O CRIME DE DESCAMINHO: UM EXEMPLO DE CRIME FORMAL
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- Flávio Fartaria Cruz
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1 O CRIME DE DESCAMINHO: UM EXEMPLO DE CRIME FORMAL I CONCEITO ROGÉRIO TADEU ROMANO Procurador Regional da República O artigo 334 do Código Penal prevê o crime de contrabando ou descaminho ao dizer: Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. O crime é sancionado com pena de um a quatro anos. Porém, se o sujeito se utiliza de transporte aéreo, para o crime de contrabando ou descaminho a pena deve ser dobrada, parágrafo terceiro. Desde já, na linha de Júlio Fabbrini Mirabete, lembro que a doutrina orienta que contrabando designa a importação ou exportação fraudulenta da mercadoria e descaminho o ato fraudulento destinado a evitar o pagamento de direitos e impostos. Do que se tem do artigo 89 da Lei 9.099/95, se for o caso, poderá o Parquet apresentar pedido de suspensão condicional do processo. Já de algum tempo, há censura a forma de um tratamento único para duas figuras penais distintas. Foi o que disse Alfredo Pinto Araújo Corrêa, que já censurava a reunião num único dispositivo de fatos sensivelmente diversos. O contrabando é a exportação ou importação de mercadoria proibida, não sendo ilícito fiscal. Por sua vez, o descaminho representaria, para a doutrina, uma fraude ao pagamento de tributos aduaneiros, configurando um ilícito de natureza tributária, apresentando uma relação fisco-contribuinte, algo que não existe no contrabando. Para Paulo José da Costa Jr, o descaminho representa uma fraude fiscal, insista-se, importando verificar se os impostos, taxas ou direitos sã realmente devidos, se foram calculados com exatidão, se as formalidades legais foram obedecidas. Assim o núcleo verbal do crime de descaminho se observa na ação de iludir, burlar, enganar, ludibriar, fraudar o pagamento, total ou parcial, de imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. II OBJETIVIDADE JURÍDICA O objeto jurídico do crime é o erário público, uma vez que há evasão de renda como resultado do crime de descaminho. III SUJEITOS DO CRIME Tanto o contrabando como o descaminho devem ser considerados como crimes comuns, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Porém, quando participam do fato funcionários públicos que infringem o dever funcional, respondem estes pelo crime previsto no artigo 318 do Código Penal, facilitação de contrabando ou descaminho. Se essa circunstância elementar não ocorrer, poderão eles ser partícipes ou coautores de crime de descaminho ou ainda de contrabando.
2 Se o crime for praticado por uma associação criminosa, teremos a aplicação do artigo 288 combinado com o artigo 334 do Código Penal. IV CONDUTA E TIPO SUBJETIVO No crime previsto no artigo 334 do Código Penal, onde há um tipo misto cumulativo, nenhuma de suas práticas delitivas acha-se subordinada a qualquer questão prejudicial, no âmbito administrativo. Assim louvo a lição de Paulo José da Costa Jr. ao concluir que nenhuma das práticas delitivas acha-se subordinada a qualquer questão prejudicial, no âmbito administrativo. Segundo ele, não procede a alegação de que o processo criminal dependeria de uma condição objetiva de punibilidade(lançamento fiscal) ou de procedibilidade, qual fosse a verificação prévia do contrabando ou descaminho, em sede administrativa. Lúcida a afirmação de que o processo penal não fica, pois, dependendo da prévia decisão administrativa. Isso porque tais esferas, a administrativa e a judicial, são, verdadeiramente, autônomas e independentes. O exame pericial, por outro lado, não é condição de procedibilidade para o ajuizamento da ação penal. Mas, vamos a segunda parte do dispositivo presente no caput do artigo 334 do Código Penal: a fraude empregada para evitar o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada ou saída da mercadoria proibida. Assim se entende que configura-se o crime na posse de mercadoria estrangeira sem comprovante da importação regular e em quantidade superior às necessidades de uso pessoal do agente. Já se entendeu que não configura o crime de descaminho com a entrada de produto sobre o qual não incide o tributo ou ainda a saída se não são devidos tributos fiscais. Discute-se se pode incidir o princípio da insignificância. Reporto-me ao que foi decidido no AgRg no Recurso Especial RS, a partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal, onde se repele a aplicação do princípio da insignificância quando a conduta delituosa foi praticada por agente envolvido em reiteração ou habitualidade da prática do delito de descaminho. Decidiu-se pelo afastamento do princípio da insignificância, nos casos de prática reiterada da infração. Seriam pressupostos para aplicação desse princípio: a mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Mas, lembro que o criminoso contumaz, mesmo que pratique crimes de pequena monta, não pode ser tratado pelo sistema penal como se tivesse praticado condutas irrelevantes, pois crimes considerados ínfimos, quando analisados isoladamente, mas relevantes quando em conjunto, seriam transformados pelo infrator em verdadeiro meio de vida, como disse a Ministra Cármen Lúcia, no julgamento do HC /MG. Assim o princípio da insignificância não se aplica quando se trata de paciente reincidente, porquanto não há falar em reduzido grau de reprovabilidade do comportamento lesivo, como disse a Ministra Cármen Lúcia, no julgamento do HC , DJ de 26 de maio de Segundo a jurisprudência que foi firmada no Superior Tribunal de Justiça, Primeira e Segunda Turmas, incide o princípio da insignificância aos débitos
