II. A visão de Lyotard: o estatuto do saber e a acção do. conhecimento científico e do conhecimento narrativo

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A visão de Lyotard 28 II. A visão de Lyotard: o estatuto do saber e a acção do conhecimento científico e do conhecimento narrativo 2.1. O estatuto do saber Lyotard é um nome incontornável em qualquer referência à pós-modernidade. Na sua obra, "A condição pósmoderna" (Lyotard, 1989), faz uma análise da condição do saber na actual situação da cultura ocidental, apontando a reformulação da natureza do saber como estando no centro de uma mudança histórica e cultural. "A condição pós-moderna" é um ensaio sobre essa hipótese de estarmos a viver uma era na qual o saber muda de estatuto em toda a sua natureza: nos seus referentes, nos seus destinadores e nos seus destinatários. Lyotard afirma que "pós-moderno é a incredulidade em relação às metanarrativas. Esta é, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso pressupõe-na" (Lyotard, 1989, p.12). Ou seja, dito por outras palavras, a ciência é sempre a narrativa de uma narrativa ou, por outras palavras ainda, faz parte - enquadra-se - numa macronarrativa. Esta macro-narrativa é normalmente uma filosofia de ciência com a qual ela se justifica e se legitima. Como resultado da sua orientação por uma macronarrativa ou

A visão de Lyotard 29 filosofia de ciência, ela produz os seus "progressos" e simultaneamente contribui para a alteração ou reconstrução dessa macro-narrativa e, por isso, ela é sempre, simultaneamente, refém de uma narrativa e produtora revolucionária de narrativas que a deslegitimizam e que a obrigam a novas legitimações. A incredulidade é fonte de pesquisa mas esta, por seu turno, gera igualmente incredulidade. Lyotard contrapõe o saber científico ao saber narrativo ligando este "às ideias de equilíbrio interior e de convivialidade". De acordo com o mesmo autor, o saber científico é "obrigado a sofrer uma exteriorização em relação ao sabedor e uma alienação relativamente aos seus utilizadores" (p.24). Ou seja, o saber científico parece um empreendimento que existe por si próprio, se auto-alimenta, perdendo a finalidade e o uso para que foi criado. E existirá apenas porque tem um valor de produção semelhante a outro qualquer bem de consumo constituindo-se, por isso, com a função de troca social. Esta exteriorização do conhecimento, condição necessária do saber científico, é um fenómeno que desencarna o saber de quem o produz, retirando-lhe atributos fundamentais de autoria. Embora as obras científicas tenham referentes pessoais, inclusivamente só podendo ser citadas quando acompanhadas do nome e ano da abra do autor, a

A visão de Lyotard 30 utilização que é feita desse saber aparece sempre descontextualizada do indivíduo que a produziu. Ele deixa mesmo de ser necessário para que esse conhecimento participe das trocas sociais. Talvez seja por isso que se ouve muitos apelos e elogios à ciência, mas muito raramente aos cientistas. As pessoas são conhecimento (cf. Weimer, 1977); deste modo, quando o conhecimento parece começar a ter existência independente, para servir a função de troca social, as pessoas perdem boa parte do poder pessoal com o qual interagiam, respondiam e desafiavam o mundo. O saber, ao tornar-se visível fora do sujeito, pode ser apropriado como outro qualquer bem de consumo. O saber perde assim pessoalização, humanização e, por seu turno, as pessoas perdem autoria tornando-se funcionalmente mais consumidoras do que produtoras de saber. Vários autores falam muito da relação entre saber e poder. Genericamente afirmam que o saber é fonte de poder. Embora esta asserção, em si mesma, seja um bom exemplo de como o saber pode constituir troca social de uma certa natureza, ela é igualmente reveladora de que o poder que se quer afirmar é mais poder social poder derivado da manutenção de um certo estatuto social - do que poder pessoal. Se tivermos em conta a formulação de Lyotard, a

