AS GEOGRAFIAS DO COTIDIANO: A ESCOLA, AS FAMÍLIAS, A TERRA E O ARTESANATO EM CAMPO BURITI, NO ALTO JEQUITINHONHA MG



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Transcrição:

AS GEOGRAFIAS DO COTIDIANO: A ESCOLA, AS FAMÍLIAS, A TERRA E O ARTESANATO EM CAMPO BURITI, NO ALTO JEQUITINHONHA MG Eixo temático: O CAMPO E A CIDADE Exzolvildres Queiroz Neto 1 Dirceu Basso 2 Cláudia L. B. Soares 3 Gilson Batista de Oliveira 4 RESUMO: O objetivo deste texto é analisar as arquiteturas do cotidiano, isto é, as ações e reflexões dos atores a partir do artesanato, da terra (o solo vivido) e o ambiente, o projeto político-pedagógico da escola, que é uma proposta curricular, e, ao mesmo tempo, a concepção de educação de uma professora; a organização familiar dos agricultores, para além das concepções de populações tradicionais, onde o artesanato abre novas perspectivas para a participação feminina e, também, masculina na geração de renda produzindo um desenho familiar complexo em um espaço migrante (as saídas temporárias e definitivas) e mutante (adensamento da população) na Comunidade Rural de Campo Buriti. Destarte discorrer sobre a visão de mundo das pessoas em seus contextos e ambiente. O artesanato, a escola, a terra e a família como amálgama de uma arquitetura de complexas estruturas em fluxos. PALAVRAS-CHAVE: ação-reflexão desenvolvimento local espaço-tempo ruralidade complexidade 1 INTRODUÇÃO À medida que se descortinava a realidade dos agricultores familiares de Campo Buriti, município de Turmalina no Alto Jequitinhonha, MG (pesquisa de mestrado em 2006), evidenciou-se a complexa organização familiar, a visão de mundo dos atores sociais e suas 1 UNILA Brasil 2 UNILA Brasil 3 UNILA Brasil 4 UNILA Brasil

perspectivas de produção, a estrutura agrária, o ambiente, a construção de uma escola, a dinâmica do artesanato e os desenhos de família, gênero e geração. Uma arquitetura do cotidiano ao mesmo tempo, material, imaterial e simbólica. A pesquisa foi realizada com um total de 150 famílias. Os procedimentos metodológicos compuseram-se de: observação não participante e de entrevistas semiestruturadas. Objetivou-se, neste sentido, um levantamento das questões sociais, ambientais (o solo como elemento de interface), educação, infraestrutura, bens e serviços públicos. A terra (solo) foi uma variável fundamental para entender o contexto das famílias e a convivência com as limitações: baixa da fertilidade, processo de erosão, diminuição da oferta de água e as estratégias para contornarem os problemas viabilizando alternativas, entre elas, a migração (principalmente para São Paulo, para o corte da cana-de-açúcar nas usinas, nos períodos de abril a novembro), a migração da grota (vale), local das terras férteis, para a chapada onde ocorre o adensamento populacional em Campo Buriti. Sem embargo, a escola se tornou um referencial, pois, está diretamente relacionada com a migração de algumas famílias em busca da educação formal para os filhos (as). O artesanato faz a conexão da arquitetura do cotidiano demonstrando os novos arranjos das famílias de agricultores e a transposição de uma representação de gênero, onde o artesanato é visto como trabalho feminino, mas ocorre a incorporação de vários homens, principalmente, jovens que despontam a perspectiva de permanência e de geração de renda em oposição à migração. A contribuição vislumbrada, pelo autor e as autoras, diz respeito à complexidade do cotidiano, em um espaço rural, onde a história é uma construção e as escalas um trabalhar com as vicissitudes da vida e as variáveis. O cotidiano, na perspectiva de Freire (1987), onde a comunidade é um arranjo dinâmico e reconstrutivo na práxis. O cotidiano, também como instância da arena e o uso dos bens e recursos comuns e os conflitos a partir de Ostrom (1993). A construção do cotidiano, em uma perspectiva espacial em Santos (2002), uma solidariedade no acontecer do tempo social. Por conseguinte, tem-se por pretensão demonstrar os atores sociais construindo espaços de dignidade em uma paisagem de teórica escassez. A arquitetura do cotidiano é uma construção de fixos e fluxos ao longo do tempo, portanto, da história (SANTOS, 1982 e 2002). Assim, o sentido do tempo cotidiano é uma composição histórica das narrativas de cada pessoa e da própria comunidade em determinado lugar. As estruturas são construídas e reconstruídas e alteradas pela ação-reflexão do cotidiano, pois, não é possível rendermos às condições fixas desta arquitetura, pois, são os fluxos que dinamizam a história pessoal e coletiva. Por suposto, é sempre melhor explicar os