3 tributários que não ultrapassem o limite de R$10.000,00( dez mil reais), a teor do artigo 20 da Lei /02. Nessa esteira, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal vem assentando a orientação que falta justa causa para a ação penal por crime de descaminho quando a quantia sonegada não ultrapassar o valor do referenciado dispositivo, aplicando-se o princípio da insignificância. Esse ainda o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC /RS, Relator Ministro Luiz Fux. Já se entendeu também que é inadequada a incidência de contribuições sociais para a configuração do descaminho, pois não há incidência de PIS e COFINS sobre a importação de bens estrangeiros que são objeto de pena de perdimento. Em verdade, tenha-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se consolidou, desde o julgamento do Recurso Especial /TO, representativo de controvérsia na matéria, no sentido de se admitir o limite de R$10.000,00(dez mil reais), para fins de aplicação do princípio da insignificância quanto ao crime de descaminho. Por outro lado, a existência de condições pessoais desfavoráveis, como maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso, não impedem a aplicação do principio da insignificância. De toda sorte, exige-se o dolo, como elemento subjetivo do tipo, pois sem ele não se tem como configurado o crime de descaminho. Se assim é não se configuraria o crime quando são cobrados pelo menos em parte os direitos relativos às mercadorias trazidas do estrangeiro. V A DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL: CRIME FORMAL OU MATERIAL O crime de descaminho tal como ocorre no crime de contrabando se consuma com a liberação da mercadoria. Se o expediente cercado de ardil se consuma, iludindo as autoridades alfandegárias, aperfeiçoa-se o crime na medida em que o destinatário entrar na posse da mercadoria sem pagar os tributos ou impostos devidos. Penso haver inequívoca diferença entre o crime de descaminho ou contrabando e o crime contra a ordem tributária. São tipos penais com objetividade distinta, não podendo ser aplicado o entendimento para ambos, no que se refere ao que se denomina condição objetiva de punibilidade. O delito de contrabando ou descaminho tutela a Administração Pública, em especial o erário, protegendo ainda a saúde, a moral, a ordem pública. De outra parte, no crime do artigo 1º da Lei 8.137/90, o bem jurídico protegido é a ordem tributária, entendida como o interesse do Estado na arrecadação dos tributos, para a consecução de seus fins. O bem jurídico protegido pela norma que tipifica o ilícito de descaminho é mais do que o mero valor do imposto. isso porque engloba a própria estabilidade das atividades comerciais dentro do país, que reflete na balança comercial do Brasil e de outros países. Assim mais do que um prejuízo ao fisco, há o interesse de proteção ao comércio legal. combatendo-se a concorrência desleal com os bens produzidos no país, de sorte a evitar prejuízos à atividade empresarial brasileira. Considero que o processo administrativo não é condição de procedibilidade para a deflagração do processo-crime pela prática do delito previsto no artigo 334 do Código Penal, tampouco a constituição definitiva do crédito tributário é pressuposto ou condição objetiva de punibilidade.
4 Assim não entendeu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do RHC /PR, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, DJe de 14 de junho de Foi dito que o Direito Penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. Diante disso, concluiu o Relator: Por consequência, entendo que o bem jurídico que o Estado procurou tutelar foi a ordem tributária ou a Administração Pública em seu aspecto fiscal. Dessa forma, parece-me desnecessária a reprimenda estatal quando inexistir prejuízo à Fazenda Nacional. Soma-se a isso que o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC /SP, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ de 19 de novembro de 2007, entendeu, diante de crime de descaminho, que há extinção da punibilidade mediante pagamento de tributo antes do oferecimento da denuncia. Ora, de acordo com a Súmula 560 do STF, a extinção da punibilidade, pelo pagamento do tributo devido, estender-se-ia a crime de contrabando ou descaminho, por força do artigo 18, parágrafo segundo, do Decreto-lei 157/67. Para tal entendimento, somente a autoridade administrativa, por meio do procedimento tributário, detém competência para aferir acerca da existência do tributo, além de determinar o seu valor. Para tanto, nutre-se esse entendimento das lições de Hugo de Brito Machado, para quem a exigência de prévio exaurimento da via administrativa, para que validamente possa ser proposta a ação penal, nos crimes contra a ordem tributária, é uma forma de fazer efetivas as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, que seria um induvidoso direito ao regular e prévio procedimento administrativo de acertamento. Ouso divergir. Disse bem a Ministra Laurita Vaz, no julgamento do HC /SP, DJe de 25 de outubro de 2013, que o crime de descaminho ser perfaz com o ato de iludir o pagamento do imposto devido pela entrada da mercadoria no país. Não se faz necessário a apuração administrativo-fiscal do montante que deixou de ser recolhido para a configuração do delito. Isso porque estamos diante de crime formal, e não material, razão pela qual o resultado da conduta delituosa relacionada ao quantum do imposto devido não integra o tipo penal. VI FATOS ASSIMILADOS A CONTRABANDO OU DESCAMINHO A primeira delas é a prática de navegação de cabotagem nas hipóteses fora dos casos permitidos em lei(artigo 334, 1º, a). A segunda hipótese é a pratica de fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou descaminho( 1º, b), como, por exemplo, o caso da saída das mercadorias da Zona Franca de Manaus, sem autorização legal, sem o pagamento de tributos, se o valor excede à cota que cada viajante pode trazer livremente(decreto-lei 288/67). A terceira hipótese, inserida no parágrafo 1º, c, é prevista para quem, vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza-se em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no país ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem.
