Corpo, Pulsão, Gozo - Apresentação do curso no Campo Psicanalítico de Salvador 2016
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- Sofia Deluca Gama
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1 Corpo, Pulsão, Gozo - Apresentação do curso no Campo Psicanalítico de Salvador 2016 Marcus do Rio Teixeira "Que corpo? Temos vários." (O Prazer do Texto, 39) Tenho um corpo digestivo, tenho um corpo nauseante, um terceiro cefalágico, e assim por diante: sensual, muscular (a mão do escritor), humoral, e sobretudo: emotivo: que fica emocionado, agitado, entregue ou exaltado, ou atemorizado, sem que nada transpareça. Por outro lado, sou cativado até o fascínio pelo corpo socializado, o corpo mitológico, o corpo artificial (o dos travestis japoneses) e o corpo prostituído (o do ator). E, além desses corpos públicos (literários, escritos), tenho, por assim dizer, dois corpos locais: um corpo parisiense (alerta, cansado) e um corpo camponês (descansado, pesado). Roland Barthes, RB por RB, tradução: Leyla Perrone-Moisés A citação de Barthes ressalta a pluralidade dos corpos, a determinação cultural que lhe atribui diferentes sentidos. O estilo elegante do autor contrasta com a vulgarização que foi feita dessa concepção do corpo como determinado pelas diferentes leituras que a cultura nos impõe, chave-mestra supostamente capaz de abrir as portas para todas as questões. Para nós, aqui, trata-se de uma abordagem do corpo muito específica, aquela da psicanálise. Quando falamos de corpo na psicanálise estamos utilizando uma noção e não um conceito. Corpo, na psicanálise, é uma palavra que não tem a precisão de um conceito, o que não diminui sua importância, pois ele se articula a conceitos fundamentais como o de pulsão. Além disso, o corpo está presente na clínica, onde constitui um tema central nas mais diversas estruturas: Há o corpo despedaçado do bebê, anterior à aquisição do seu domínio e à constituição do eu, que Lacan situa no Estádio do Espelho; o corpo da histérica, palco do sintoma de conversão e que conduziu Freud a sua elaboração pioneira do sintoma; o corpo do psicótico, onde o imaginário se desliga do real e do simbólico, o que pode levar a imagem corporal a aparecer alhures, na forma do duplo; o corpo acometido pelo fenômeno psicossomático, o qual é resultante da fusão do par de significantes e que se distingue da conversão, pois não cede à interpretação; o corpo do adolescente, marcado pela transformação morfológica, fonte de embaraço e vergonha, etc. Estes são apenas alguns dos diversos temas clínicos onde o corpo ocupa um papel central e que pretendemos abordar. Essa diversidade de situações clínicas e questões teóricas torna necessário explicitar, antes de tudo, a que estamos nos referindo quando falamos de corpo, delimitar a abordagem dessa noção nas teorias de Freud e de Lacan, defini-la de forma precisa, evitando dessa forma nos referirmos ao corpo como no senso-comum: um dado evidente, cuja mera evocação responderia às questões sem necessidade da teoria. 1
2 O que entendemos por corpo? É comum que a interrogação se feche rapidamente sobre si mesma, uma vez que corpo é, na nossa cultura, a resposta última, aquela que viria obturar todo questionamento. Charles Melman, Nouvelles études sur l hystérie, Paris: Joseph Clims/Denoël, 1984, p.157. Porém, a referência imprecisa ou tautológica não é exclusividade do senso-comum. Vez por outra, escutamos referências ao corpo em autores do meio psicanalítico que partem de uma definição negativa, que dizem o que o corpo não é para Lacan, mas sem definir exatamente o que ele seria. Isso nos poupa de raciocínios tortuosos que escutamos por vezes como, por exemplo: Lacan não está falando do corpo quando ele está falando do corpo, etc. Ou então, que Lacan não está falando de corpo no sentido que a medicina fala do corpo. Bem, não creio que nenhum leitor de Lacan acredite que ele fala de corpo no sentido da medicina, como sistemas de órgãos regidos pela fisiologia, sem a participação da pulsão. Mas se se pretende com isso dizer que ele não fala do corpo