A experiência dos usuários - um depoimento 1
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- Walter Mascarenhas Canário
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1 1 A experiência dos usuários - um depoimento 1 Mário César Scheffer Jornalista Apresentação In: Carneiro, F. (Org.). A Moralidade dos Atos Cientificos questões emergentes dos Comitês de Ética em Pesquisa, Rio de Janeiro, FIOCRUZ, Eu sou membro do grupo Pela Vidda de São Paulo, que há nove anos atua na luta contra AIDS. É um grupo (existe também no Rio de janeiro) que tem na defesa dos direitos civis das pessoas com H IV / AIDS a prioridade das suas ações. Como conseqüência dessa militância é que o Pela Vida, representando todas as organizações nãogovernamentais de luta contra a AIDS e, mais amplamente, as entidades em defesa dos portadores de patologias, deficiências e usuários em geral, ocupa hoje uma vaga na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). A luta das pessoas com H IV / AIDS é pragmática porque luta contra o tempo e pela vida. Por essa razão, eu quero antecipar que minha fala, muitas vezes, será corporativa, porque a gente fica aprisionado no próprio umbigo e não conseguimos enxergar o que acontece fora da luta contra a AIOS. E também é preciso dizer que nossa visão sobre ética em pesquisa é mais focada nos ensaios clínicos e estudos terapêuticos, apesar de estarmos acompanhando também pesquisas comportamentais e epidemiológicas. A nossa agenda de lutas é muito ampla, e eu estaria mentindo se dissesse que Ética em Pesquisa é uma prioridade do nosso movimento. Não é não. Até porque essa discussão acontece no eixo Rio-São Paulo onde está concentrada a maior parte das pesquisas em H IV / AIDS. Sobre as pesquisas científicas No Brasil, dezenas de pesquisas estão sendo realizadas nessa área. São estudos que avaliam a eficácia de novas drogas, novas combinações, procedimentos clínicos, comparam diferentes dosagens de um mesmo medicamento... Há também as pesquisas na área de epimiodeologia e as pesquisas sobre comportamentos. Para nossa luta, a pesquisa científica é imprescindível e o único meio confiável para o avanço de novos medicamentos, para tratamentos cada vez mais potentes, para melhor entender a evolução da epidemia e das doenças oportunistas. Além de melhorar a qualidade e a quantidade de vida das pessoas com HIV e também embasar a adoção de políticas de prevenção e controle da AIDS. 1 Mário Scheffer proferiu esta fala no Seminário, solidariamente, em substituição à Artur Custódio Moreira de Souza, ausente do evento por motivos de saúde. Foi transcrita e editada, sem a revisão do palestrante. V. Nota da Organizadora.
2 2 O HIV acelerou tanto a produção do conhecimento como as discussões sobre ética em pesquisa. E isso por causa da gravidade da infecção, da inexistência da cura, do caráter epidêmico e, principalmente, por causa da mobilização das pessoas afetadas estar sendo organizada em grupos de luta contra AIDS. Por exemplo, para uma substância virar medicamento, fora do campo da AIDS, eram necessários de dez anos a doze anos, divididos em várias etapas clínicas. A AIDS veio acelerar isso: em dois ou três anos, a gente tem o começo da pesquisa In vitro e logo a droga já está no mercado. A AIDS acelerou esse caminho, reduziu etapas e isso faz com que tenhamos que criar mecanismos para acompanhar toda essa evolução. Hoje, os avanços na área de drogas tem possibilitado que as pessoas vivam cada vez mais e melhor -apesar dos problemas de adesão e de efeitos colaterais. Pode-se até discutir se um portador de H IV / AIDS tem autonomia ou não, se é vulnerável ou não para participar de uma pesquisa. Mas pesquisas existem, elas estão andando e é necessário acompanhá-las, tentando garantir a autonomia do pesquisado e fazer com que ele seja o menos vulnerável possível (e atualmente temos instrumentos concretos para assegurar essa autonomia do indivíduo). Sobre a relação entre grupos sociais organizados e CEPs Tudo isso é muito recente. Há uma cultura ética nova sendo criada no país. O processo de elaboração da Resolução do Conselho Nacional de Saúde, da qual participamos desde o início das discussões até a implantação dos CEPs, gerou hoje mais de 200 Comitês de Ética em Pesquisa