilirrubina circula como indireta e ela não é hidrossolúvel. Logo, circula ligada a albumina. Depois, a bilirrubina entra no hepatócito e é conjugada pela enzima UDP-glicuronil transferase. Quando o fígado fica doente, ainda conjuga, pois essa conjugação é passiva acontece mesmo com os hepatócitos lesados. O que aumenta no sangue periférico na doença hepática é, predominantemente, a BD, conjugada, extravasada pelo hepatócito lesado. Sendo hidrossolúvel, a BD em excesso no sangue é excretada na urina, o que faz a colúria. Mas o hepatócito doente não consegue excretar a bilirrubina conjugada à bile, que assim não 2

passa à luz intestinal, onde seria convertida em estercobilina que dá a cor marrom às fezes. A diminuição deste pigmento leva à descoloração das fezes, chamada acolia fecal. Vejamos então os exames complementares básicos neste caso de icterícia: Tabela 1: Exames laboratoriais (sangue) Resultado Valores de referência Hemoglobina 13,0 12,8 17,8 g/dl Leucócitos 5.530 4.500 11.000 / ml Plaquetas 368.000 150.000 450.000 Aspartato aminotransferase (AST) 58 10 40 U/l Alanina aminotransferase (ALT) 78 12 78 U/l Fosfatase alcalina (FA) 276 40 129 U/l Gama glutamiltransferase (GGT) 72 12 73 U/l Bilirrubina total (BT) 44,5 0,2 1,0 mg/dl Bilirrubina direta (BD) 28,9 0,0 0,2 mg/dl Bilirrubina indireta (BI) 15,6 0,2 0,8 mg/dl Tempo e atividade da protrombina (TAP) 67% 10-14s / 70% - 100% Anti-HAV (hepatite A) negativo negativo HBsAG (antígeno de superfície da hepatite B) negativo negativo Anti-HCV negativo negativo Fator antinuclear (FAN) negativo negativo Anti-músculo liso negativo negativo Anti-LKM-1 (liver-kidney microssomal) negativo negativo Anti-mitocôndria negativo negativo Janaína Narciso Schiavon (Gastroenterologista): AST e ALT pouco elevadas nos dizem que não há lesão hepatocelular ou que a lesão já está tão avançada que nem provoca mais o aumento da concentração dessas enzimas no sangue (situação em que o extravasamento destas enzimas já ocorreu, e no momento seus estoques estão depletados). BT de 44 mg/dl é muito alta. Lembrando que as maiores colestases são intrahepáticas, é provável que nosso paciente já tenha passado pela fase de elevação das aminotransferases. Provavelmente ele demorou para procurar um médico. Nesse caso observamos um discreto aumento de ALT, AST e FA, o que caracteriza um padrão de lesão mista (hepatocelular e canalicular). E o principal diagnóstico diferencial nesta situação é entre o uso de drogas ou hepatite autoimune. Como ele fazia uso de muitas medicações podemos ter o uso de drogas como maior suspeito para esta lesão hepática aguda (Drug Induced Liver Injury DILI), mas não podemos definir ainda o diagnóstico. É necessário fazer o diagnóstico diferencial com outras causas de disfunção hepática aguda. E como avaliamos a gravidade do caso e se tem que ficar internado? Pelos sinais clínicos e laboratoriais de insuficiência hepática aguda, que são: flapping, encefalopatia e TAP (tempo e atividade da protrombina) com tempo alargado (atividade menor que 40%). Em nosso caso, a atividade de protrombina do paciente está menor que 70%. Mas na DILI, a presença de icterícia com níveis muito elevados de bilirrubinas indicam gravidade e necessidade de internação. Outra maneira de avaliar a função hepática é pela concentração da albumina sérica, que no caso está normal. Como a meia-vida da albumina (normal no nosso paciente) é de 3 semanas, enquanto a meia-vida da protrombina (baixa no nosso paciente) é de 3 dias, temos um perfil laboratorial compatível com um quadro de poucas semanas de evolução. Os exames seguintes, solicitados após a internação, ajudam no diagnóstico diferencial com as principais etiologias das lesões hepáticas agudas: hepatite autoimune, através do anti-músculo liso e do FAN para hepatite autoimune (HAI) tipo 1, anti-lkm-1 pra HAI tipo 2 e o anti-mitocôndria para colangite biliar primária (antiga cirrose biliar primária), todos negativos neste caso. Foram solicitadas sorologias para as hepatites virais A, B e C, também todas negativas neste caso. Lembrando que o anti-hcv pesquisado por ELISA de 3ª geração pode demorar 30 dias para positivar, logo se tívessemos uma alta suspeita, pediríamos a pesquisa de HCV- RNA por PCR (reação em cadeia da polimerase), mas não nos pareceu necessário neste caso. Também foi realizada uma ultrassonografia do abdome superior, que mostrou apenas discreto aumento das dimensões e redução da ecogenicidade hepática, vesícula contraída, sem dilatação de vias biliares intra ou extrahepáticas, além do baço com dimensões normais. 3