de carne e osso, e sim de alguma espécie de corpo imaterial, intangível, nesse caso não sei o que isso poderia significar. Marcus do Rio Teixeira, Sem. de Introdução à Psicanálise, 2015, Sem. 10, A Angústia, Comentário da aula XV, Coisa de macho Disponível em Se, por um lado, é importante distinguir a abordagem teórica do corpo pela psicanálise daquela da ciência, que trabalha com a noção de organismo, é também indispensável definir com rigor a abordagem psicanalítica, mostrando que se a psicanálise não reduz o corpo ao organismo, ela tampouco lhe confere uma dimensão imaterial, inconsistente ou vagamente metafísica. Aliás, como veremos mais adiante, para Lacan a consistência é justamente a propriedade que define o corpo. Colette Soler, no seu Seminário intitulado L en-corps du sujet ( ), abre a primeira aula situando a importância do corpo na psicanálise: A psicanálise, apesar do seu nome, análise da psiquê, é uma prática no centro da qual se encontra a questão do corpo. Esta questão aí está desde o início, especialmente pelo sintoma histérico, sob a forma mais evidente da conversão. Ele aí está também, desde o início, pela noção de traumatismo sexual. Colette Soler, L en-corps du sujet, aula de 21/11/2001 Lacan retoma nos seus primeiros seminários a teorização freudiana do corpo habitado pelo sintoma. Nada na anatomia nervosa recobre, seja o que for, do que é produzido nos sintomas histéricos. É sempre de uma anatomia fantasmática [fantasística] que se trata. Lacan, Seminário 3, As Psicoses, RJ: JZE, 2ª Ed. revista, 2010, p Para Freud, essa concepção do corpo falante lhe permitiu elaborar a sua teoria do sintoma como uma fala (metáfora, dirá Lacan) a ser decifrada. Se o corpo fala, ele pode ser escutado. Articulação entre corpo e pulsão 2
3 Como dissemos acima, o corpo, apesar de não ser um conceito psicanalítico, articula-se a conceitos fundamentais. Destes, o principal é sem dúvida a pulsão, definida por Freud como um conceito fundamental da sua teoria. O corpo pulsional é uma teorização freudiana que estabelece um marco distintivo entre a concepção do corpo nas ciências e aquela da psicanálise. Ele se distingue radicalmente do que seria um corpo natural, não submetido às leis da linguagem, como aquele do animal. O corpo pulsional não é um corpo animal. O corpo pulsional é um organismo desnaturado. O fato - eis a hipótese de Lacan - de ser falante não deixa o animal humano ileso. Poderíamos dizer que o ser falante é um mutante na escala animal. Soler, Id., ibid. Em Lacan, a pulsão, portanto, não é mais um conceito de articulação entre o biológico e o psíquico, mas sobretudo um conceito que articula o significante e o corpo. Porém esse corpo não é o organismo, é uma construção que implica uma imagem totalizante, i (a), em cuja composição o olhar do Outro desempenha um papel importante. Marie-Christine LAZNIK, Por uma teoria lacaniana das pulsões. In: Claude Dorgueille (org.), Dicionário de Psicanálise - Freud & Lacan, vol. 1. Salvador: Ágalma, 1997 (3ª Ed.), p A retomada do conceito de pulsão feita por Lacan, sobretudo no seu Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise visa articular a pulsão ao significante, desvinculando-a da concepção energética freudiana. Nesse sentido, cabe destacar a forma como ele retoma os componentes da pulsão em Freud, particularmente o conceito de Drang (impulso, pressão) da pulsão, do qual ele destaca a propriedade de ser uma força constante. Além disso, é importante a introdução do seu conceito de objeto a no lugar do Objekt, o objeto da pulsão, desdobrando-o em quatro, segundo as pulsões: oral, anal, escópica e invocante. Na teoria de Lacan a pulsão o contorna. Contorna devendo ser tomado aqui com a ambiguidade que lhe dá a língua portuguesa, ao mesmo tempo turn, borda em torno do qual se dá a volta, e trick, volta de uma escamoteação. (Lacan, Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: JZE, 2008 (nova paginação), p A noção de borda enquanto fonte (Quelle) da pulsão é crucial para compreender a constituição das zonas erógenas e desempenha um papel