825 CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO, LETRAMENTO E ARGUMENTAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA MATERNA Clécida Maria Bezerra Bessa PROLING /UFPB 0 Introdução Vivemos em uma sociedade proeminentemente argumentativa. Os atos de emitir opiniões, aprová-las, reprová-las ou refutá-las fazem parte das nossas vidas, de maneira que diariamente somos envolvidos com o uso da argumentação, independentemente do domínio do conhecimento dos recursos lingüísticos, culturais e ideológicos que sustentam o processo argumentativo. A escola, enquanto instituição que deve orientar a construção do conhecimento de forma sistematizada, precisa primar por um processo de ensino e aprendizagem que leve o aluno a refletir sobre o funcionamento da língua, sendo capaz de utilizá-la, como uma configuração funcional, nas mais variadas situações sociais. Assim, o domínio do sistema de escrita alfabética se oferece como chance de edificação social, considerando que, esse domínio não se restringe apenas às habilidades relacionadas à aquisição da leitura e da escrita, mas também, em perspectivas de se relacionar com outros conhecimentos, como é o caso de saber empregar os recursos argumentativos nos mais variados discursos para garantir a adesão do interlocutor, no processo de interação. É com base na importância da existência dos estudos argumentativos e de concepções de ensino-aprendizagem que considere as especificidades da alfabetização e do letramento nos palcos escolares, que organizamos este trabalho, no qual objetivamos refletir sobre os conceitos de alfabetização, letramento e de linguagem, em uma perspectiva interacionista, bem como discutir a importância de saber empregar os recursos lingüístico-argumentativos, nas mais distintas situações sociais. Para tanto, realizamos uma pesquisa de caráter bibliográfico acerca do tema em questão, alicerçando-nos em: Nascimento (2006), Perelman e Tyteca (2002), Pereira (2005), Soares (2003), Souza (2003), dentre outros. 1. Alfabetizar, letrar e argumentar: uma união benéfica para o ensino de linguagem As reivindicações educativas da sociedade moderna são crescentes e estão interligadas a diferentes dimensões da vida das pessoas: ao trabalho, à participação social e política, à vida familiar e comunitária, às oportunidades de lazer e de desenvolvimento cultural. Promover uma educação fundamental de crianças é importante para responder aos imperativos do presente e também para afiançar melhores condições educativas para as gerações posteriores. Em consonância com essa explanação é interessante destacarmos que a vida na sociedade atual oferta uma cadeia de oportunidades para desenvolvermos formas de pensamento variadas. Nesse contexto, a escola é, sem dúvida, um local distinto para se desenvolvê-las e, com certeza, é por isso que os indivíduos que a freqüentam por muito tempo podem obter benefícios nesse aspecto. A metacognição, capacidade de tomar consciência das operações mentais, de refletir sobre o pensamento e, assim, poder controlá-lo melhor é uma das características de elevada importância das formas de pensamento letrado. Esta capacidade está intimamente associada ao domínio da escrita de forma geral, pois através dela as pessoas podem organizar melhor seu pensamento e viabilizar meios para se comunicar com mais sucesso. É propondo momentos de reflexão sobre o mundo, que a escola pode ofertar aos seus componentes meios para que eles se envolvam na transformação social. O fato de convivermos em uma sociedade que tem uma elevada estima sobre a escrita com implicações sócio-culturais sucedidas dela nos direciona para uma postura de construção do conhecimento provoca uma proposta produtiva para o ensino da língua, de forma que conjeture um
826 caráter de constituição de capacidades imprescindíveis às práticas de leitura, escrita, fala e escuta em reais circunstâncias sociais. Muitas são as investigações em torno das influências da escrita para o mundo social e para a formação individual do sujeito. Dessa forma, se faz importante destacar que lançar reflexões acerca da aquisição do sistema de escrita alfabética implica em refletir também sobre os processos de alfabetização e letramento. Para tanto, é conveniente reconhecer as possibilidades de situar as diferenças entre o que praticar em termos de alfabetização e letramento. Consoante com Pereira, partilhamos da idéia de que, [...] a distinção entre letramento e alfabetização ainda não é tão bem compreendida por todos, levando algumas pessoas a usarem um termo por outro como se fossem sinônimos (2005, p. 31). É nessa questão que se encontra uma grande imprecisão e que precisa ser refletida nos palcos escolares: as ações de alfabetização e letramento apresentam especificidades e complexidades que devem ser consideradas no processo de aquisição do sistema de escrita alfabética. Soares distingue muito bem essas ações mostrando-nos que, [...] um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita (SOARES, 2003, p. 39). Assim, os dois processos, a alfabetização, entendida como aquisição do sistema convencional de escrita e o letramento, compreendido como o desenvolvimento das habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita, devem estar contemplados nas ações e reflexões pedagógicas. Soares ainda nos mostra que é preciso reconhecer a possibilidade e necessidade de promover a conciliação entre essas duas dimensões da aprendizagem da língua escrita, integrando alfabetização e letramento, sem perder a especificidade de cada um desses processos, o que sugere reconhecer as muitas facetas de um e outro e, por conseguinte, a variedade de métodos e procedimentos para ensino de um e de outro. [...] a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio e práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização (2003, p. 8). Em