Letramento do aluno surdo: considerações sobre compreensão e escrita em L2



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Transcrição:

Letramento do aluno surdo: considerações sobre compreensão e escrita em L2 Introdução Celeste Azulay Kelman Faculdade de Educação Programa de Pós Graduação em Educação /UFRJ Coordenadora da pesquisa A Pedagogia Visual no ensino para o aluno surdo (SME/ FAPERJ/UFRJ) No município do Rio de Janeiro, as escolas públicas estão atendendo a uma demanda crescente de crianças surdas nas classes comuns. Respeitando os princípios da inclusão em educação, além de compartilharem um programa educacional com colegas ouvintes, mais recentemente contam com a presença de um intérprete de Libras, em cumprimento à legislação federal, que prega que o ensino deva ser ministrado em Libras (Decreto-Lei 5626/2005). Com muita frequência, também se conta com a presença de um instrutor surdo nas salas de recursos. Esse fator é de fundamental importância para a construção da identidade surda, para a construção de conhecimento de novos conceitos em língua de sinais, e também como modelo linguístico, pois cabe a ele a introdução de novas palavras em língua de sinais, ampliando assim o vocabulário dos alunos surdos. O debate sobre inclusão como movimento mundial, político, confrontado às práticas pedagógicas realizadas no Brasil, nos leva a refletir sobre o aperfeiçoamento da inclusão de surdos nas escolas públicas de ensino fundamental na rede municipal do Rio de Janeiro. Conviver com pessoas que não apresentem deficiência/diferença é bom, mas insuficiente. O que as crianças com suas singularidades precisam é, mais do que um grupamento social inclusivo, é ter um acesso eficaz ao conhecimento. Alunos que apresentem uma diferença linguística necessitam tanto quanto os demais de um ensino de qualidade. A escola precisa retroceder nos mecanismos de exclusão, de forma que alunos surdos, tão inteligentes quanto os demais não venham a sentir-se fracassados ou com baixa auto-estima em suas vivências escolares, simplesmente porque a escola não atende às suas necessidades educacionais. É necessário avançar nos mecanismos de aprimoramento do letramento dos alunos surdos nas classes comuns. O aluno surdo necessita de uma metodologia diferenciada de ensino da leitura e escrita da língua portuguesa, se comparado com o seu par ouvinte. O português é a segunda língua do surdo (L2), sendo sua primeira língua a língua de sinais. Esse artigo tem o propósito de contribuir para melhorar o processo de ensino/aprendizagem de alunos surdos em classes comuns, dentro das escolas inclusivas. Para isso abordaremos alguns conceitos que consideramos fundamentais: (a) processos de significação (b) mediação semiótica (c) comunicação multimodal (d) interlíngua Não se consegue escrever direito se não se sabe sobre o quê se está escrevendo. Escrever sem compreensão é uma atividade mecânica, desprovida de significado e denominada de copismo. Não 1

avança no processo do conhecimento. Portanto, o primeiro passo é tentar refletir sobre os mecanismos que aumentem as possibilidades da criança surda compreender o que lê e tentar escrever sobre suas experiências de vida. 2. Conceitos fundamentais para o letramento 2.a Processos de significação na educação de surdos Para se entender como ocorrem processos de significação, convém buscar apoio na teoria de Vigotski (1931/1983) e sua elaboração sobre o que representa o papel dos sistemas sígnicos na formação da mente humana. Ele descreve as formas mais complexas da vida quando trata da formação da consciência. Para começar, ele diz que para explicar as formas mais complexas da vida consciente do homem é imprescindível sair dos limites do organismo. Estes não seriam um fator impeditivo para o desenvolvimento humano. A ausência da audição não impede a formação social da consciência na criança surda. Apenas dificulta. Vigotski (1931/1983) criou o conceito de internalização, que é fundamental na compreensão do desenvolvimento do que ele denominou os processos mentais superiores. O que ele assim denomina são processos que se desenvolvem no ser humano, forjados pela cultura na qual ele está imerso e mediados pelos signos. Cultura, neste artigo, tem um sentido que leva em conta as práticas de mediação semiótica como organizadoras das funções psicológicas. O que quer dizer isso? Que nas relações interpessoais, por meio da linguagem, do sistema escrito e de outros conjuntos de signos, como a internet, por exemplo, as pessoas vão formando sua subjetividade, seu