central na clínica do autismo. Isso assume toda sua importância quando nos lembramos a que ponto, nas crianças autistas, essas zonas não fazem borda - seus lábios deixam escorrer a saliva, os esfíncteres não funcionam como tal. Isso por não terem sido zonas de investimento erógeno, por não terem sido tomadas num circuito pulsional. M-C Laznik, Id., ibid., p O que sobressai nessa primeira aproximação é a complexidade do conceito de pulsão, que não se deixa apreender em uma definição unívoca, uma frase curta, à maneira de um meme. Não devemos nos contentar com definições taxativas quando lidamos com conceitos psicanalíticos. Da mesma forma, o conhecimento da teorização lacaniana, que retoma o conceito freudiano articulando-o ao significante, não dispensa o estudo da pulsão na teoria de Freud. 3
4 Disjunção entre corpo e sujeito 1) O corpo nasce, cresce, envelhece e morre. Nesse processo, pode se reproduzir e gerar outros corpos. O sujeito não coincide com o nascimento do corpo: ele preexiste ao nascimento do corpo na fala dos seus pais, que o fazem existir na esperança de preencher a sua falta. Ele tampouco acompanha a idade cronológica do corpo: Freud destacou as questões infantis do sujeito, que independem da sua idade. Ele frisou ainda o papel do desejo infantil na produção do sonho - não apenas do sonho das crianças, mas de todo e qualquer sonho. O sonho também mostra que o sujeito está desperto enquanto o corpo dorme. Finalmente, o sujeito sobrevive à morte do corpo: nas falas, nas lembranças e nas referências daqueles que o sucedem. Eu enfatizo, portanto, de início, a disjunção do sujeito e do corpo que deveremos estudar em detalhes, que é fácil de perceber na experiência. [...] A disjunção com seu corpo é muito fácil de perceber: do sujeito se fala, quer dizer que se o representa pelos significantes antes de seu nascimento, o que quer dizer que um sujeito precede o seu corpo na cadeia que o conduz a seu nascimento. Poder-se-ia dizer: ele precede o corpo que será o seu enquanto representado pela cadeia. Mas, também, como vocês sabem - Lacan o desenvolveu bastante - o sujeito sobrevive a seu corpo. Ele sobrevive na cadeia de sua história, nos traços de si mesmo que vai deixar. Colette Soler, Id., ibid. Essa disjunção entre sujeito e corpo não reproduz de forma alguma aquela da religião, entre corpo e alma. Lacan, inclusive, ironiza a suposição de que temos uma alma, suposição que, segundo ele, deriva da nossa relação de exterioridade e de posse com o nosso próprio corpo. Ter relação com o próprio corpo como estrangeiro é, certamente, uma possibilidade, expressada pelo fato de usarmos o verbo ter. Tem-se um corpo, não se é ele em hipótese nenhuma. É o que faz acreditar na alma, e depois disso não há mais razão para se deter, e achamos também que temos uma alma, o que é o cúmulo. Lacan, Seminário 23, O Sinthoma, RJ: JZE, p ) O sujeito é pontual e evanescente; ele não é localizável no espaço. Lacan destaca o caráter pontual e evanescente do sujeito para mostrar que ele não está ali, dentro do corpo, no cérebro ou em algum lugar, como um homúnculo, mas é um efeito do significante e aparece nas produções do inconsciente - no lapso, por exemplo - sem que possa ser apontado. Outro fenômeno seguramente notável, esse sujeito que apareceu com a própria locução; locução que surpreendeu o locutor, esse sujeito que, portanto, apareceu por um instante, desaparece logo que a letra veio manifestá-lo, constituir seu signo no significante que ela veio desse modo perturbar. Em outras palavras, uma vez que o lapso é cometido, proferido, o sujeito (o autor) não está mais ali! E, na verdade, não há mais, obrigatoriamente, alguém que esteja pronto a assumir a responsabilidade, a endossá-lo para assegurar uma continuidade com esse sujeito que, por um instante, luziu, como se exprime Lacan. Luziu antes de se apagar, antes de se eclipsar com essa emergência da letra. Charles Melman, Para introduzir à psicanálise nos dias de hoje, PoA: CMC, 2009, p. 27. Já o corpo é tangível, ele tem consistência e ocupa um lugar no espaço. 4