A visão de Lyotard 31 equação que nos parece mais pertinente, pelo menos ao nível psicológico e ao nível do próprio desenvolvimento humano é entre a desencarnação do saber e a ausência do poder pessoal. Esta ausência de poder pessoal deriva da posição consumista do saber em detrimento de uma posição construtora ou, por outras palavras, do encarceramento dos indivíduos como consumidores e não como produtores de conhecimento. 2.2. O saber como produto autónomo e como representação fiel da realidade: as razões da desencarnação do saber Esta postura de olhar ao saber sem olhar a quem o produz ou às condições humanas da sua produção não ajuda a centrarmos na pessoa humana os nossos esforços para o seu desenvolvimento. É que esta centração exige a consideração dessa unidade entre a pessoa e o seu saber. Há, contudo, razões que nos parecem andar associadas a essa dissociação entre o saber e as pessoas que o podem produzir: a primeira é a crença de que o saber e aquilo que ele representa são realidades objectivas; a segunda tem a ver com a ideia de que

A visão de Lyotard 32 a realidade pode ser fielmente representada e ganhar, dessa forma, existência independente. Como refere Lyotard, este tipo de saber o conhecimento científico - está em oposição ao conhecimento narrativo, precisamente porque este é um conhecimento que traduz a acção discursiva actual do indivíduo, reflectindo, igualmente, a sua experiência (cf. Clandinin, 1993, 1996). O conhecimento narrativo é um conhecimento que surge no contexto da experiência do indivíduo, tornando o indivíduo e o seu saber uma unidade, isto é, um conjunto que não pode ser compreendido observando ou analisando as partes em separado, isoladamente. Esta unidade pode coincidir com outras, ser semelhante de várias formas; contudo, sinultanemanete essa unidade é única. Assim, o conhecimento narrativo, poderá eventualmente ser utilizado por outros indivíduos mas a sua utilização é também a utilização de uma experiência situada, idiossincrática, localizada, que participa activamente da natureza dialógica dos indivíduos (cf. Hermans & Kempen, 1993). Curioso notar que, no contexto do estudo do problema da legitimação do saber, Lyotard socorre-se do estudo dos jogos da linguagem, porque os seus lances, ou enunciados, constituem o que ele chama "Vínculo social observável" (p.31). O estudo dos jogos da linguagem é o seu método de

A visão de Lyotard 33 exploração da legitimação do saber. Aquele vínculo social, difere consoante os jogos da linguagem se situem num contexto moderno ou pós-moderno de legitimação do saber. Lyotard distingue entre destinador, destinatário e referente quando se trata de efectuar jogos de linguagem. O destinador é quem profere o enunciado, o destinatário é aquele que o recebe e o referente é o sujeito do enunciado, aquilo de que trata o enunciado. Ora estes 3 intervenientes da linguagem ficam em posições específicas face a determinados enunciados: consoante eles sejam prescritivos, interrogativos, avaliativos, etc. Por outras palavras, cada enunciado tem os seus efeitos e por isso se pode dizer que Lyotard está sobretudo interessado na pragmática da linguagem. Os jogos da linguagem são diferentes discursos possíveis que colocam os 3 intervenientes em posições específicas e particulares uns em relação aos outros. Na exploração e clarificação que Lyotard (1989) quer fazer do significado do termo jogos da linguagem, socorre-se de Wittgenstein e da metáfora do jogo do xadrez para nos fazer visualizar de que se trata. Vejamos as suas palavras: "Ele (Wittgenstein) quer significar com este termo (jogos de linguagens) que cada uma destas diversas categorias de enunciados deve poder ser determinada por regras que especifiquem as suas propriedades e o uso que delas se pode fazer, exactamente como o jogo de xadrez se define por um grupo de regras

A visão de Lyotard 34 que determinam quer as propriedades das peças, quer a maneira conveniente de as deslocar" (p.29) Esta passagem do seu livro parece ser importante na medida em que nos ajuda a compreender os sentidos profundos que ele dá à linguagem na sua relação com o saber. Parece-nos que essa relação poderá ser caracterizada por uma natureza com dois atributos: o primeiro é o de que o saber está dependente do tipo de jogos de linguagem utilizados e das suas regras; o segundo tem a ver com a natureza de combate do saber, pois "falar é combater, no sentido de jogar e os actos de linguagem relevam de uma agonística geral"(p.30). Um pouco à margem destes atributos, mas não menos importante, ficamos a compreender melhor porque é que ele conceptualiza o vínculo social observável como os lances da linguagem. As relações sociais e o tipo de vínculos que unem durante mais ou menos tempo os indivíduos, dependem largamente desses lances da linguagem. Assim, a linguagem é o participante mais importante e o mais comum no estabelecimento de vínculos sociais. Estes lances de linguagem e, portanto, o tipo de saber que eles encarnam, diferem de acordo com a tomada de uma perspectiva moderna ou pós-moderna.