consonância como exposto evidenciamos que o desafio que está colocado para as séries iniciais do ensino fundamental é o de harmonizar os dois processos, alfabetização e letramento, de forma que sejam garantidos aos alunos os mecanismos necessários a apropriação do sistema alfabético e ortográfico e as condições que possibilitem o uso da língua nas práticas sociais de leitura e escrita, por intermédio de diferentes textos que circundam o nosso dia a dia. É interessante buscar um novo processo de ensino de linguagem pautado numa perspectiva em que se considere os procedimentos interdependentes e indissociáveis da alfabetização e do letramento, garantindo assim, um alfabetizar letrando. De acordo com Morais e Albuquerque (2004) para alfabetizar letrando é necessário democratizar as vivências de práticas de leitura e escrita e ajudar o estudante a ativamente, reconstruir essa invenção social que é a escrita a alfabética. Uma ação pedagógica produtiva deve estabelecer a caracterização social da língua, pois ao fazermos uso do discurso oral ou escrito, agimos verbalmente, isto é, nosso discurso é dotado de intencionalidades. Assim, a argumentação aparece como um meio de desenvolver e ampliar o letramento. Ao longo do tempo, tem sido constante o interesse pelos estudos da argumentação; afinal, a argumentação está presente nas mais diversas atividades de comunicação: [...] são os discursos da publicidade, do jornalismo, da política, das aulas, dos conselhos dos amigos, das polêmicas para saber qual o melhor time de futebol. [...]; convencer ou persuadir através do arranjo dos diversos recursos oferecidos pela
827 língua é, numa formulação muito simples, a marca fundamental do texto dissertativo argumentativo. (CITELLI, 1994, p. 07). A linguagem, do ponto de vista de uma análise argumentativa do discurso, deve ser encarada como uma relação interativa entre emissor e receptor, cujas intenções vão além da mera troca de informações. Assim, a linguagem passa a ser tratada como um mecanismo de poder, de pressão, de persuasão. Nesse sentido, o orador sempre faz uso do discurso para convencer e persuadir o auditório ao qual se destina, já que essas estratégias apresentam-se como essenciais e imprescindíveis para a argumentação. A distinção entre o convencimento e a persuasão, teoricamente considerada imprecisa, deve, na prática, conservar-se assim: Para quem se preocupa com o resultado, persuadir é mais do que convencer, pois a convicção não passa da primeira fase que leva à ação [...] Em contrapartida, para quem está preocupado com o caráter racional da adesão, convencer é mais do que persuadir. (PERELMAN e OLBRECHTS TYTECA, 2002, p.30). Por argumentação compreende-se a tentativa do produtor do texto para conduzir o raciocínio do ouvinte a uma determinada conclusão, a um dado ponto de vista, à aceitação de uma determinada idéia. É possível afirmar que o elemento persuasivo está colocado ao discurso como a pele ao corpo. É muito difícil rastrearmos organizações discursivas que escapem à persuasão. (CITELLI, 2000, p. 06). Nessa medida, fica evidente que a persuasão está atrelada à argumentação. De acordo com Perelman e Tyteca (2002, p.16) argumentar é influenciar, por meio do discurso, a intensidade de adesão de um auditório a certas teses. Uma argumentação eficiente que garanta a persuasão do ouvinte, deve garantir especial atenção aos elementos do processo argumentativo e dispensar uma atenção às condições previas para argumentação, de maneira que, compreender que o conhecimento do público a que se pretende conquistar é uma condição prévia para que qualquer argumentação seja eficaz. O orador deve adaptar-se ao auditório, escolhendo como premissas de sua argumentação teses admitidas pelo auditório. (NASCIMENTO, 2006, p.10). Para que uma argumentação se desenvolva, é imprescindível obter alguma atenção do interlocutor. O orador deve valorizar, demonstrar apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento, e isso requer ter de admitir que se deve pensar nos argumentos que podem influenciar o outro, preocupar-se com ele, interessar-se pelo seu estado de espírito. É de fundamental importância no ato de argumentar o respeito pelo desejo do interlocutor, saber o que ele considera importante e verdadeiro, pois é essa atenção às intenções do auditório, que determina a escolha detalhada dos argumentos, e consequentemente determina o comportamento dos oradores. Assim, na relação entre orador e auditório a atenção deste é de fundamental importância para todo o processo argumentativo que possui. Para Reboul (1998, p.142) [...] a regra de ouro da retórica é levar em conta o auditório. Souza comenta que: Considerando que toda pessoa ao argumentar, ao escrever ou ao falar o seu texto e ao defender uma tese, já tem em mente o auditório ao qual está direcionado o seu discurso, supomos, então, que qualquer discurso ao ser falado/escrito, já traz em si influências recebidas de seus possíveis leitores/interlocutores. (2003, p. 61) O auditório pode ser assinalado sob duas disposições: o universal e o particular. O primeiro é composto por toda a humanidade; o segundo por uma equipe de ouvintes com desejos conjugados. Há ainda o auditório constituído por um exclusivo interlocutor: aquele com quem se fala ou o próprio locutor. É imprescindível que o orador conheça o seu auditório para que possa estruturar o seu discurso direcionado a ele. Frente a qualquer situação comunicativa polêmica, ou a um discurso argumentativo, é essencial que o emissor opte pelas estratégias discursivas mais condizentes com seus objetivos para conseguir que o interlocutor compartilhe de suas teses. No que se refere às técnicas argumentativas é de fundamental importância conhecê-las para que ao usarmos o discurso, possamos nos apropriar das mais adequadas para as exigências de cada situação.
