Do engano do sujeito suposto saber ao desengano do falasser*

Transcrição

1 1 Do engano do sujeito suposto saber ao desengano do falasser* Sérgio de Campos[1] Palavras-chave: sujeito suposto saber, sentido gozado, interpretação, sintoma. Existe o feliz acaso[2]. Maria chega ao consultório com a demanda de curar-se da solidão. É solteira, mora e sente-se só. Tem o hábito de conversar nos sites de bate-papo da internet para amenizar sua solidão. Relata que sofre por não ter construído uma família. Já com os pais falecidos, tem um único irmão que constituiu uma família numa cidade distante. No campo profissional é inteligente, culta e bem sucedida. Maria é professora universitária, com doutorado e pós-doutorado nos EUA. Fluente em pelo menos três idiomas, coordena um mestrado em universidade federal e tem inúmeras publicações em revistas internacionais de renome. Quanto a sua vida afetiva, comenta que é um verdadeiro fracasso. Não obstante Maria ser uma mulher bonita e refinada, com cerca de cinqüenta anos, não tem um companheiro fixo. Experimenta relacionamentos efêmeros que não constituem nenhuma forma de compromisso. Depois de inúmeras histórias de seus desencontros amorosos, assinala que, quando conhece um homem, chega a perdê-lo logo depois do primeiro ou do segundo encontro. A cada história amorosa, a mesma estrutura se repete. Ela comenta que sente uma estranha atração por homens rudes, não estudados e mal dotados intelectualmente. Observem que o ponto que a atrai é justamente o seu ponto de impasse, pois ela se sente fisgada por um tipo de homem que ela rejeita. Indagada sobre como fazia para afugentar seus pretendentes, Maria, numa localização subjetiva, reflete que o ponto chave que afasta o seu homem é o momento em que ela revela seus dotes intelectuais. Segundo ela, o sujeito fica logo inseguro ao saber que ela tem pós-doutorado e orienta teses de mestrado. Via de regra, segundo

2 2 Maria, os homens com quem se relaciona não tiveram a oportunidade de uma formação universitária, malgrado sejam bem sucedidos economicamente. Maria já teve um relacionamento fixo, pois ela manteve um noivado de vários anos. Quando cursava a universidade tinha um noivo e um desejo de se casar que lhe era correspondido. Contudo, resolveu fazer o doutorado e pós-doutorado nos EUA e o seu noivo não a esperou. Ele acabou se casando com sua melhor amiga, que não chegara a cursar a universidade. Dessa experiência, recuperou uma antiga lição: homem não gosta de mulher inteligente. No percurso de uma análise, há enunciados do sujeito que convergem para uma enunciação axiomática que jamais se esquece[3]. Assim, Maria relembra que sua mãe sempre dizia: você que estuda muito, vai ficar para titia e homem não gosta de mulher inteligente. Assim, Maria constata a dura verdade desta enunciação essencial que sempre reitera, a cada desencontro amoroso. Então, ser inteligente se transformara em objeto de rejeição masculina e o dizer materno, o oráculo de seu destino inexorável: a solidão. Sua mãe era uma pessoa que tinha uma inteligência muito acima da média, mas não pôde estudar. O marido rude, pai de Maria, proibira a esposa de estudar, dando-lhe o ultimato de escolher entre o estudo e o casamento. Assim, a mãe de Maria se casara e se resignara à condição de mãe e de dona de casa sem, contudo, abdicar de um rancor pela escolha forçada. Agora, ressentida, cobrava da filha uma cota de sacrifício pelo sucesso intelectual. O pai, segundo Maria, tinha uma inteligência mediana e exercera uma função pública que não exigia muito dele. Com freqüência, ele desdenhava da inteligência da mãe, fazendo joça: sua mãe não sabe o que está dizendo. Com o trabalho de redução analítica, isolou-se o axioma da enunciação atávica homem não gosta de mulher inteligente como significante mestre o qual captura todo o gozo do sujeito. Esse axioma ecoa para dois outros: mulher, quanto mais inteligente, mais solitária e quem estuda muito, fica para titia. Destarte, o seu modo de gozo se transformou no modo de verificação da enunciação materna. Quanto mais o seu gozo opera, mais ela eleva a enunciação materna a uma máxima do desencontro amoroso. Esse ponto de isolamento da convergência entre s1 e o gozo se repete sucessivamente colocando-a numa espiral de exclusão, de modo que quanto mais ela busca amar, mais é relançada no campo sintomático da solidão.