pensamento e sua ação. A apropriação dos signos pelas relações sociais inaugura o processo de internalização que se dá numa série de transformações. A primeira mencionada pelo psicólogo russo é de que uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente. Dito de outro modo, um processo que ocorre na criança inicialmente através das interações sociais, portanto um processo interpessoal passa lentamente a se transformar em um processo intrapessoal, constituído na mente da criança. O signo desempenha o papel de instrumento psicológico e é através da apropriação dos signos que se dão as transformações na consciência e no conhecimento. O que Vigotski (1931/1983) denominou de funções superiores advém de uma modificação das funções elementares iniciais; ocorre por meio da mediação com os signos. Isso nos leva a entender que a forma como se dá a mediação implica na transformação ou não de uma função, isto é, a maneira como o conteúdo curricular é passado pode ou não ser internalizado. Traduzindo: não basta ensinar para o aluno aprender. No caso da criança surda em sala de aula inclusiva, a presença do intérprete é uma grande aquisição, pois cumpre com a legislação em vigor, que manda que a criança surda tenha a instrução em língua de sinais. Mas o fato de ter a presença de um intérprete não garante a compreensão dos conteúdos acadêmicos, pois muitas vezes o intérprete seleciona o que deve interpretar, passando muito tempo sem traduzir. Com isso podemos compreender muitas histórias de insucesso escolar. A receita para que o aluno surdo tenha um bom desempenho escolar passa necessariamente por transformar o currículo em um continuum de processos de significação. Como garantir que a criança surda constitua significados dentro da sala de aula? Desvendar qual a melhor forma para ocorrer os processos de mediação semiótica na educação de surdos 2

representa um desafio maior: possibilitar que ela construa significados e adquira compreensão a partir das experiências vivenciadas. A criança surda é perfeitamente capaz de dar significado ao mundo, desde que tenha as ferramentas adequadas para poder interpretá-lo. Certamente a língua de sinais contribui para que ela possa significar melhor o mundo. É uma condição necessária, porém não suficiente. O intérprete precisa interpretar tudo o que é dito. Não deve selecionar o que ele acha importante interpretar, pois nesse caso, sua presença não vai contribuir muito para a compreensão do conteúdo curricular. Existem outros fatores que contribuem para o processo de significação: a mediação semiótica, a comunicação multimodal e o fenômeno da interlíngua. 2.b Mediação semiótica e metáfora Esse é um conceito central na obra de Vigotski. Mediação semiótica é essencial para a compreensão do funcionamento psicológico humano. A mediação ocorre por signos compartilhados entre os sujeitos professor e alunos, por exemplo, se pensarmos em uma situação vivida na escola. Muitos livros de histórias infantis utilizam um vocabulário que está acima do nível de compreensão da criança. Para que ela possa entender, o adulto com frequência transforma o texto, simplificando-o. Se o professor falar, mas não se fizer entender devido à ambiguidade do discurso, ou se ater ao que está escrito no material didático impresso, não haverá construção de significados. Por exemplo, se o professor disser xxx: Em caso contrário, se houver uma transmissão unilateral, em que o professor só fala, mas não interage com seus alunos, a intervenção não será efetiva. A mediação semiótica nada mais é do que intermediar significados, construir ferramentas para que o que deve ser transmitido passe a fazer sentido para o aluno, para que ele possa compreender. Dito de outra maneira, compreensão significa que os signos passaram de uma fase interpessoal para uma intrapessoal; conteúdos que circulam entre as pessoas, em uma relação dialógica, podem ser internalizados pelo sujeito, se fazem sentido para ele. A linguagem é essencialmente um sistema sígnico. A matemática também. Outros exemplos de sistemas sígnicos: a leitura, a escrita, a informática, uma pauta musical ou a cartografia. O uso de vídeos com legenda ou interpretação em Libras são também ferramentas que auxiliam na compreensão de signos, principalmente se os alunos surdos tiverem condição de ler rapidamente. E isso pode enriquecer os processos de significação. A mente humana é semiótica; ela é permanentemente imersa em relações dialógicas e sígnicas. Quando nos comunicamos, compreendemos melhor o mundo. A metáfora se constitui em um