espalhados pelo país... e isso é uma cultura nova. No momento em que se tem Comitês de Ética em Pesquisa com uma composição multidiciplinar e com a participação da comunidade, do usuário, cria-se a possibilidade de que um representante dos portadores de HIV/AIDS ou um grupo de luta contra a AIDS possa participar da pesquisa desde o desenho até o acompanhamento da aplicação e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os grupos de luta contra AIDS e outros movimentos organizados de entidades de portadores de patologia e deficiência tiveram uma participação muito importante na elaboração da Resolução CNS 196/96. Foram feitas câmaras técnicas voltadas para esse movimento e para a discussão sobre o Consentimento Livre e Esclarecido. É claro que ainda existe um monte de problemas: CEPs que não levam em conta o conceito de representante da comunidade de usuário; a própria inexistência de quadros no movimento para ocupar esses espaços; e a não priorização dessa djscussão no movimento. É importante que os CEPs tenham a participação de um soropositivo e/ou representante de grupos de luta pelos direitos civis das pessoas afetadas pelo H IV, no momento da discussão de um protocolo. Às vezes, isso é difícil porque as grandes instituições já têm CEPs centralizados e têm departamentos que fazem pesquisa de H IV / AIDS. Mas estamos insistindo em São Paulo para que toda pesquisa em H IV / AIDS tenha um ad hoc que pertença a algum grupo - isso consta na Resolução CNS 196/96, e que ele possa participar do processo de aprovação do protocolo de pesquisa.
3 3 Isso já foi encaminhado, Nós já temos três CEP sem São Paulo, com representantes do fórum de ONGs/ AIDS de São Paulo, Dois outros CEPs são centralizados e não têm representantes, mas têm o compromisso de remeter todo protocolo de pesquisa em AIDS ao fórum de ONG/ AIDS e o fórum designa uma ONG ou um representante de ONG para analisar o projeto - o que não garante que esse projeto depois vai ser ético, não é? A aprovação do protocolo de pesquisa é uma parte, o acompanhamento é um outro problema difícil de ser trabalhado, Mas é um grande passo se há participação do representante do pesquisado na análise e na deliberação ética sobre o protocolo, Sobre o consentimento das pessoas envolvidas Na prática, depois da existência dos CEPs, melhorou muito nossa relação com as pesquisas principalmente a informação do indivíduo que aceita participar a pesquisa. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é o objeto que a gente tenta aprimorar mais para que as pessoas com HIV/AIDS, que participam das pesquisas tenham o esclarecimento da forma mais objetiva e mais acessível possível. Os pontos sobre os quais a pessoa deve saber são: a justificativa, o objetivo, se ele vai ter desconforto, se corre risco, efeitos colaterais, qual o benefício esperado, qual o método alternativo àquela pesquisa. O que está sendo esperado é realmente melhor do que o que já existe disponível? A pesquisa traz algum benefício ao indivíduo ou só beneficia o pesquisador e a empresa? Há ainda que informar: a forma de acompanhamento, como ele vai ser assistido durante a pesquisa, detalhes tais como o nome, o telefone do responsável pela pesquisa, onde procurá-lo em caso de efeito colateral, se houver alguma dúvida... garantir o esclarecimento antes e durante o curso da pesquisa, sobre toda a metodologia adotada... Além disso, o indivíduo deve ser informado caso haja mudança nos procedimentos clínicos. É imprescindível também assegurar a liberdade do indivíduo de recusar a participar, de se retirar a qualquer momento da pesquisa, sem sofrer prejuízo algum, inclusive dando continuidade ao tratamento fora da pesquisa bancado pelo patrocinador e pela instituição... e a garantia de sigilo e da privacidade quanto aos dados confidenciais, o esclarecimento quando às formas de ressarcimento de despesas decorrentes de sua participação pesquisa (condução, alimentação). E também as formas de indenização mediante de eventuais danos. Isso tudo a gente tem tentado discutir. Em São Paulo, o Pela Vidda e o GIV (Grupo de Incentivo à Vida) montaram juntos uma Oficina de Ética em Pesquisa, tratando especificamente do Consentimento Livre e Esclarecido e esse modo de trabalhar está sendo difundido nos centros que geralmente fazem pesquisas em H IV / AIDS. Até hoje, conseguimos realizar três oficinas, e o resultado tem sido muito interessante. Na oficina, faz-se uma reflexão sobre o que é esse consentimento, a importância desse esclarecimento antes de entrar numa pesquisa. Por exemplo, dizemos que não se deve assinar, sem pensar, nenhum documento antes de