A visão de Lyotard 35 Numa perspectiva ou contexto moderno é necessário encarar o conhecimento ou o saber no quadro do seu lugar ou da sua função na sociedade, na qual os diferentes jogos servem sobretudo a função de perpetuação do sistema. Além disso para sabermos se o saber se apresenta como elemento funcional ou como elemento crítico da sociedade é necessário conhecer a sociedade. E, para a conhecer, Lyotard afirma que é necessário escolher a maneira de a interrogar (p.37). Há, ainda, segundo o autor, tradicionalmente, duas formas de a encarar: como um todo funcional, um sistema homogéneo ou, então, com uma dualidade intrínseca dividida, algo que contém, em si própria, elementos de contestação. No primeiro caso, o saber existe como elemento fundamental para o funcionamento da sociedade, tendo então um papel funcional na sua manutenção. No segundo caso, o saber apresenta uma natureza crítica que funciona como forma de orientar o desenvolvimento ou transformação da sociedade. Como afirma Lyotard, a alternativa parece clara... mas a decisão parece difícil de tomar ou arbitrária (pp.37-38). É a partir desta análise que Lyotard compreende a distinção que é feita actualmente entre o saber positivista e o saber crítico, hermenêutico ou reflexivo: são tentativas de escapar ao dilema de ter de escolher entre aquelas duas visões de sociedade, para fundamentar a natureza do saber.

A visão de Lyotard 36 De qualquer modo esses dois tipos de saber, o positivista e o reflexivo acabam por tornar-se elementos fundamentais à sociedade: o primeiro porque encontra fácil aplicação, o segundo porque evita a entropia dos sistema social. Esta é, em suma, a natureza do saber na perspectiva moderna de sociedade Ao contrário, numa perspectiva pós-moderna, o saber, os jogos de linguagem e, portanto, o vínculo social são, por um lado, mais localizados - não se referenciando a um sistema orgânico total - e não se baseiam numa simples teoria clássica da comunicação mas, antes, supõem uma teoria de jogos que inclui a agonística nos seus pressupostos (p.43-44). Isto significa que perceber as relações sociais é perceber os efeitos dos jogos de linguagem ( e não só a mecânica da comunicação - dada pela teoria da comunicação) que se dão com uma natureza de combate - e daí a agonística da linguagem. Assim, o indivíduo de vínculos pós-modernos ou o seu saber não é um mero átomo sem poder que serve sobretudo a função da manutenção do sistema mas, antes, é um indivíduo que, estando situado em nós de circuitos de comunicação (p.41), tem sempre o poder de os afectar dentro de certos limites. Neste sentido - em que os indivíduos nesses nós podem ser destinatários, referentes ou destinadores - o ser humano passa a dispôr de maior

A visão de Lyotard 37 mobilidade e da possibilidade de flexibilidade nos seus enunciados e também obviamente nas suas visões do mundo e de si próprios. Essa maior mobilidade e flexibilidade pode mesmo ser uma necessidade de sobrevivência onde as condições variam de lugar para lugar, de tempo para tempo, de grupo para grupo. Em suma, na pós-modernidade o saber enquanto instituição alarga os limites dentro dos quais os jogos de linguagem dos indivíduos têm lugar. A burocracia enquanto extremo da instituição é contrariada pela discussão, alargando assimos limites dentro dos quais os jogos da linguagem podem ter lugar. 2.3. Pragmática do saber narrativo Como já dissemos, Lyotard discute a questão do saber narrativo opondo-o ao conhecimento científico. No seu entender o conhecimento narrativo está ligado á convivialidade. O conhecimento científico é algo que pode ser usado como troca social impessoal, não podendo, por isso, ser compreendido por regras de convivialidade. Contudo, para além dessa distinção parece-nos importante realçar a sua não redução do saber ao conhecimento muito menos ao conhecimento científico, pois o saber vai para além de