5 Em todo caso vê-se, imediatamente, que um corpo, diferentemente de uma alma ou de um sujeito, está sempre localizado no espaço, pelo menos em nosso nível de percepção. Um corpo está em um só lugar e só em um, não tem ubiquidade qualquer que o faça deslocar-se ou que se possa deslocá-lo. Colette Soler, Id., ibid. O corpo no Estádio do Espelho A primeira abordagem do corpo na teoria de Lacan é aquela presente na sua teorização do Estádio do Espelho. Nessa teorização, Lacan trata da prematuração do organismo e interpreta o júbilo do bebê diante da imagem do seu corpo como uma antecipação do domínio desse corpo enquanto totalidade, concomitante à constituição do seu eu. A construção de Lacan é a seguinte: um problema real - o não acabamento genérico devido à prematuração - encontraria uma solução no imaginário, a imagem anunciando a totalização do organismo fragmentado, cuidando da deiscência vital; daí a jubilação, pensa ele. Ele supõe um mal-estar primeiro, real, e uma solução imaginária e pelo imaginário. Colette Soler, Id., ibid. No Seminário 22, RSI, Lacan vai definir o Imaginário de outra forma, não como a dimensão da imagem, mas da consistência. Para ele, o corpo na dimensão imaginária é o que consiste. Um corpo, tal como esse com que vocês se suportam, é muito precisamente esse algo que, para vocês, tem o ar de ser o que resiste, o que consiste antes de se dissolver. Lacan, Sem. RSI, aula de 18/02/1975 Para Soler: É a mesma fórmula, o corpo é imaginário, salvo que o imaginário não é mais somente a representação da forma. O imaginário é a consistência da forma, é toda uma outra coisa. Colette Soler, Id., ibid. Marie-Christine Laznik destaca a importância do estádio do espelho na clínica do autismo: Poderíamos então deduzir que a impossibilidade de uma instauração apropriada do estádio do espelho em uma criança, que consiste na não-assunção jubilatória diante de sua própria imagem, ou na não-demanda de reconhecimento (por exemplo, nessas crianças que evitam virar a cabeça para o adulto que as carrega) poderia ser uma falha deste reconhecimento primeiro? M-C Laznik, Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito pulsional - quando a alienação faz falta. In:. A voz da sereia: O autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, p p. 53. O corpo e o objeto a A ideia do corpo pulsional implica, para Lacan, pensar o corpo como sede dos objetos a.ou seja, não constituindo uma totalidade, mas enquanto um território onde o desejo vai recortar os objetos do qual o sujeito goza. Gozar é usufruir de um corpo. Gozar é abraçá-lo, é estreitá-lo, é picá-lo em pedaços. Lacan, Seminário 19,... ou pior. RJ: JZE, p. 31. O corpo erótico é 5
6 sobretudo um corpo sobre o qual o sujeito recorta o que constitui para ele o objeto a, o que confere ao fetichismo uma dimensão diversa da patologia. A respeito da articulação entre desejo e gozo Soler comenta, na sua conferência Desejo no singular, desejos no plural : Mas o desejo, rumo a que ele se dirige? Parece que ele se dirige ao parceiro, homem ou mulher. Mas, na verdade, ele se dirige ao mais-de-gozar que se aloja aí. E isso vale, inclusive, para a relação de corpo-a-corpo. [...] Para o homem, isso supõe identificar o parceiro ao objeto a e para a mulher, reduzi-lo ao falo. Colette Soler, Desejo no singular, desejos no plural, In: Stylus revista de psicanálise, RJ, nº28, junho 2014, p , p.16. Essa teorização - que, convém frisar, não é exclusiva da autora, mas é ponto de concordância quase unânime entre os autores lacanianos - situa o objeto a de duas formas: enquanto objeto-causa, na origem do vetor do desejo, e enquanto mais-de-gozar, recorte feito no corpo do(a) parceiro(a) que define aquilo de que se goza, e que é moldado sobre os quádruplos objetos da pulsão. A tese do corpo como sede do objeto a é fundamental para Lacan. No seu Seminário 20, Mais, ainda, ele retoma essa tese, que data na verdade do início da elaboração do seu conceito: [...] o que há sob o hábito, e que chamamos de corpo, talvez seja apenas esse resto que chamo de objeto a. Lacan, Seminário 