RESUMO. Palavras-chave: Cavalo marinho, corpo, técnica, corporeidade.



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Transcrição:

BARRETO, Tainá Dias de Moraes. Corpos femininos e masculinos em torno do cavalo marinho reflexão sobre uma possível técnica que se constrói no cotidiano. Brasília: Universidade de Brasília UNB. Universidade de Brasília; Mestrado em Artes; Jorge Graça Veloso. Dançarina. RESUMO Este trabalho pretende trazer uma descrição dos corpos dos cortadores de cana-deaçúcar brincadores de cavalo marinho e das mulheres em torno desta manifestação tradicional da Zona da Mata Norte de Pernambuco, que reúne música, dança e teatro. A descrição dos corpos de seus sujeitos pretende ater-se aos momentos de brincadeira e à realização de suas tarefas cotidianas. Através desta descrição, pretende-se refletir sobre uma possível técnica corporal que se constrói no cotidiano dos sujeitos do cavalo marinho e sobre como a relação entre cotidiano e brincadeira se traduz esteticamente no momento do samba, influenciando e definindo corporeidades, maneiras de dançar e se apresenta no mundo - diferentes para homens e mulheres. Pretende-se também refletir sobre algumas questões de gênero que se apresentam na dinâmica das comunidades em torno do cavalo marinho. Palavras-chave: Cavalo marinho, corpo, técnica, corporeidade. This work intends to provide a description of the bodies of the sugar cane workers which play Cavalo Marinho and women around this traditional manifestation of the Mata North Zone of the state of Pernambuco in Brazil, which combines music, dance and theater. This description will show the bodies during the play and in their everyday tasks. Through this description it is intended to reflect on a possible body technic that is constructed in everyday life of the players and how the relationship between everyday life and play is translated aesthetically at the time of samba, influencing and defining corporeality and ways to dance - different from men to women. It's also intended to reflect on some gender issues observed in the comunities around Cavalo Marinho. Key-words: Cavalo marinho, body, thecnic, corporeality. Este artigo é parte de uma pesquisa artística teórico e prática sobre a participação feminina e as relações de gênero observadas no Cavalo Marinho, tradição expressiva original da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Neste texto, pretendo focar-me na descrição dos corpos dos brincadores de Cavalo Marinho, homens e mulheres, tanto nos momentos de brincadeira quanto em suas tarefas cotidianas. Através desta descrição, desejo refletir sobre as atitudes corporais, sobre uma possível técnica que se constrói no cotidiano e que se faz presente na dinâmica do Cavalo Marinho, traduzindo esteticamente o imaginário dos sujeitos desta manifestação, sejam eles homens ou mulheres, ativos/protagonistas no brinquedo ou não. O Cavalo Marinho é um folguedo realizado por trabalhadores rurais da mata norte do estado de Pernambuco, região explorada pela monocultura da cana-de-açúcar desde a colonização. A brincadeira acontece principalmente no período de festas natalinas e reúne elementos de dança, música, teatro, poesia, máscaras e bonecos. Apresenta uma estrutura complexa com enredo fixo e diversos acontecimentos que se sucedem ao longo da noite. Os sujeitos da brincadeira, essencialmente masculinos, têm incrível agilidade física e mental, têm gosto por música, piada, festa e cachaça. São trabalhadores rurais que vivem da lida com a cana, numa jornada de trabalho pesada e mal remunerada. O