3 3 Certa vez, Maria conheceu um americano num site de bate papo. Ficavam longas horas conversando. Depois de alguns meses assim, passaram a se telefonar. Tratava-se de um americano chamado John, divorciado, com um filho adolescente, mecânico, que estudara até o segundo grau. Com a chegada das férias, Maria disse-lhe que gostaria de visitá-lo. Qual não foi o seu espanto quando o sujeito avisou-lhe que era um homem pragmático e interessado em casar-se novamente. Ele lhe disse que ela não viesse a sua casa a menos se ela aceitasse, de antemão, o seu pedido de casamento. Maria chega transtornada ao consultório. Passou a considerar que estava lidando com um insano. Tinha recebido um pedido de casamento pelo telefone de um homem que mal conhecia. Aquilo que ela mais queria - se casar - tornara-se objeto de angústia. Então, eu lhe disse: por que não conhecê-lo? Em seguida, aleguei que o fato de conhecê-lo não implicava num casamento, como pensava seu pretendente. Maria fez as malas e partiu. Quando voltou, comentou que tinha gostado do John e que considerava seriamente sua proposta. Nas sessões em que ela considerou sobre o casamento, permaneci em silêncio. O que ela interpretou como quem cala consente. Porém, uma série de sonhos com sua mãe enfurecida irromperam de seu inconsciente. Em todos os sonhos ela se colocava na posição de objeto para a mãe, encolerizada, lhe golpear de morte. Enfim, quando Maria decide aceitar a proposta de John, os sonhos desaparecem. Em decorrência do aceite da proposta, Maria passou a desenvolver em algumas semanas um sintoma curioso. Ela relatava que não compreendia mais o que lia, perdera a sua fluência no inglês e perdia-se no meio das aulas na universidade. Estou emburrecendo rapidamente. O desejo da mãe voltara de outra maneira, agora, de modo mais nefasto: uma espécie de debilidade mental[4]. Indaga-me se ela deve ir a um neurologista. A resposta é o silêncio. Em seguida, Maria elabora: Se sou amada por um homem, não posso ser inteligente. Então, com uma entonação pândega, citei sua velha enunciação: homem não gosta de mulher inteligente. Ao colocar um tom de troça na citação, a interpretação ganhou um estilo de perturbação[5] inédito. Ela, então, ri e responde com a enunciação paterna: meu pai sempre falava que minha mãe nunca soube o que dizia. Como foi que eu acreditei nela e estive enganada todo esse tempo? Pode-se dizer que a solidão se apresentara como um sintoma de um engano (unebévue)[6]. A interpretação dita pelo tolo do analista esvaziou o sentido de sua

4 4 enunciação e provocou uma cessão de gozo, na medida em que prevaleceu a opacidade do gozo[7]. Se por um lado, Miller assinala que se existe uma sabedoria que pode ser recomendada ao discurso analítico é bem aquela que se enuncia com a máxima de ser um tolo[8]. Por outro lado, Se Lacan nos ensina que o gozo é opaco[9], então, a operação da psicanálise consiste num forçamento que conduz o gozo a um sentido para resolvê-lo[10]. Porém, a modificação do gozo ocorre apenas na medida em que ele é desatado novamente do sentido. Doravante, pode-se dizer que a interpretação, meramente tola, desmascarou a si mesma e facultou a emergência da face real do pai de tal sorte que, o bom uso da besteira vacilou o efeito de verdade sobre o gozo. Assim, a interpretação - nada inteligente -, ao deslocar o s1 do mais de gozar, fez com que as duas faces do gozo - inteligência/debilidade - se esvaziasse e perdesse sua consistência e sua fixidez. Maria não mais reclama dos brancos nas salas de aula, das diversas vezes que tem de ler o mesmo texto sem entendê-lo, nem tampouco da perda da fluência no inglês. Nas sessões subseqüentes, Maria esclarece que seu engano tinha por base a experiência conjugal de sua mãe e não a sua, e mesmo assim, sua mãe também estava equivocada, visto que considerava que o seu pai não gostava de mulher inteligente. Contudo, ele gostava, afirmou, tanto que se casou com ela. Como minha mãe era muito inteligente e de personalidade forte, o que meu pai fazia era jogá-la para menos para poder amá-la, acrescentou. Finalmente, Maria compreendeu o semblante paterno que elaborara uma ficção para responder ao real da não relação sexual. Ela apreendeu o modo de gozo paterno para com sua mãe, pelo viés da depreciação do objeto amoroso. Portanto, Maria pôde assentir-se com seu modo de gozo. Ao perceber que a enunciação materna era puro semblante, o gozo opaco se destacou, fazendo cair o engano do sujeito suposto saber. Assim, Maria decifrou seu enigma, apreendendo que a dimensão do pai real enuncia a castração. Pois, quando ela percebeu que o pai desejava justamente uma mulher inteligente sua mãe - se tornou possível assentir-se como objeto causa de desejo. Afinal, esse assentimento promoveu nela a possibilidade de um encontro com um homem rude, pouco inteligente e nada estudado, mote de seu desejo. Ademais, ela comenta em tom de gracejo que estudo e