828 Os autores do Tratado da Argumentação (2002) apresentam várias técnicas argumentativos, divididas em quatro grupos: os argumentos quase-lógicos, os argumentos baseados na estrutura do real, os argumentos que fundam a estrutura do real e os argumentos por dissociação das noções. Os argumentos quase-lógicos apoiam-se em normas quase-lógicas que se baseiam nos raciocínios formais, possuindo uma organização semelhante às demonstrações cientificas. Ao corresponder as leis da lógica, esses argumentos evidenciam-se nas discussões, definições, contradições, incompatibilidade e regras de justiça, dentre outros. Os argumentos baseados na estrutura do real são aqueles que se baseiam apenas em situações reais vividas dentro da sociedade. Esses argumentos, ao contrário dos primeiros, não se baseiam na lógica, mas na experiência, nas ligações existentes entre as coisas do mundo real. Tais ligações podem ser por sucessão, por coexistência e por relações simbólicas. Na terceira técnica, Perelman e Tyteca apresentam argumentos que também são empíricos, mas não se apoiam na estrutura do real porque criam-na ou porque pelo menos a completam, de maneira que entre as coisas apareçam ligações não vistas. São eles: argumentos pelo exemplo, por ilustração, por modelo e por antimodelo; argumentos por analogia e metáfora. Já os argumentos por dissociação das noções, segundo Reboul (1998) abordam a dissociação das noções em partes hierarquizadas como aparência/realidade, meio/fim, etc. A função desta técnica é dissuadir, ou seja, fazer com que os fatos possam mudar de parecer ou finalidade. Além dessas considerações não se pode deixar de ressaltar que o ato lingüístico, por meio do qual a argumentação se proclama, está fixado num contexto social e histórico, constitui um ato ideológico e, como tal, determinado pelas condições ideológicas. De acordo com Koch (1984, p.19) o ato de argumentar constitui o ato lingüístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, no sentido mais amplo do termo. Por essa razão, os alunos precisam saber lançar mão de discursos argumentativos e desenvolver um pensar crítico. Para Freire (1987, p. 82), [...] não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável solidariedade. Considerações O desafio que está colocado para os educadores das séries iniciais do ensino fundamental é o de harmonizar os dois processos, alfabetização e letramento, garantindo aos alunos a apropriação do sistema alfabético e ortográfico e as condições que permitam o uso da língua nas práticas sociais de leitura e escrita. Para tanto, a argumentação nos discursos passa a ser um grande aliado para a construção do letramento. Neste contexto, a função da escola é proporcionar um ensino significativo aos educandos introduzindo, no ambiente escolar, a maior pluralidade plausível de práticas sociais de leitura e escrita, considerando o ensino sistemático da linguagem escrita. Desta forma, o ensino de língua materna pode beneficiar o aluno, proporcionando meios para conviver com diversas ocorrências comunicativas reais, intervindo em favor de benfeitorias particulares e do grupo de convivência. Assim, o ensino de Argumentação nas aulas de Língua Portuguesa é uma ferramenta essencial para a constituição de um perfil de discente que possa, através do discurso argumentativo, ampliar sua participação nas variadas esferas da sociedade, posicionando-se contra ou a favor das diferentes idéias impostas sem submeter-se a elas, pois é adquirindo competências lingüísticas que o educando pode organizar informações para se comunicar com mais eficácia, sabendo usar a língua materna como guia de ação rumo a variadas situações de inclusão social. Referências BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Língua Portuguesa. Brasília: MEC / SEF, 1997, v. 2.
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