PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Transcrição

1 Registro: ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº , da Comarca de São Paulo, em que é apelante MINISTERIO PUBLICO sendo apelados MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO e COMPANHIA METROPOLITANA DE HABITAÇÃO DE SÃO PAULO COHAB SP. ACORDAM, em 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Deram provimento ao recurso. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmo. Desembargadores GRAVA BRAZIL (Presidente) e PIVA RODRIGUES. São Paulo, 26 de julho de JOSÉ LUIZ GAVIÃO DE ALMEIDA RELATOR ASSINATURA ELETRÔNICA

2 APELAÇÃO Nº COMARCA DE SÃO PAULO APELANTE Ministério Público APELADA Municipalidade de São Paulo. Voto nº Extinção do feito Impossibilidade jurídica do pedido Inocorrência, pois o Poder Público também deve respeito à Lei de Parcelamento, devendo regularizar o empreendimento Recurso provido. Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público contra a Municipalidade de São Paulo e a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo - Cohab. Diz a inicial que a primeira ré, através da Secretaria Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano desenvolve o Programa de Mutirões, com vistas a promover a construção de moradias populares às famílias de baixa renda. Através de associações comunitárias, passou a financiar a construção de conjuntos habitacionais, ora em terrenos desapropriados, ora em propriedades da Cohab, ora em glebas adquiridas pelas próprias associações, mas sempre estipulando que as casas pertenciam ao Município. As atividades de parcelamento do solo, as obras de infra-estrutura e o patrocínio das construções dos conjuntos habitacionais pelos mutirões eram desenvolvidos pela Prefeitura, que deixou de atender aos requisitos legais necessários à regularidade do empreendimento. O Funaps e a Associação Comunitária Estrela Guia celebraram um convênio cujo objeto era a construção de 100 unidades habitacionais destinadas às famílias que participaram direta e ativamente do programa de ajuda mútua, utilizandose área desapropriada com aproximadamente ,07 metros quadrados. As obras previstas, no entanto, não foram concluídas e o empreendimento não conta com obras de infra-estrutura básica. Nenhum dos prédios foi acabado, sendo que alguns deles não saíram da fundação. De acordo com o convênio, no entanto, a Municipalidade se 2

3 responsabilizou pelas obras de infra-estrutura e projetos complementares, financiadas pelo Funaps e executadas por Habi. Assim, embora promovido pelo próprio poder público, o conjunto habitacional não foi aprovado pelos órgãos competentes, não contando com a prévia anuência do Estado e com licença da Cetesb. Ainda, não está registrado ou averbado no respectivo Cartório de Registro de Imóveis, ferindo assim a Lei 6766/79 e as leis estaduais e municipais. Pleiteou-se a condenação da ré na obrigação de fazer para, no prazo não superior a dois anos, proceder à regularização do parcelamento, das edificações, do uso e da ocupação do solo relativos ao empreendimento referido, nos seguintes termos: a) em caráter principal, por meio de apresentação de projeto a ser aprovado pelos órgãos competentes e submetido ao registro imobiliário, e de posterior execução das obras de infra-estrutura pertinentes, tudo para sua alteração e integral adequação aos requisitos definidos nas leis municipais, estaduais e federal; b) em não podendo ser acolhido o pedido anterior, por meio de alterações no empreendimento, naquilo que for necessário, segundo as exigências técnicas feitas pelos órgãos públicos para a regularização, inclusive, se não for possível o aproveitamento das construções e do parcelamento já efetuados, com o desfazimento do conjunto, totalmente ou na parte em que não possa sobreviver, por força de restrições urbanísticas e administrativas invencíveis, indenizando os danos ambientais e urbanísticos, c) em qualquer das hipóteses anteriores, quando qualquer mutirante cadastrado não for contemplado em razão da alteração do projeto original, com indenização em perdas e danos, consistentes na quantificação de sua mão-deobra despendida, ou na entrega de unidade habitacional semelhante à que lhe foi reservada no convênio, tudo na forma de condenação genérica do art. 95 e seguintes do Código de Defesa do Consumidor. Requereu ainda a condenação à multa por dia de atraso e aos ônus da sucumbência. Citada, a requerida contestou (fls. 980), alegando, preliminarmente, perda do objeto da ação, eis que o loteamento em questão está sendo regularizado por interesse social. Pediu a inclusão da Cohab e da Associação Comunitária Estrela Guia no pólo passivo da demanda. Sustentou a ilegitimidade do 3