5 5 inteligência ela já tem de sobra para os dois, e acrescenta que só quer um homem que a faça gozar como uma mulher. Maria elabora um saber novo que leva em conta um savoir-faire sobre o seu modo de gozo. A passagem para a cura é, sem dúvida, decorrente de uma redução significante, por um lado, e, por outro, uma redução quantitativa do gozo. Mas a passagem de um para o outro só se faz sem garantias, como um salto, um evento não calculado[11], um lance privilegiado todo intuitivo e nada dedutivo. Pode-se presumir que essa passagem contingente ocorre na medida em que ela elabora o modo de gozo paterno dissipando-se da sombra do desejo da mãe. Na última sessão, Maria comenta que será sempre só e elabora uma teoria de que a família é uma espécie de prótese para não sermos solitários. E conclui: sozinha sempre, solitária jamais. Já casada e de mudança, ela comentou que com seu pósdoutorado, não fora difícil conseguir uma vaga numa universidade americana para lecionar. O sintoma solidão se transmutara. Agora, Maria estava separada e sozinha, para sempre, em relação às enunciações maternas e eternamente desenganada das certezas do desejo da mãe. * Trabalho apresentado no Rio de janeiro, no XIV Encontro do campo Freudiano. [1] Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. [2] LACAN, J. (1973), Introduction à L Edition Allemande des Écrits, Autres écrits, Paris: Éditions du Seuil, p [3] MILLER, J.-A. (1998), O osso de uma análise, Salvador: Biblioteca agente, 1998, p. 50. [4] Miller assinala que Lacan propõe a debilidade mental como uma nova categoria que diz respeito a um falasser marcado por uma desarmonia que pode ser denominada através de outros nomes tais como o conflito, o spaltung, a castração, a não relação sexual (MILLER, Opção lacaniana, n. 35, 2003: 13). [5] A interpretação como perturbação aporta o corpo e a figura pelo viés da surpresa, franqueando ao sujeito uma saída. Essa interpretação visa retirar o sentido gozado do corpo. A interpretação como perturbação tem como alvo o parlêtre. Ela visa mobilizar algo do corpo e exige do analista um aporte, como o olhar, a voz, a entonação, o gesto e a pantomima. (MILLER, Experiência do real, 1999: 136). [6] Unbewusstsein pode ser considerado une-bévue. Há inconsciente quando a consciência se engana (MILLER, Opção lacaniana, n. 35, 2003: 23). O saber só se revela no engano do sujeito (LACAN, J. La méprise du sujet supposé savoir, Autres écrits, Paris: Éditions du Seuil, 1974: 336). [7] Miller comenta que a questão é como fazer para ceder o gozo. Não se pode deduzir essa cessão. Aqui se introduz algo não calculável (MILLER, J.-A., O osso de uma análise, Salvador: Biblioteca agente, 1998: 72).

6 6 [8] S il y a une sagesse qui peut prétendre se recommander du discours analytique,c est bien celle qui énounce la máxime d être dupe (MILLER, J.-A., Au-dela de l Edipe, Revue de la cause freudienne, 1992: 9). [9] Lacan assinala que O gozo é opaco, por excluir o sentido (LACAN, Joyce, le synthôme, Autres écrits, Paris: Éditions du Seuil, 1974: 570). [10] MILLER, J.-A., Lo real y el sentido, Buenos Aires: Colección Diva, 1º. Edición, 2003, 81. [11] Brodsky no principio da redução, assinala: Esto pertenece a otro registro, no se trata ya de lo posible o de lo imposible sino de lo contingente y lo posible. Puede producirse... o no. Y no es seguro que lo reducción significante desemboque necesariamente en la reducción cuantitativa, libidinal, pulsional. Como indicación final diré que la reducción significante y la reducción de goce se intersectan en la reducción del sentido (BRODSKY, G. Paper da Escola Una n. 8).