20, Mais, ainda, 3ª Ed., RJ: JZE, 2008, p. 13. É o que o leva a dizer, logo em seguida, que o corpo é a-sexuado, expressão que na edição oficial do Seminário 20 foi transcrita como assexuado (Id., ibid., p. 14), o que dá margem a confusão. Nas edições não-oficiais desse Seminário, Lacan explica ao seu auditório: [...] escrevam como quiserem: a-sexuado, (a)sexuado, a/sexuado [...] ( LACAN, J. Le Séminaire, Livre 20 : Encore. Versão não comercial, elaborada a partir de várias transcrições. Aula de 21/11/72 Disponível em: < Acesso em: 12 maio 2013). O que Lacan diz é que o corpo é sexuado pelo objeto a, que a sexualidade do falasser não é definida pela genitalidade, mas por esse estranho objeto cuja lista heteróclita vai no sentido contrário ao da definição comum de sexo. Essa tese implica também pensar esses objetos de forma diversa segundo a identidade sexual do falasser e do pequeno outro a quem se dirige o desejo, ou seja, que os objetos mais-de-gozar para um homem não são os mesmos para uma mulher. Isso significa que o corpo tem aqui um papel importante, não como Freud pensava, no sentido de que a anatomia é o destino, mas de que tampouco é indiferente ter um corpo anatomicamente masculino ou feminino. O traço anatômico, nós o sabemos por toda a nossa experiência subjetiva e pela clínica, nunca bastou para fazer um homem ou uma mulher. Se Freud pôde dizer a anatomia é o destino, é à medida que o sexo da criança vai gerar um reconhecimento onde imaginário e simbólico vão se revelar necessários, indispensáveis para que essa identificação seja adquirida. Charles MELMAN, Para introduzir..., op. cit., p [...] o corpo real não deixa de constituir destino, ainda que a anatomia não faça o todo do destino, muito pelo contrário. Patrick DE NEUTER, Corpo. In: CHEMAMA, R.; VANDERMERSCH, B. (Org.). Dicionário de Psicanálise. São Leopoldo: Editora Unisinos, p p
7 A leitura que pretende autorizar-se da teoria lacaniana para afirmar que o corpo anatômico não tem nenhuma importância, já que a psicanálise fala do corpo pulsional ou do corpo fantasístico, é um sofisma rasteiro, que despreza pontos centrais da teoria e da clínica psicanalíticas. Trata-se de uma leitura oportunista feita por seguidores da teoria do gênero, sobretudo de Judith Butler, que pretendem encontrar um lastro teórico para suas teses na teoria lacaniana. Essa argumentação funciona através de uma hipérbole das teses lacanianas para chegar a conclusões que na verdade contrariam tais teses. Assim, afirma-se que uma vez que para Lacan o corpo não determina a identidade sexual, tanto imaginária quanto simbólica, logo o corpo não tem nenhuma importância. É nesse logo que reside o truque, a artimanha do argumento. Ele toma a teoria como um puro saber que responde a questões retornando sobre si próprio, ignorando a clínica ou tomando-a como uma mera consequência da teoria. Esse é o funcionamento que caracteriza o discurso denominado por Lacan como Discurso Universitário. Se, para a psicanálise, o reconhecimento do sexo anatômico pelo entorno da criança não é por si só determinante para a definição da identidade sexual, se a diferença anatômica precisa ser inscrita no campo do Simbólico como diferença de posições de gozo e no Imaginário enquanto conjunto dos traços que a cultura atribui a tais posições, isso não significa dizer que a diferença anatômica deva ser considerada como sem importância, mas que a alteridade dos sexos depende essencialmente das posições de gozo dos seres sexuados e não dos seus corpos. Porém, o real do corpo com o qual o falasser vem ao mundo sem que ele tenha escolhido não é algo irrelevante ou neutro. Marcus do Rio Teixeira, Notas sobre a teoria do gênero e a psicanálise. Disponível em Este breve resumo constitui uma prévia do que pretendemos abordar este ano. Os temas aqui comentados serão desdobrados em diversos subtemas de acordo com a sua relevância na clínica psicanalítica. Uma bibliografia fundamental será fornecida a seguir. Outros textos serão indicados ao longo do ano. 7
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