A visão de Lyotard 38 enunciados denotativos contendo em si próprio as ideias de saber fazer, de saber viver, de saber escutar, etc (p.47) e, portanto, o saber além de se referir a enunciados denotativos, que são típicos da ciência, refere-se também a enunciados avaliativos, prescritivos, etc. Assim, a performatividade do sistema que o conhecimento científico serve, é substituída no saber narrativo pela performatividade de vários objectos de discurso: para conhecer, para decidir, para avaliar, para transformar... (p.47). Daí Lyotard apontar aquilo que para nós nos parece verdadeiramente central ao saber pósmoderno e à sua relação com a subjectividade e individualidade, que é o facto de o saber poder adquirir várias formas encarnadas em sujeitos compostos pelos diversos géneros de competência que o constituem (p.47). Portanto, o saber é o que os indivíduos possuem e adquire assim várias formas. O conhecimento é algo que reside fora do sujeito mas que o indivíduo pode ajuizar segundo a sua veracidade na descrição de objectos. Uma outra característica do saber que deriva da antecedente é a sua relação com a cultura. A cultura fornece as balizas do consenso para se julgar que um dado saber é legítimo. Por seu lado, os consensos estabelecidos são indicadores da cultura de cada povo. Desta forma, o saber pode ser visto como a própria cultura.

A visão de Lyotard 39 Lyotard defende também que o saber tradicional assenta sobretudo em formas narrativas que podem tomar a forma de lendas e mitos, representando heróis felizes ou infelizes (condicionando assim aquilo que pode ser considerado aceitável ou inaceitável), admitindo no seu seio uma pluralidade de jogos da linguagem (p.50) e finalmente esse saber encarnado na forma narrativa é transmitido por regras da pragmática da linguagem que definem o que é preciso dizer para ser ouvido, o que é preciso escutar para poder falar e o que é preciso desempenhar para poder ser objecto de uma narrativa (p.51). E nisto reside a relação da linguagem e da sua pragmática com o vínculo social. Além disto, há um outro aspecto que para nós se reveste de uma enorme importância. Há narrativas que pelo seu ritmo repetitivo parecem ser mais importantes enquanto acto do que enquanto história. A história é o próprio acto de a contar que não precisa de memória para se recordar. (Ora isto seria impossível de se pensar com o conhecimento científico); ou melhor, não é a perfeição da recordação que está em causa mas apenas a reprodução ou recordação. E se é isto que conta, o saber narrativo apresenta, como Lyotard o afirma, uma função letal (p.53). É como se a narrativa precisasse de morrer para poder voltar a pronunciar-se. Por outras palavras, o que importa, numa forma narrativa de saber, é o próprio acto de

A visão de Lyotard 40 narrar muito mais do que a narrativa. E obviamente que isto será assim devido às profundas ligações da narrativa com a própria existência, na qual falar é também combater e onde este último é a matéria principal do vínculo social. 2.4. Pragmática do saber científico A investigação científica no seu sentido tradicional, não pode estar separada do ensino. E isto assim é devido ao jogo de prova que se tem de estabelecer no qual o destinatário é necessariamente um parceiro do destinador: a partir do momento em que fala, aceita ou não o enunciado e as provas que lhe são apresentadas. E ao fazer isso torna-se ele próprio um potencial destinador. Como destinador pode reforçar e legitimar a autoridade do primeiro, pois o consenso entre pares é a prova de eleição na investigação científica mais tradicional. Sendo assim, o ensino existe a par da investigação porque são necessários destinatários que possam ser mais tarde destinadores. Lentamente, os destinadores após dizerem o que já sabem, os destinatários ganham alguma competência, os primeiros começam a partilhar o que ainda não sabem. E isto introduz os estudantes no jogo da formação