grande problema à educação de surdos. Não nos damos conta da quantidade de vezes que utilizamos essa figura de linguagem, principalmente porque o seu significado já está internalizado em nossa consciência de ouvintes. Mesmo as crianças que ouvem demoram algum tempo para perceberem que aquela expressão utilizada pelo professor tem um sentido distinto do que elas conhecem. Quando a professora pergunta: Quem descobriu o Brasil? algumas crianças compreendem que ela está se referindo ao sentido inicial que suas vivências suscitam. A mãe cansa de falar para seu filho: Cubra-se porque está frio ou Se você se descobrir vai pegar um resfriado. Ao ouvir a professora falar sobre o Descobrimento do Brasil, a criança ficará pensando em quem tirou a coberta do Brasil e não entenderá nada que se segue. Os professores têm que estar alertas e se colocar na perspectiva do aluno para buscar perceber se eles estão entendendo o que está sendo dito ou sinalizado. Precisam evitar o discurso ambíguo e esclarecer as outras possibilidades de sentidos para aquelas palavras que 3

estão sendo utilizadas. A isto se chama participar na construção de significados. Várias professoras de alunos surdos incluídos se deram conta que, ao explicarem de vários modos possíveis o mesmo significado, os alunos surdos e os ouvintes entendiam melhor. Durante o processo de aquisição da língua, integrante do desenvolvimento infantil, a criança vai sempre se deparar com o que mais comumente denominamos de sentido figurado. Esse fenômeno está muito presente em qualquer língua, tem um significado duplo. Cabe ao professor explorar os diferentes sentidos para que o aluno surdo entenda que uma mesma expressão possa ter diferentes significados. Por exemplo, os homógrafos (palavras que tenham a mesma escrita): manga-manga. Muitos adultos surdos relatam as dificuldades na compreensão de significados em situações vividas na escola. O que significa Vai tomar banho?. Um deles relata que não entendia quando alguém lhe dizia isso, já que havia tomado banho antes. Será que estava mal cheiroso? Seria um problema do seu sabonete? Da sua roupa? Nessa linha, poderíamos seguir exemplificando. São inúmeras as vezes que falamos, mas não nos fazemos entender. Uma endocrinologista na televisão mencionava que as proteínas são um tijolo no nosso corpo. Fiquei curiosa em saber que tipo de construção mental uma criança pequena poderia estar fazendo disso. Seria o seu corpo então transformado em um conjunto de tijolos se comesse carne? Quantas vezes, sem nos darmos conta, fazemos uso das metáforas? E, se leva um tempo (também uma metáfora) para a criança ouvinte compreender, para a criança surda leva muito mais. Expressões como pé de pato, tomar tempo, assim não vai dar, etc. são muito mais comuns do que imaginamos em nosso cotidiano comunicativo. Aqui cabe explicar que produzir significados conjuntamente não significa apenas trabalhar no e o concreto. Significa dar as ferramentas necessárias para que a criança possa fazer uma representação mental correta, isto é, significar corretamente o conteúdo. Como professores, devemos estar alertas para o efeito de uma metáfora, como evitá-la ou decifrá-la, não apenas para a criança surda que esteja em sua sala de aula, mas também para a criança ouvinte, uns precisando mais do que outros para entender essa figura de linguagem. Não é incomum ouvir de professoras que trabalham em classes inclusivas que até mesmo os alunos ouvintes de sua turma são beneficiados pelo trabalho desenvolvido em sua classe, pois a explicação precisa ser maior e mais bem elaborada, utilizando-se de recursos variados. É aí que entra o significado da comunicação multimodal. 2.c Por uma comunicação multimodal Comunicação é um marco fundamental para que o desenvolvimento humano aconteça. Sua limitação torna difícil a expressão de desejos, expectativas, dúvidas e todos os tipos de sentimentos e experiências dos quais nossas vidas estão impregnadas. A dificuldade de comunicação, presente na criança surda em um meio ouvinte, torna mais difícil o desenvolvimento do pensamento e outras funções mentais superiores. Daí o reconhecimento do papel que a língua de sinais tem na formação do pensamento e da cognição. Crianças surdas que fazem uso precário da língua portuguesa na versão escrita e desconhecem a língua portuguesa falada têm mais dificuldade em compreenderem e negociarem os significados que estão inseridos no contexto cultural do qual participam. Esse ambiente, rico de significados, precisa ser interpretado. Existem possibilidades de que a comunicação circule 4