4 Ministério Público, a impossibilidade jurídica do pedido e a falta de interesse processual. No mérito, traçou a distinção entre o parcelamento do solo feito pelo particular e o levado a efeito pela Municipalidade, sem intenção de lucro, sendo inaplicável a Lei Federal nº 6766/79. Alegou a competência constitucional do Município para legislar sobre matéria de interesse local, inclusive urbanização de seu território, com o intuito de adequar o uso do solo às necessidades locais, tendo editado o Decreto nº de , em que se pautou o proceder da Administração Municipal. Disse que o empreendimento trouxe benefícios, que inexistiu dano e requereu a improcedência da demanda. Réplica a fls Determinação de citação da Cohab para compor o pólo passivo da demanda (fls. 794, verso). A Cohab contestou (fls. 800), levantando preliminares de ilegitimidade ativa e passiva, impossibilidade jurídica do pedido e litisconsórcio necessário com a Associação Comunitária Estrela Guia. No mérito, sustentou que atuou como mera gerenciadora de verbas, sendo o projeto e sua execução de responsabilidade da Funaps e da Associação, de acordo com o acordo firmado entre ambas. Disse não ser a proprietária do imóvel e nem participou dos atos que culminaram com a edificação das unidades habitacionais, não podendo ser condenada a regularizar o empreendimento. Sustentou que não se trata de parcelamento, mas de construção em condomínio, regida pela Lei 4591/64. Réplica do Ministério Público a fls. 909, concordando com a preliminar de ilegitimidade da Cohab. O feito foi julgado extinto, entendendo o Juiz Marco Aurélio Paioletti Martins Costa que o autor era carecedor da ação por impossibilidade jurídica do pedido (fls. 979). Insatisfeito, apela o Ministério Público, insistindo na possibilidade jurídica do pedido. Recurso tempestivo e contrariado a fls

5 Parecer da douta Procuradoria de Justiça a fls É o relatório. O Ministério Público ingressou com a presente ação civil pública sustentando que a Prefeitura Municipal de São Paulo estaria obrigada a atender aos requisitos de uso e ocupação do solo, mas deixou de atender as posturas federal, estadual e municipal, desrespeitando a Lei de Parcelamento do Solo. O juiz entendeu que ser o autor carecedor da ação por impossibilidade jurídica do pedido, pois essas exigências somente seriam aplicáveis aos particulares e não aos empreendimentos sociais. Cinge-se a controvérsia em saber se há ou não a impossibilidade jurídica do pedido reconhecida na decisão de primeiro grau. Ao contrário do que se decidiu, não se pode afastar a aplicação da lei 6766/79, pois tanto os empreendimentos particulares como os empreendimentos realizados pelos Municípios devem respeitar a lei que trata do uso e da ocupação do solo, sendo a pretensão do Ministério Público fornecer aos mutuantes a segurança de ingressarem em algo que os retire da ilegalidade e que lhes permita viver de forma digna. A Administração, portanto, tem o dever de garantir um mínimo de higidez sanitária coletiva, que somente se pode obter, seguindo os requisitos apontados na Lei de Parcelamento. O fato de se tratar de um empreendimento popular não isenta o Município de cumprir rigidamente a lei sobre o parcelamento e a regularização do solo. Nem tampouco o isenta de realizar as anotações registrais. Nesse sentido: O caráter popular não isenta o Município ou qualquer outro ente público, assim como o parcelador popular de cumprir rigidamente a lei sobre o parcelamento e regularização do solo, bem como de efetuar anotações registrais, eis que não se apresenta, qualquer delas, como matéria afeta à 5

6 disponibilidade do cidadão, mas sim submetida a exigências de ordem pública. (Apel. n /1, rel. Caetano Lagrasta, j. em 13 de novembro de 2002) Ainda: Há regras às quais a Municipalidade, sendo loteadora, precisa se submeter, como qualquer loteador. É o que ocorre com a comprovação de obras exigidas pela própria legislação municipal (...). Também não pode deixar de se submeter ao procedimento de registro, previsto no art. 19, da Lei 6766, (...) que visa a tornar público o empreendimento, permitindo eventuais impugnações e a manifestação do Ministério Público. (Embargos Infringentes n /4-01, voto de Celso Bonilha) A lei de Parcelamento foi recepcionada pela Constituição Federal de 88, pois essa atribui à União a competência sobre matéria em questão (arts. 21, XX, 23, IX e 24, I, 1º), e é aplicada independentemente de a iniciativa ser particular ou do Poder Público. Conforme entendimento jurisprudencial, acolher a pretensão da Municipalidade e julgar o feito extinto sem julgamento de mérito, por impossibilidade jurídica do pedido, é inadmissível, já que cabe ao Poder Público possibilitar que os cidadãos vivam com dignidade: Acolher-se a pretensão da Municipalidade representaria, sob o cunho popular-assistencial aos mais humildes, condicionálos a permanecer, indefinidamente, em situação de moradia irregular, sendo que o descumprimento das normas que regulam a ocupação do solo 'não atinge somente aquelas pessoas que, diretamente, estão inseridas no contexto, como 6

7 moradores e ocupantes locais, mas de certa forma, a toda a comunidade.' (JTJ 189:11 e ss.), é fazer vistas grossas ao desespero daqueles, ante o argumento de que apenas o loteador particular visa lucro. Lucro nesta espécie de investida pública regula-se pela notoriedade e pelos votos que serão conseguidos em eventual eleição em futuro não muito distante, através de programas habitacionais desta espécie. (Apel. n /1, rel. Caetano Lagrasta, j. em 13 de novembro de 2002) Portanto o pedido é juridicamente possível e a intervenção do Ministério Público legítima. Por isso, afasta-se a extinção do processo e determina-se a remessa dos autos à vara de origem para prosseguimento com julgamento do mérito. Dessarte dá-se provimento ao recurso. JOSÉ LUIZ GAVIÃO DE ALMEIDA RELATOR ASSINATURA ELETRÔNICA 7