A visão de Lyotard 41 do saber científico. Para Lyotard o saber científico apresenta as seguintes propriedades ou a seguinte pragmática (cf. pp.58-60): a) O saber científico utiliza apenas enunciados denotativos. Mesmo que possam existir outros, eles servem o propósito de conduzir o investigador ao estabelecimento de enunciados denotativos - os únicos a partir dos quais se pode afirmar ou a infirmar a sua verdade. b) A combinação dos vários jogos de linguagem que se constitui como vínculo social, exclui o saber científico. Contudo, como cada jogo de linguagem, nas sociedades modernas, tende a ser representado por uma instituição, que terá os seus profissionais específicos, o saber científico participa dos diálogos sociais através das suas instituições. c) Dos vários protagonistas da comunicação, quando se trata de investigação científica, só se aceita a competência do destinador ou enunciador. Tanto o destinatário como o referente, mesmo que este seja um indivíduo aparecem como exteriores aos interlocutores da ciência. d) Um enunciado de ciência pode contrariar enunciados anteriores mas, nesse caso, para ser aceite, tem de provar previamente de que forma os enunciados anteriores estão errados.

A visão de Lyotard 42 e) Aquilo a que Lyotard chama o jogo da ciência, implica olhar de forma diacrónica para um certo objecto ou referente. Esse olhar diacrónico não dispensa o conhecimento do passado (a bibliografia já produzida) e um projecto de descoberta de conhecimento para o futuro (uma hipótese de desenvolvimento do conhecimento). 2.5. A validade do jogo da ciência e do jogo narrativo Contudo, o confronto que acabamos de fazer entre uma pragmática do saber científico e uma pragmática do saber narrativo, leva-nos a olhar para esses dois saberes como dois jogos diferentes, submetidos a regras diferentes de expressão da linguagem. Por outras palavras leva-nos, ou pode levarnos, a celebrar a diversidade de jogos possíveis da linguagem. Como Lyotard, acreditamos que o conhecimento científico não é mais necessário, nem menos, do que o conhecimento narrativo(cf. Lyotard, 1989, p.12). Além disso, encarar estes dois jogos de linguagem como determinados por processos e regras diferentes, leva-nos igualmente a afirmar que a validade de um deles não pode ser julgada a partir do outro nem se poderá derivar conhecimento científico a partir do saber narrativo (cf. Lyotard, 1989, p.12). De qualquer modo, a visão que a pós-modernidade nos traz, de acordo com

A visão de Lyotard 43 Lyotard, não é apenas a da celebração de diferentes jogos de linguagem. Assim, Lyotard entende que o saber científico traz novos jogos de linguagem e mesmo novas regras para esses jogos, como resultado da nova natureza do saber nas sociedades pós-modernas. A pragmática do saber científico pós-moderno tem pouco a ver com a performatividade ou eficiência, porque esta é baseada na hipótese determinista dos fenómenos. Ora uma hipótese determinista implica saber e prever de forma linear que um certo input acarreta um certo output para o sistema. Contudo, isso supõe sempre um sistema estável. E o controlo de um sistema tem sido uma tarefa impossível, porque ele não se consegue definir através de todas as variáveis independentes. Daqui resulta que não há um saber preciso, embora isso possa continuar a constituir um objectivo da ciência no conhecimento dos sistemas. A forma como na pós-modernidade o saber é legitimado, não pode passar então pela sua performatividade. Ao contrário, tendo de ser baseado na pesquisa das instabilidades, a sua legitimação passa por aquilo a que Lyotard chama de paralogia ou dissentimento. Com esta, as regras de jogo da linguagem científica mantêm-se mas a sua determinação passa a ser local. Como afirma a certa altura, "há apenas ilhas de determinismo" (p.118).

A visão de Lyotard 44 De acordo com Lyotard, alguns dados da teoria quântica e da microfísica obrigam igualmente a rever a noção de previsibilidade. Parece ser uma verdade desses domínios que quanto maior é a precisão maior fica a incerteza. Deste modo, a ciência traça o seu percurso como descontínuo e aponta o desconhecido e não o saber como o seu produto. Em suma, Lyotard embora não aponte o conhecimento narrativo como uma ocorrência pós-moderna, olha-o como estando em oposição ao conhecimento científico. Aponta que acabaram as grandes narrativas mas que, por outro lado, permanecem as pequenas narrativas por serem estas a "forma por excelência assumida pela invenção imaginativas e, antes de mais, na ciência"(p. 121).