cavalo marinho é o seu lazer, sua vadiagem, seu momento de quebra das tensões dentro um cotidiano altamente pressionado pela desigualdade social. O foco desta pesquisa são as danças e os corpos em ação. A dança é minha via de acesso à brincadeira. Foi aprendendo as dinâmicas corporais do Cavalo Marinho que consegui estabelecer relações pessoais que me possibilitaram uma troca de afetos essencial para esta pesquisa. Foi também vivenciando parte do cotidiano dos seus sujeitos que pude compreender muito do que acontece na brincadeira. Assim, considero que mesmo numa pesquisa focada nas formas dançadas, o todo do brinquedo é composto por diversas instâncias que não podem ser desagregadas e precisam ser analisadas em conjunto. Segundo Eloísa Domenici (2009), é preciso criar novas epistemologias para a pesquisa sobre as danças populares e não se fixar somente em suas formas e desenhos coreográficos. Deslocando o eixo de análise das danças populares para o corpo, ela propõe que ao invés de 'passos' ou 'coreografias', existem parâmetros mais produtivos de análise, tais como o papel do jogo, os estados tônicos do corpo, as dinâmicas corporais específicas, as relações entre dança e cotidiano, e as dramaturgias que emergem do corpo. A autora chama a atenção ainda para a importância de se voltar o olhar para as metáforas que movem o corpo brincador, pois estas são chaves para a compreensão do imaginário de sua brincadeira. Além de se encontrarem na dança, elas estão nas músicas, nos diálogos, na iconografia e, no caso do cavalo marinho, nas piadas, as chamadas puias. Quando volto minha atenção para a descrição dos corpos no Cavalo Marinho e das atividades cotidianas das pessoas que o fazem, termino por tomar emprestados alguns procedimentos advindos da Antropologia. Dialogo principalmente com uma ramificação desta disciplina, a Antropologia do Corpo, ramificação esta que se coloca diante de um enorme campo de estudos que vêm dizer, em última instância, que a condição humana é, sobretudo, a condição da corporeidade humana. Também segundo a qual, o corpo é o eixo de relação com o mundo, lugar onde se constituem e propagam as significações que fundam a experiência individual e coletiva (Le Breton, 2011). Nas comunidades entorno do Cavalo Marinho, a divisão do trabalho por gênero em cada núcleo familiar é muito bem definida, sendo que, em geral, os homens trabalham fora na lida com a cana e as mulheres são responsáveis pelas tarefas domésticas. Os trabalhadores da cana-de-açúcar atualmente são fichados nas Usinas e recebem um salário mínimo. A lida com a cana envolve diversos tipos de serviço, todos eles bastante exigentes de força, resistência física, agilidade e destreza com as ferramentas. Os brincadores de Cavalo Marinho que atualmente não trabalham na lida com a cana, geralmente exercem as funções de pedreiro, gari, possuem um roçado onde plantam macaxeira ou milho, e/ou são funcionários de matadouros ou casas de farinha. Acredito que o tipo de trabalho exercido por esses homens desde cedo está diretamente relacionado à construção de uma determinada configuração de corpo que traz padrões e características comuns. Eles têm estatura baixa, a musculatura rígida, a pele queimada de sol, as mãos ásperas. São magros, fortes, ágeis e leves. Movimentam-se com precisão. O Cavalo Marinho, surgido como momento de lazer e abstração dessas pessoas, conserva características semelhantes ao seu cotidiano de trabalho físico pesado. Poderíamos dizer que o Cavalo Marinho é uma brincadeira pesada. A música, alta e vigorosa, é ligeira e nos remete a galopes de cavalo. A parte dançada na brincadeira é também bastante exigente. Nas rápidas dinâmicas corporais do Cavalo

Marinho, os pés batem secos no chão seguindo uma acentuação rítmica não usual que confere à dança uma certa dificuldade na execução. Há que se ter uma lubrificação nos joelhos, um molejo nas pernas e uma habilidade para subir e descer rapidamente, que nos faz afirmar que quem brinca Cavalo Marinho tem que ter a perna de mola. Os corpos e as histórias de vida dos brincadores estão marcados pelo trabalho no corte da cana e isso se encontra bastante presente não somente no gestual e no emprego do corpo ao realizar a dança, mas também nas músicas (toadas) de Cavalo Marinho, que geralmente fazem referência a este cotidiano, mas também falam de amor e das relações pessoais. A vida das mulheres nas comunidades no entorno do Cavalo Marinho é também pautada pelo trabalho doméstico desde cedo. As meninas costumam ter o auge de sua beleza na adolescência, enfeitando-se e sendo muito vaidosas até 15 ou 16 anos. Costumam usar roupas decotadas, justas ou curtas. Alisam os cabelos crespos, gostam de maquiagem e seguem a tentativa de um padrão de beleza sugerido pelos programas de televisão e pelas bandas de música geralmente chamadas de brega. Porém, assim que iniciam uma vida sexual, logo se casam e têm filhos. Elas saem da casa dos pais diretamente para a casa de um companheiro, onde então assumem a responsabilidade sobre um novo núcleo familiar. São raras as exceções em que uma moça entre 18 e 25 anos pode experimentar uma vida adulta sexualmente ativa sem o compromisso do matrimônio e da maternidade. O trabalho da antropóloga e dançarina Maria Acselrad (2008) chama a atenção também para a presença do alcoolismo, de caráter endêmico nesta região. O que ela pontua vem confirmar as considerações que faço sobre a fugacidade da beleza e do sentimento de juventude entre as mulheres, também sobre o desgaste físico observado nas pessoas: O corpo nesta região costuma passar por um processo de crescimento bastante violento. Se é difícil identificar a idade das crianças por guardarem um aspecto infantil até a adolescência, a mesma dificuldade é experimentada na maturidade, quando rapidamente podem ser percebidos sinais de envelhecimento precoce em mulheres e homens. A cachaça e o cigarro são os grandes responsáveis por isso. Somados, evidentemente, à qualidade de vida que o trabalho no corte-de-cana impõe, principalmente aos homens, mas também às mulheres desta região mãos e pés da economia canavieira (Acselrad, 2008, p. 139) Embora alguns grupos já permitissem a participação de meninas, nos últimos quinze anos houve um significativo crescimento no número de mulheres a participar das brincadeiras de Cavalo Marinho. São jovens e adolescentes, geralmente integrantes da família do Mestre, parentes ou amigas próximas daquele grupo familiar. As meninas participam ativamente das partes dançadas da brincadeira. As figuras, equivalentes aos personagens da história, entram e saem da roda do samba uma após a outra dançando ao som de uma toada específica. Cada figura tem sua toada e sua história para contar, seja em verso, seja apenas dançando. Na maioria mascaradas, elas têm texto fixo, uma certa corporeidade e gestualidade típicas. De figura deriva a função figureiro, que é como se chama o brincador que põe figuras. A performance de cada figureiro pode ser bastante pessoal, desde que obedeça a determinadas regras da figura. O sucesso ou fracasso da figura dependem da destreza do figureiro, de sua agilidade física e mental, de sua capacidade de fazer rir. As figuras são tipos que falam do amor, do trabalho, do cotidiano, das relações patrãoempregado, homem-mulher etc. Pequenas nuances do cotidiano são reveladas através