fatos à luz da história do cotidiano do que das abstrações? De fato a historicidade do sistema do lugar (cotidiano) nos leva a problematizar e refletir, pois esta história é construída por atores que fazem escolhas e agem. Logo, o sentido do tempo envolve uma percepção das atitudes e opções pelas mudanças, as visões de mundo. São, portanto, experiências que se inter-relacionam; uma situação presente às experiências passadas e às perspectivas futuras. 2 A TERRA A terra (solo) não é percebida como um bem de troca, mas como um bem de uso e que agrega vantagens, para além de uma concepção meramente econômica, como a possibilidade de manter a família unida (mesmo que alguns integrantes tenham migrado) e o de cultivar os referenciais culturais como o artesanato (Woortman, 1990). A terra é o esteio da comunidade, é o pertencer a um lugar. Com relação à questão sobre a posse da terra 93% das famílias entrevistadas possuem terra. Destas 73% tiveram acesso por herança e 20% a compraram. Há, por suposto, um processo de fragmentação da terra conduzindo ao uso excessivo do solo (dados de pesquisa, 2006). O solo (a terra) é um amálgama, local de trabalho, descanso, conflito, confraternização, espaço do face a face na comunidade. Destarte, desenvolve-se uma prerrogativa distinta, ao agronegócio, quanto às aspirações da comunidade em relação ao solo e ao ambiente ser, estar, fazer, saber uma interação múltipla e simultânea em um mesmo contexto. Na perspectiva de Freire (1987) um processo de ação-reflexão das pessoas com o mundo, um saber-fazer. Neste sentido, não há um solo ideal a partir do uso dos bens comuns em um cotidiano solidário. Por suposto o solo ideal depende do uso que se pretende dele (Resende et. al., 2007). Existe, sem embargo, o solo vivido, que não se contrapõe ao solo ideal, mas é uma construção. É, sem embargo, o suporte para a construção das pessoas em seus espaços cotidianos, um lapidar de técnicas e conhecimentos, por vezes imemoriais, mas adornados pelos saberes e as emoções, os conflitos, os equívocos, as migrações, as possibilidades de se trabalhar com o tempo e o ambiente. O solo vivido é a terra é uma das conexões, se não a principal, na arquitetura do cotidiano e das vicissitudes do ambiente na Comunidade de Campo Buriti. 3 AS FAMÍLIAS De modo geral o universo das famílias de agricultores é construído por uma relação fundamental entre dois mundos : a casa e o roçado (HEREDIA, 1979). É um processo de

reprodução biológica, econômica, simbólica e cognitiva. É na concretude do espaço casaroçado que a vida dos agricultores se enreda em uma arquitetura do cotidiano. Mas, por outro lado, o conceito de família traz em si a complexidade da própria humanidade. Para Lévi-Strauss (1986) família é universal. A vida familiar está presente, praticamente, em todas as sociedades, mesmo naquelas que possuem costumes sexuais e educacionais bastante distantes dos costumes ocidentais. Os diversos campos disciplinares, em quaisquer correntes teóricas, são confrontados com as mudanças produzidas pela própria sociedade em relação ao desenho da família. O conceito de família, conforme Bruschini (1989), deveria ser dinâmico, mas está sedimentado em questões sociais e culturais que transcendem a questão demográfica. Para a Antropologia a família, tal como a conhecemos atualmente em nossa sociedade, não é uma instituição natural e assume configurações diversificadas em torno de uma atividade de base biológica, a reprodução, como também, o conceito de família refere-se, de um lado a um grupo social concreto e empiricamente delimitável e de outra parte a um modelo cultural e a sua representação. Assim neste texto, na tentativa de apreender o conceito de família, de um lado o que se tem é o recorte simbólico mais fluido dos estudos antropológicos, demográficos e sociológicos. Admite-se, destarte, a família como fator de produção de formas simbólicas, isto é, a inter-relação entre as pessoas em determinado contexto, conforme (THOMPSON, 1995); o esteio para a vida em comunidade, referencial individual e coletivo, de amparo, de produção de um espaço de diálogo interno e com a sociedade, uma mediação entre as tensões do mundo de dentro e o mundo de fora. O trabalho doméstico é a principal atividade das mulheres na Comunidade Rural adensada de Campo Buriti, o que poderia parecer óbvio e até reforçar a representação de papéis masculinos e femininos. Mas um fato interessante advindo das entrevistas (2006), que corrobora com a ideia da mulher, como agente de ligação do mundo da casa com o mundo de fora, é a expressão utilizada, por algumas entrevistadas que é o processo de gerenciar a casa. O trabalho doméstico não encerra, em si, somente as tarefas diárias, mas é um importante fator na estrutura social, quando se combina o cuidado dos filhos com as representações em comunidade e, principalmente, com o artesanato em cerâmica (atividade desenvolvida, prioritariamente, pelas mulheres). Há um considerável número de lares chefiados por mulheres na comunidade o que aproxima esta realidade ao censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que constata em todas as regiões brasileiras, o aumento do número de mulheres chefiando os lares.