4 4 iniciar a pesquisa. Ele tem que levar para casa, ele tem que ler, procurar um grupo de luta contra a AIDS e só depois tirar todas as dúvidas com o médico da pesquisas. Se a opção da pessoa for entrar no estudo recomendamos que ela não abandone seu médico de confiança. Isso tem gerado algum conflito porque os pesquisadores e o promotor da pesquisa querem que o indivíduo pesquisado seja observado só pelo médico da pesquisa. E isso não pode acontecer, ele deve continuar com seu médico mesmo tendo toda a assistência garantida pela pesquisa. Sobre as formas de recrutamento Os pacientes têm de entrar na pesquisa conscientes de que não terão benefício algum e que pode até haver algum prejuízo. Que ele pode estar apenas contribuindo para o progresso da ciência. Isso é o mais difícil. Infelizmente os pacientes entram na pesquisa não para contribuir, mas sim buscando tratamento que eles às vezes não têm na rede pública... E aí eu pergunto: que autonomia é essa? Às vezes eles confundem pesquisa com tratamento - isso é a coisa mais comum -às vezes eles estão atrás de acesso a nova droga, a um tratamento potencialmente inovador... eles não têm consciência de que ele pode está entrando numa grande "roubada" nessa pesquisa. Quem entra numa pesquisa seduzido por aparentes vantagens, como a de um tratamento diferente do encontrado na rede pública, deve pensar duas vezes. As propagandas da pesquisa visando ao recrutamento, muitas vezes, são enganosas, prometem benefícios que ainda são meras suposições e isso também interfere na questão da autonomia. Ora, se algo ainda está em estudo não se pode afirmar que é tão bom assim. Já houve cartazes com a "pomba da paz" dizendo: -'Venha! Participe do medicamento da esperança que vai te trazer a cura' - ou chamadas pagas em grande jornais de circulação dizendo: -'Se você é soropositivo venha participar'... Enfim a propaganda, o marketing que se usa para arregimentar esses voluntários têm sido motivo de desconfiança e por isso temos alertado às pessoas. O voluntário está indo atrás de quê? Sobre os benefícios Outra questão diz respeito à transparência da verba utilizada na pesquisa. Desde o salário do pesquisador até o que é gasto por cada paciente. Nem os médicos envolvidos devem receber salários exorbitantes e nem os pacientes devem receber privilégios, porque senão haverá uma quebra da eql1idade nos serviços de saúde, uma fila dupla num mesmo serviço... e isso causa problemas éticos importantes nos serviços. Infelizmente, temos visto pesquisas em HIV/AIDS promoverem a discriminação de médicos e pacientes na rotina dos serviços de saúde. A pesquisa deve trazer benefícios diretos para o soropositivo brasileiro. Por exemplo, no caso de uma droga testada, se ela foi eficaz, ela tem que estar disponível imediatamente
5 5 na nossa rede pública e não apenas no país de origem, uma vez que a maioria dessas pesquisas são conduzidas do exterior. Temos a convicção de que o Brasil é escolhido muito por causa da quantidade de soropositivo. Pesquisas são feitas no Brasil porque aqui há muitos soropositivos virgens de tratamento e não apenas, "pelos belos olhos de nossos pesquisadores" e pela excelência de nossos centros de pesquisa. Então, existem interesses motivando a decisão do local da realização da pesquisa, e por isso, no mínimo, devemos exigir algum benefício imediato para o pesquisado e que elas não tragam, como a maioria das pesquisas hoje, apenas benefícios para o pesquisador tais como matérias publicadas em revistas internacionais (normalmente revistas de segunda linha), apresentação do trabalho em conferências... Enfim, a instituição ganha visibilidade, ganha dinheiro, prestígio e, a indústria farmacêutica consegue a informação que ela precisa sobre seu produto. O paciente não deve ficar apenas com a experiência de ter sido cobaia.
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