O diagnóstico diferencial com HAI ainda persiste, no entanto, pois há casos com sorologias negativas. Por ser uma condição que mudaria o tratamento do paciente, neste caso é necessário excluir este diagnóstico por meio de biópsia hepática. Neste paciente, a biópsia apresentou os espaços porta com edema e discreto infiltrado inflamatório. No parênquima, prováveis faixas de colapso - esperadas no quadro de hepatite aguda - permeadas por células inflamatórias, chamando grande atenção a quantidade de pigmento biliar, principalmente em canalículos e hepatócitos. Indícios de hepatite colestática com necrose confluente. Não havia nenhum marcador tecidual de HAI, sendo mais provável a hipótese de DILI. Como vamos conduzir então uma lesão hepática conduzida por drogas? Tenta-se, se possível, suspender o uso das medicações suspeitas (no caso dele seriam fluconazol, tenoxicam,etoricoxibe e estanozolol) e avalia-se a evolução em 6 meses tempo em que deve haver completa recuperação. Com esta conduta, nosso paciente realmente foi melhorando: os níveis de bilirrubinas reduziram de 44mg/dl para 5 mg/dl em dois meses, quando recebeu alta hospitalar. Então, um mês após a alta hospitalar, o paciente retornou ao ambulatório com lesões de pele, principalmente em regiões palmo-plantares. Foi contatado o dermatologista Daniel Nunes para avaliação. Figura 2. Lesão cutânea Daniel Holthausen Nunes (dermatologista): Ainda é possível analisar que o paciente encontrava-se ictérico, um mês após a alta, no retorno ao ambulatório. As lesões eram maculares - uma vez que não possuíam relevo - muito escuras, enegrecidas a olho nu. Chegando mais perto, não tinham uma coloração negra tipo melanina (cor castanha) como estamos acostumados. E a distribuição também não é semelhante com o que corriqueiramente acontece nas manchas de melanina, sendo neste paciente mais proeminentes nas regiões palmoplantares. Ao olhar a região plantar, vê-se uma área mais escura em volta e mais clara no centro, não sendo marrom, e sim um pouco amarelada no centro (chegamos a pensar que seria pela icterícia mesmo) e esverdeada em volta, aproximando-se de um preto-esverdeado (Figura 2). Dessa forma, levantou-se a hipótese que pudesse estar saindo bilirrubina e impregnando na pele, devido à alta concentração de pigmento, sendo a hipótese mais forte pelo quadro agudo e intenso, mesmo eu nunca tendo visto. Na dermatoscopia, parecia uma tinta nanquim espalhada em folha de papel, sem formato nenhum de estrutura, como se realmente descesse pela camada córnea entre a epiderme e a derme e se espalhasse. Assim, decidimos fazer biópsia para analisar melhor o pigmento, retirando-se fragmento da área mais negra. Gabriela Di Giunta Funchal (patologista): Nesta biópsia é possível ver todos os compartimentos da pele: a camada córnea espessa, epiderme típica da pele desta região - hiperplásica - e derme normal. O material róseo em faixa chama a atenção, pois não é comum, ou seja, tem-se algum material retido na camada córnea. Além disso, nos chamou a atenção a presença de ductos sudoríparos écrinos visíveis, uma vez que esta visualização não é comum. Dentro destes ductos, é possível ver secreção, que também não é normal. Ou seja, é um processo que nos indica lentificação de excreção do suor, ou um volume muito alto de alguma substância. Na pele, têm-se dois tipos de ductos sudoríparos, o apócrino - que está presente principalmente em axilas e região genital -, e o ducto écrino, mais difusamente distribuído, principalmente na planta do pé e palma da mão. Logo, a lesão do paciente é de ducto écrino. Ou seja, pela camada córnea espessa, característica nos pés e mãos, o pigmento sendo excretado fica retido por muito tempo, sendo possível visualizá-lo facilmente nestas áreas, diferentemente de outras regiões do corpo em que esta camada é mais fina. Pela história, fez-se uma coloração especial para