A importância das mulheres, neste delicado equilíbrio das representações de gêneros, está associada ao fato de que algumas famílias têm no artesanato uma importante fonte de renda familiar e esta atividade, pelo menos por enquanto, é uma prática das mulheres. Este fato nos remete as perspectivas de renda, que algumas famílias vislumbram no artesanato e, por isso, induzem os homens para um processo de compreensão das técnicas e dos processos artesanais de tempos correlatos, mas distintos do trabalho na terra. A arquitetura do cotidiano nas representações de gênero, na comunidade, está em franca mudança. Os valores, atitudes e ações se relacionam com uma perspectiva de valorização do artesanato (geração de renda) e no fato de haver uma relação de poder, isto é, uma instância de debate, na contemporaneidade, entre homens e mulheres sobre os destinos da família. 4 O ARTESANATO O artesanato em cerâmica, como foi constatado durante as entrevistas (2006), funciona como uma irrupção sinérgica para a geração de renda na Comunidade de Campo Buriti e as representações de gênero. Muitas famílias dependem da renda gerada pela venda das peças levando os homens a vislumbrarem o processo de ensino-aprendizagem. Pode estar em curso um processo de redimensionamento da arquitetura do cotidiano a partir do reposicionamento dos atores em relação ao uso dos bens comuns. Neste sentido, o artesanato como linguagem produz um espaço de debate, em uma perspectiva de Bakhtin (1992), produz mecanismos que aproximam as representações de gênero, por vezes assimétricas, numa relação de poder. As artesãs, em Campo Buriti, na medida em que detêm, simbolicamente, a técnica e a reprodução das peças e a possibilidade da reprodução econômica através da renda, mas também da autonomia criativa, geram um ambiente de possibilidades e ambiguidades. O que é extremamente promissor para a arquitetura do cotidiano. O Centro de Artesanato de Campo Buriti acolhe a Associação das Artesãs. O espaço é, também, a arena da capacidade humana de reinventar o seu cotidiano. A associação é um dos fatores de mudanças na arquitetura do cotidiano, pois as artesãs e artesãos associados, principalmente, as mulheres, que são maioria, são comunicadoras das mudanças. De apurado senso estético estas mulheres fazem a anunciação como atores ativos na comunidade. Conforme Marim-Barbero (2003) as mulheres são grandes reveladoras de paradoxos sociais e culturais, pois, promovem a união entre as tramas sociais e as afetivas, as problemáticas e as alternativas, a dor e a esperança.