melhor e o contexto escolar fique mais significativo em função da atuação pessoal do professor. Para facilitar essa interpretação, a comunicação multimodal se faz necessária. Aspectos da comunicação multimodal vêm sendo enfatizados mais recentemente em sala de aula (KELMAN, 2005). Apesar de se considerar a importância da língua de sinais como língua em que os conteúdos acadêmicos devem ser passados, a estratégia pedagógica da comunicação multimodal utiliza diferentes recursos semióticos para que a comunicação seja efetivamente realizada e transformada em significados. A comunicação multimodal facilita as interações comunicativas em sala de aula porque aproveita todos os recursos necessários para as interações entre surdos e ouvintes: desenhos, mímica, cartazes, movimentos corporais, vídeos. Um signo linguístico deve ser representado por múltiplos meios, por diferentes modos semióticos para que haja a compreensão do conceito em que ele implica. Isto não representa em hipótese alguma a revitalização da Comunicação Total, abordagem utilizada nas décadas de 70 e 80 principalmente. Significa fazer das tripas coração, utilizando diferentes recursos sígnicos para que a criança construa significado. Uma professora explicava o sistema digestório quando sua aluna surda levantou a mão e perguntou em língua de sinais: O que é empurrar? A professora parou, pensou e a chamou na frente da sala. Pediu que ela virasse de costas e começou a empurrá-la com suas mãos. Perguntou se ela havia entendido a analogia. Com o movimento corporal explicou e se fez entender, dizendo que os alimentos eram empurrados do esôfago para o estômago. O último recurso mencionado, o vídeo, é também uma ferramenta da pedagogia visual para surdos. Seu uso pode ser entendido como uma possibilidade de empoderar os surdos por meio da recepção crítica do audiovisual. Entretanto, seu uso abusivo pode ser entendido como ter efeito contrário, aumentando o desinteresse do aluno surdo. Lembramos que é difícil o aluno prestar atenção ao filme e acompanhar a tradução do mesmo em Libras. Por esse motivo é preciso que todo material novo, seja vídeo, seja texto, deve, antes de tudo, ser explicado em Libras para só depois ser lido ou visto. A comunicação multimodal deve ser entendida como recurso complementar; não pode sobrepor-se ao uso de Libras. Portanto, além do uso de Libras em sala de aula, é necessário que o professor faça uso de recursos da pedagogia visual para que o surdo compreenda melhor os conceitos acadêmicos. 2d. A Interlíngua A aquisição de uma segunda língua é um processo lento e gradual. Mais de metade da população mundial usa duas ou mais línguas regularmente (GROSJEAN, 2008). Segundo Cummins (1979; 2007), quanto mais línguas você fala, mais facilidade terá para aprender a próxima, conceito construído dentro da sua teoria da interdependência linguística. Mas ninguém se torna bilíngue de uma hora para outra. Segundo o autor, são necessários cinco ou mais anos de exposição a uma língua para aquisição de competência linguística. Não é diferente com o surdo que precisa aprender uma segunda língua. A diferença é que enquanto sua língua natural ocorre na modalidade espaço visual, a L2 ocorre em modalidade oral auditiva, o que dificulta mais ainda o processo. Como melhorar a capacidade de compreender conceitos e o vocabulário das crianças surdas? Na medida em que as crianças vão aumentando o seu nível de escolarização, o pensamento vai ficando cada vez mais elaborado e, se não houver uma preocupação em fazer com que a criança surda entenda 5

o que está sendo explicado, cada vez mais aumentará o fosso entre pares surdos e ouvintes da mesma classe. Identificar palavras e habilidades em decodificá-las é o fundamento para a compreensão do que se lê e escreve. Para a criança surda, cada palavra é percebida visualmente e não pela fonética. Palavras que são lidas com muita frequência tornam-se palavras reconhecidas visualmente porque são palavras lidas na íntegra e não pelos sons de letra por letra. O vocabulário de palavras visuais mais comuns deve ser enfatizado dentro de pequenos textos, que possam facilitar o fazer sentido pela criança e depois, se tentar destrinchar as palavras que compõem o texto. Deve se ressaltar a importância do verdadeiro significado do que é lido. Não se pode ter o foco na palavra, pois isso gera perda do sentido global. Certamente a participação do intérprete e do instrutor surdo contribui fundamentalmente para que isso ocorra. Para Soares (2006), letramento é o estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita. Já alfabetização é definida como ação de ensinar/aprender a ler e escrever. O letramento pode ser afetado pela ligação positiva entre língua de sinais e desenvolvimento linguístico (PADDEN; RAMSEY, 1998). A criança que sabe bem língua de sinais terá maior facilidade em estruturar frases na L2 (HOFFMEISTER, 2000). E a criança surda que lê mais, certamente terá melhores chances de escrever com proficiência. A exposição maior a textos escritos em L2 e que sejam trabalhados e compreendidos pela criança surda ampliará o seu interesse em escrever. O processo de aprendizagem da escrita da L2 pode ser constituído por etapas de leitura, escrita e reconstrução de um texto em português, o que poderia ser compreendido como um processo análogo ao de retextualização. MARCUSCHI (2001) cunha esse conceito referindo-se às produções verbais orais realizadas por um professor e anotadas no caderno pelos alunos. É essa transformação de texto oral em texto escrito que ele chama de retextualização. Na educação de surdos, existe um fenômeno semelhante à retextualização, que passa pela interlíngua. Esse conceito refere-se à transferência da estrutura da língua de sinais para a escrita em português. A escrita espontânea inicial seria uma mistura das duas línguas: escreve como sinaliza. Deve-se marcar para os alunos surdos a diferença entre interlíngua e língua portuguesa, constatado durante o processo de aprendizado da língua portuguesa, L2. Cabe ao professor entender e respeitar essa fase de aprendizado da língua portuguesa. A sequência de processos instrucionais então obedeceria às seguintes etapas: ler, escrever (inicialmente na interlíngua), rever e retextualizar. Atividades específicas de leitura devem ser desenvolvidas diariamente e utilizando-se diferentes materiais: jornais, livros, histórias em quadrinhos e filmes compõe um acervo importante de leitura de materiais escritos ou visuais. Enfatizamos, entretanto, que desenvolvimento da fala não é pré-requisito para aprendizagem e construção da escrita pela criança surda. Ela não precisa falar para escrever bem em português. Precisa, sim, ler muito. A narração de estórias em língua de sinais é uma importantíssima estratégia para o letramento da criança surda que está incluída em classe comum. Leituras e escritas coletivas também. 6

Conclusões Esse artigo buscou propor algumas formas de explicação dos conteúdos acadêmicos para aperfeiçoar a compreensão pelo aluno surdo. Também veio propor o aperfeiçoamento do processo de letramento da criança surda incluída na classe regular, uma vez que a aquisição da proficiência em língua portuguesa pela criança surda não passa pelas mesmas etapas da criança ouvinte. O professor não deve considerar como uma escrita errada as tentativas iniciais de escrita. Habilidades de escrita na L2 é um processo em transformação, uma habilidade que está gradativamente sendo construída; leva algum tempo para passar da interlíngua para língua portuguesa. Evidenciar as diferenças entre uma e outra constitui um dos maiores desafios ao professor de alunos surdos. Referências BRASIL. DECRETO 5.626/05. Regulamenta a Lei 10.436 que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais LIBRAS. Disponível em: www.mec.gov.br. Acesso em: 7/10/2010.. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, MEC/SEESP, 2008. CUMMINS, J. Linguistic interdependence and the educational development of bilingual children. Review of Educational Research, v. 49, 1979, p. 222-51. CUMMINS, J. BICS; CALP. Disponível em: http://www.iteachlearn.com/cummins/ bicscalp. html Acesso em: 12 mar 2007. GROSJEAN, F. Studying bilinguals. New York, NY: Oxford University Press, 2008. KELMAN, C. A. Aqui tudo é importante: Interações de alunos surdos com professores em espaço escolar inclusivo. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia. Universidade de Brasília, 2005. Significação e aprendizagem do aluno surdo. In M. C. Tacca; A. Mitjans Martínez (Orgs.): Possibilidades de Aprendizagem: ações pedagógicas para alunos com dificuldade e deficiência. Campinas, SP: Editora Alínea, 2011, p. 173 203. MARCUSCHI, L. A. Da Fala para a Escrita: Atividades de Retextualização. São Paulo: Cortez, 2001. PADDEN, C. & RAMSEY, C. Reading ability in signing deaf children. Topics in Language Disorders, 18 (4), 1998, 30-46. SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. VIGOTSKI, S. L. Obras Escogidas: Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Madrid: Visor, 1983. (original de 1931) 7