das figuras. São as figuras que de fato parafraseiam a realidade e fazem da sexualidade motivo de piada. São elas que hiperbolizam as relações interpessoais e a vida cotidiana das pessoas. É no momento em que são figuras que os brincadores dão-se o direito de não compreender, de arremedar, de falar parodiando, de não ser o próprio indivíduo. A vadiação e a provocação são elementos que caracterizam essa safadeza nos brincadores de Cavalo Marinho. O gosto pelo jogo, pelo trocadilho, pela inversão, pela frase de duplo sentido e de conteúdo sexual, caracterizam a natureza do humor que permeia a brincadeira e, principalmente, as figuras. O motivo da graça não está apenas no inesperado, e sim naquilo que a forma e o conteúdo da piada vêm trazer à tona. No gesto obsceno, no dizer as coisas pela metade, o que, no caso, dizem respeito à sexualidade a à violência que pode existir na sexualidade. Talvez pela responsabilidade sobre a aprovação das pessoas e por serem as reais protagonistas da brincadeira é que as figuras sejam um tabu para a participação da mulher. É raro que uma mulher coloque figuras e, quando coloca, geralmente é uma figura secundária que não chama muita atenção para si. Este lugar da figura de vadiagem e tiração de sarro, às mulheres não é permitido ocupar. Penso que delas é distante a possibilidade de fazer uso do próprio corpo como elemento cômico, inexiste a possibilidade de rir de si mesmas ou de sua própria representação. Quando uma mulher coloca figura, ela é imediatamente identificada e impõe-se na roda do samba uma atitude de respeito que não é comum na brincadeira. Inverte-se a lógica da safadeza e as piadas não acontecem. Não há roçar dos corpos, não há o gesto obsceno, não há graça. O riso, além de sinal de aprovação na brincadeira, está associado a uma certa noção de beleza. Mais ainda, a graça e o riso são elementos fundamentais da noção de beleza compartilhada entre os fazedores de cavalo marinho. Considera-se que uma figura é bonita e bem colocada, quando ri-se bastante e as pessoas se divertem com ela. Citando a figura do Cego [ ] que através do uso da bengala, do uso de frases de duplo sentido, do tipo 'Pega na vara, Cego' e de sua condição desnorteada que o fazia enfiar a bengala em todo e qualquer buraco que enxergava ele (Manoel Deodato) justificava o sucesso da figura, rendendo bastante destaque e inclusive algum dinheiro ao figureiro que a colocava: 'O chapéu do Cego ficava cheio de real. Era bonito demais quando a gente achava graça nele' (Acselrad, 2008, p. 137). Acredito que despender um olhar cuidadoso para os sujeitos do Cavalo Marinho, descrevendo os corpos das mulheres e dos homens que o fazem, pode ser um caminho profícuo para traçar as relações de continuidade que se estabelece entre vida e brincadeira. Observar a dinâmica da vida cotidiana de uma comunidade ajuda-me a compreender como esta comunidade traduz em manifestação estética uma determinada maneira de perceber e estar no mundo. Sendo que esta maneira, individual e coletiva de compreender e atuar no mundo, está estreitamente ligada à uma determinada condição corporal, à história marcada nos corpos de cada um. Perceber como a violência e a sexualidade são elementos condutores da dinâmica e do humor no Cavalo Marinho revela-me a importância do corpo na minha tentativa de compreender as relações de gênero e a condição da mulher no universo desta brincadeira. Referências ACSELRAD, Maria. O cavalo marinho da Zona da Mata Norte de Pernambuco. A dança

das figuras: corpo e brincadeira em movimento. In: GUILLEN, Isabel Cristina Martins (org). Tradições e traduções: a cultura imaterial em Pernambuco. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2008. DOMENICI, Eloisa. A pesquisa das danças populares brasileiras: questões epistemológicas para as artes cênicas. Cadernos do GIPE-CIT (UFBA), v. 23, p. 7-17, 2009. LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.