Contudo valoriza-se, neste texto, o papel da mulher em Campo Buriti, mas não se coaduna com a perspectiva funcionalista, e por vezes ufanista, da mulher na contemporaneidade. Corre-se o risco de imputar às mulheres a remissão do próprio homem e, até mesmo, de algumas políticas públicas voltadas para a família. O trabalho artesanal tem suas fontes nos processos culturais locais, contudo, o resultado final depende da habilidade individual de cada artesã, o que produz uma classificação, na perspectiva do autor, de certa hierarquia do resultado do trabalho e reflete na facilidade com que a artesã consegue comercializar as suas peças. Observou-se, em Campo Buriti, certa tensão, quanto às reais possibilidades de geração de renda do artesanato. Algumas demandas foram debatidas pelas artesãs durante uma reunião da associação, mas a questão fundamental, que se inter-relaciona a várias outras, é como expandir as vendas? Esta é uma questão fundamental e simultaneamente paradoxal, uma vez que todo tipo de artesanato não é uma produção em série e, ainda mais, cada peça, em si, traz um ciclo de trabalho, tal qual o trabalho do agricultor familiar. Portanto, que estratégias e alternativas tendem a contrapor a imposição de modelos externos (políticas públicas, ações de organizações não governamentais) que buscam diminuir a dependência a partir de elementos locais? Contudo, que caminhos percorrer para tornar o artesanato uma fonte de renda sustentável? O artesanato foi, também, inserido na midiatização sobre o Vale do Jequitinhonha, na contemporaneidade, é uma marca veiculada pela mídia muito mais colada a uma ideologia idílica do espaço rural e suas tradições do que da valorização da arquitetura do cotidiano e sua complexidade. Sem embargo, há, em Campo Buriti, uma relação estética com o mundo. Quando se observa uma peça do artesanato em cerâmica, do Vale do Jequitinhonha, chama a atenção a estética peculiar de suas formas, cores e contornos. Cada elemento que compõe o todo da peça passa por referenciais históricos, culturais e da relação das pessoas com o ambiente. Admirar uma peça de artesanato, principalmente, para quem a faz é admirar a si mesmo e o seu contexto. Em Campo Buriti o artesanato tem, atualmente, uma função útil e uma função estética. Neste sentido, admite-se o termo estética para além das definições tautológicas ou somente da procura do belo como verdade, mas na perspectiva de Sánchez Vásquez (1999, p. 146), O estético a que nos temos referido é [...] a qualidade de um objeto humano, ou humanizado, peculiar, não importa se natural ou artificial, ao qual, por sua forma sensível, é imanente certo significado. Falta, entretanto, uma leitura mais apurada destes significados pelos atores das políticas públicas.

5 A ESCOLA A escola é, para a Comunidade de Campo Buriti, um fator medular na arquitetura do cotidiano. As famílias que saíram de suas terras em busca de novas perspectivas, o que parece indicar, valeram-se da escola como suporte a um novo dimensionamento para a vida dos filhos e filhas. Por outro lado as reflexões sobre a educação não apresentam, por vezes, uma consonância entre as necessidades dos(das) alunos(as), os currículos propostos, a formação dos professores e os projetos político-pedagógicos da escola. Neste contexto, a escola, como instituição, as normas e regras e, principalmente, a estrutura física o prédio são em muitas comunidades o acesso às políticas públicas. A questão envolve recursos financeiros, mas gravita, também, em torno de uma distribuição de responsabilidades e autonomias entre municípios, estados e a federação. Como se não bastasse, cada escola é uma processo único no todo da educação. Mas qual a importância da escola para a arquitetura do cotidiano de Campo Buriti? A concretude da escola surge da imaterialidade do sonho da professora Faustina: 6 NOSSO SONHO Todos na vida temos sonhos. É direito de sonhar. Sonhamos com vida digna sem precisar migrar. Precisa-se de dar um jeito, mas por onde começar? Aparecem várias propostas para acabar com a migração. Mas se não tivermos emprego nem tampouco uma formação, como podemos enfrentar a vida do Sertão? Vimos falar de um projeto de uma escola diferente, que nos prepara para a vida. Esse projeto apresenta grande importância na região unindo, escola, família e parcerias [...]. Quando se lê o que esta professora escreve (esta é uma entre as diversas poesias de um trabalho literário fecundo) é possível dimensionar o papel da escola para a arquitetura do cotidiano. Para corroborar com a maestria do seu trabalho, há que se valer de Paulo Freire (1987, p. 78). A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir novo pronunciar. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas nas palavras, no trabalho, na açãoreflexão.