5 Na terceira hipótese, do parágrafo 1º, c, a lei prevê um caso especial de receptação, que absorve o ilícito previsto no artigo 180, caput, exigindo-se a ciência da origem irregular da mercadoria(dolo direto), pois a dúvida exclui o delito. Volto-me a lição de Celso Delmanto e outros, quando aduzem que as expressões usadas comércio, exercido, indicam que deve estar presente na conduta o requisito da habitualidade, não se podendo falar em uma ou mais vendas esporádicas. Mas, parece-me, data vênia, de entendimento contrário, que este requisito não é necessário, bastando ter o agente uma atividade comercial ilícita ou irregular. Quarta modalidade da conduta típica é a de quem adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos, 1º, d. Mercadoria estrangeira, sem documentação fiscal, configura tal crime. VII O PROBLEMA DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE A matéria já foi discutida quando falamos da Súmula 560 do STF, que estabelecia que a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido estende-se ao crime de descaminho ou contrabando, por força do artigo 18, parágrafo 2º, do Decreto-lei Sabe-se que a Lei 6.910, de 1981, impossibilitou a extinção da punibilidade em razão de pagamento do tributo devido. No entanto, a Lei 9.249, de 1995, previu tal possibilidade ao estabelecer no artigo 343, que extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei 4.729, de 14 de julho de 1965, se o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes da denúncia. Na matéria, coloco a colação entendimento do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no julgamento dos Embargos Infringentes , onde se disse: De fato, apesar de situado no capítulo dos crimes praticados pelo particular contra a administração em geral, nota-se que o descaminho é uma fraude meramente aduaneira. Dessa forma, o tipo protege tão somente o interesse do Fisco, não restando atingidos outros interesses públicos. Esta é a tese esposada pelo ilustre procurador regional da República, dr. Juarez Tavares. Veja-se trecho do seu douto parecer:...o entendimento que abraçamos, mais condizente com a realizada e a estrutura da ordem jurídica, bem como com os fins que o próprio Estado se propõe para a sua política criminal, afora os dados da ordem econômica, é de que aqui há a salvaguarda tão-somente do interesse fiscal... (...). Assim, tendo havido o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, há que ser reconhecida a extinção da punibilidade nos termos do art. 34 da Lei 9.249/95, diante do parecer do MPF e dos aspectos fáticos do presente caso. Data vênia, se o crime não é intrinsecamente tributário, não se pode falar na hipótese de uma extinção da punibilidade pelo pagamento, que representaria uma absolvição sumária, à luz do artigo 397 do Código de Processo Penal. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, São Paulo, Atlas, 2006, pág ARAÚJO CORRÊA, Alfredo Pinto. O contrabando e seu processo, Rio de Janeiro, COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal, São Paulo, Saraiva, volume III, 1989, pág COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal, volume III, 1989, pág. 522.
6 RTJ 74/607; RT 469/437, dentre outros julgados. RF 275/284. Ap , DJU de 31 de maio de 1982, pág RT 555/421; RC 823, DJU de 17 de setembro de 1981, pág RT 841/502, dentre outros. HC /SP, Relator Ministro Celso de Mello. Anoto ainda outros precedentes, dentre outros: HC /SP, Relatora Ministra Cármen Lúcia, 1º Turma, DJ de 1/2/2011; HC ,/MT. Relator Ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 26/10/2010. AgRg no REsp /PR, Relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe de 14 de dezembro de RF 275/285. MACHADO, Hugo de Brito. Prévio esgotamento da via administrativa e ação penal nos crimes contra a ordem tributária. Revista brasileira de ciências criminais, São Paulo, 1996, pág. 231 a 239. DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado, São Paulo, ed. Renovar, 2002, pág RTJ 72/176. JSTJ 7/350.
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