detectar a presença de ferro, e é possível ver no meio do material secretado (material seroso do suor) pigmentos em azul, que indicam depósitos de hemossiderina, de ferro. Então, isso justificou todo o quadro do paciente, que literalmente estava suando bilirrubina e suando ferro, retidos na camada córnea, sendo visíveis na coloração esverdeada e preta a olho nu devido a metabolização e oxidação do ferro. Janaína Narciso Schiavon (Gastroenterologista): Fomos pesquisar e vimos que o chamado suor verde (green sweat), cuja cor é alterada por hiperbilirrubinemia, é muito raramente descrito na literatura. E este parece ser o primeiro caso em lesão hepática induzida por droga. Gabriela Di Giunta Funchal (patologista): Cromidrose é a saída de pigmentos pelos ductos sudoríparos. É muito rara ser a bilirrubina, mas existem outros pigmentos que podem ser eliminados. Dessa forma, toda vez que se tem a coloração anormal do suor, deve-se investigar possíveis diagnósticos diferenciais. Pode-se também pensar localmente em bactérias que produzem substâncias cromógenas, como a Pseudomonas aeroginosa, e medicamentos, como causas da alteração da cor do suor. Daniel Holthausen Nunes (dermatologista): Na dermatoscopia, via-se uma distribuição irregular e bem superficial dos pigmentos, diferente de tatuagens em que estes se distribuem profunda e homogeneamente. 4

Gabriela Di Giunta Funchal (patologista): A pigmentação alterada da pele também ocorre com várias dermatoses perfurantes, em que são expelidas substâncias pela pele. Mas no caso desse paciente o pigmento era liberado pelo ducto das glândulas sudoríparas, e sua distribuição só se torna irregular pela impregnação da camada córnea destas regiões, onde passou a ter uma cor esverdeada pelo metabolismo da bilirrubina em biliverdina. José Roberto Alves (cirurgião): Ele teve prurido cutâneo? Sem discutir o valor acadêmico da biópsia hepática, esse caso poderia ter sido conduzido sem este procedimento? Janaína Narciso Schiavon (Gastroenterologista): Sim, ele teve prurido. Em relação à biópsia hepática, a nossa dúvida de diagnóstico diferencial era com HAI, na qual algumas vezes os marcadores laboratoriais são negativos e procura-se na biópsia indícios histológicos dessa doença (plasmócitos, rosetas, atividade lobular e hepatite de interface). Se positiva seria considerado o início da terapia com corticoides. Por ser uma informação que implicava em mudança de terapia, entendemos que a biópsia era necessária. Guilherme Ramos (acadêmico de medicina): Há diferença em realizar a biópsia no quadro bem agudo ou depois de meses para ver as alterações citadas? Janaína Narciso Schiavon (Gastroenterologista): Realizar a biópsia na fase aguda torna mais difícil o diagnóstico da etiologia da hepatite, porque em geral se visualizam mais alterações inespecíficas, como necrose em ponte. Se após esse quadro agudo, o paciente persistir com lesões hepatocelulares crônicas, poder-se-ia fazer a biópsia depois de alguns meses para identificar características histológicas mais especificas da doença de base. Mas ele melhorou. Isabela Sandrini Pizzolati (acadêmica de medicina): A hepatotoxicidade por anabolizantes é dose dependente? Janaína Narciso Schiavon (Gastroenterologista): A resposta é idiossincrática, ou seja, o paciente pode usar muitas vezes e uma vez ele terá reação, não sendo dose dependente. Referências 1. Triwongwaranat D, Kasemsarn P, Boonchai W. Green pigmentation on the palms and soles. Acral green pigmentation (eccrine chromhidrosis). JAMA Dermatol 2013;149:1339-40. 2. Narciso-Schiavon, J.L. ; Di Giunta, G. ; Andre, M. H. ; Dimatos, O. C. ; Dantas-Corrêa, E.B. ; Nunes, D. H. ; Schiavon, L.L.. Green Sweat: An Atypical Finding in Drug-Induced Liver Disease. Liver Int 2014;34(5):816-7. IFMSA Brazil na UFSC A Federação Internacional de Associações de Estudantes de Medicina (IFMSA) agora conta com comitê local na UFSC com atuação na IFMSA brasileira, contando com voto na entidade e podendo realizar os intercâmbios da Federação. Maiores informações com o acadêmico Miguel Ângelo Fabrin, presidente do comitê local, através do e-mail: presidente.ufsc.ifmsabrazil@gmail.com Comitê local IFMSA-Brazil da UFSC na Assembléia Geral de Mogi das Cruzes-SP 5