O sonho da professora Faustina se materializa a partir da presidência da Associação Comunitária de Educação Rural de Turmalina (ACERT), que conduz a Escola Família Agrícola, uma proposta de escola que se constrói no cotidiano. A ACERT é uma associação constituída de pais de alunos, agricultores, que respondem juridicamente pela Escola Família Centro de Artesanato (CEART). Neste contexto, novas linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender são pretendidos pela Escola Família. Assim, o artesanato é um dos elementos de mediação com o mundo. É, ao mesmo tempo, histórico e cultural, saber local e universalização das possibilidades e da cidadania. O currículo está voltado para o processo de ensinoaprendizagem formal, mas que não se detém, somente, na vertente do conhecimento, mas leva em consideração um processo: família-escola-comunidade para se atingir o conhecimento vinculado à realidade do(da) aluno(a). É uma arquitetura complexa e em fluxo, portanto, transdisciplinar. 7 AS ARQUITETURAS DO COTIDIANO O tempo e o espaço, de uma arquitetura do cotidiano, são dimensões indissolúveis que envolvem as ações e reflexões humanas e, também, os processos do ambiente. Para Milton Santos (2002). A unicidade do tempo não é apenas o resultado de que, nos mais diversos lugares, a hora do relógio não é a mesma. Não é somente isso. Se a hora é a mesma, convergem, também, os momentos vividos. Há uma confluência dos momentos como resposta àquilo que, do ponto de vista da física chama-se tempo real, e do ponto de vista histórico, será chamado de interdependência e solidariedade do acontecer (p. 27). Portanto, quando se fala das arquiteturas do cotidiano não importa tanto a perspectiva de um território fixo, e de estruturas com conexões perpétuas, mas de relações dos elementos do espaço. O resultado da combinação desses elementos extrapola a possibilidade de uma homogeneização definitiva de um lugar ou região. Assim, como o tempo, o espaço e a arquitetura do cotidiano podem ser particularizados, mas não é possível estremá-lo da ação-reflexão das pessoas em seus contextos. Não é possível dissociar as pessoas dos espaços e, por conseguinte, de suas arquiteturas, pois um engendra o outro ao mesmo tempo em que por este é engendrado. Em termos do espaço e do tempo uma arquitetura cotidiana vai sendo concebida, construída e reconstruída.

Diante de todas as grandes e rápidas modificações por que está passando o mundo, qual a importância de continuar estudando a arquitetura do cotidiano? Mas é, justamente, por isso que estas arquiteturas se tornam fundamentais, pois é onde se encontra a universalidade do ser humano: a ação-reflexão do mundo, a reconstrução crítica da realidade, a problematização. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS A realidade das famílias de agricultores em Campo Buriti expõe a complexidade do espaço rural. Na contemporaneidade muitos estudos buscam explicar a ruralidade em curso. Ora, não é possível traçar significados precisos, mas identificar o crepúsculo da simplificação da análise dos processos humanos pelo viés econômico-setorial. Por outro ângulo vislumbrar aqueles processos que se estruturam no e a partir das inter-relações dos fluxos no espaço rural. Como ficou demonstrado, mesmo em comunidades tradicionais, há um (re)arranjo, talvez recente(?) das perspectivas de gênero, como também, do desenho de família. É fundamental considerar a perspectiva dos atores em seus cotidianos, talvez as arquiteturas devam ser analisadas pelo ângulo de um caleidoscópio, que apresentando combinações novas no tempo e no espaço social nos leva a problematizar. Assim, esta arquitetura cotidiana: terra, escola, famílias e artesanato devem ser compreendidos pelas razões (lógicas), não somente pelos padrões, pelas quais famílias de agricultores conseguem traçar estratégias em ambiente de escassez ou limitações, o que pode contribuir para ampliar o conhecimento do uso da terra e do solo, da cultura, dos desenhos de famílias, da importância da escola e das pessoas a partir do cotidiano, isto é, do tempo social. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BRUSCHINI, C. Uma abordagem sociológica de famílias. Revista Basileira de Estudos Populacionais, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 1-11, jan-jun, 1989. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1987 HEREDIA, B. M. A. de. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

LÉVI-STRAUSS, C. A família. IFCH-UNICAMP, [s,d] mimiografado, 1986. MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2003. OSTROM, E. GARDNER, R., WALKER, J. Rules, games and common-pool resources. Michigan University Press. Michigan, 1993. SÁNCHEZ-VÁZQUEZ, A. Convite à estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. SANTOS, M. O espaço e seus elementos: questões de método. Revista Geografia e Ensino, Belo Horizonte, 1, n. 1, p. 19-30, mar. 1982. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. THOMPSON, J.B. Ideologia e cultura moderna: teoria social e crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. WOORTMANN, K. Migração, família e campesinato. In: Revista Brasileira de Estudos de população. Jan-Jun. 1990.