A CORAGEM COMO ELEMENTO DE CURA ONTOLÓGICA
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- Sofia Leão Abreu
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1 Anais do V Congresso da ANPTECRE Religião, Direitos Humanos e Laicidade ISSN: Licenciado sob uma Licença Creative Commons A CORAGEM COMO ELEMENTO DE CURA ONTOLÓGICA Pablo Fernando Dumer Bacharel em Teologia Faculdades EST dumerluterano@gmail.com CNPq ST 14 PAUL TILLICH Resumo: O presente artigo trata do ser humano que se pergunta por si mesmo, exige-se como ser e se nega a ser reduzido a uma coisa. O ser humano, como marca de sua existência, é um ser que se confronta com o não-ser e, portanto, ele se faz num processo de tornar-se, realizarse. O impulso do ser é um ato de coragem. O incondicionado, o absoluto, o infinito exige que o ser saia de uma situação estática e se lance para um estado de incerteza, de falta de lugar, um estado dinâmico. A coragem é o ato ontológico e ético do ser a despeito do não-ser óntico, moral e espiritual. A presente pesquisa pretende mostrar como a coragem é elemento de cura ontológica do ser alienado, discutir o problema da realização do ser e discutir o fundamento da coragem em diálogo com outros autores. Através de correlação entre o conceito de coragem em Tillich e a perspectiva terapêutica da logoterapia, da busca pelo sentido na ambiguidade humana, e discutindo com a realidade latino-americana da pergunta dos oprimidos por sentido a pesquisa quer elaborar uma aplicação do conceito de coragem como cura ontológica do ser alienado de si. Assim, projeta-se que a coragem é elemento de transcendência do indivíduo na formação de sua identidade, do encontro do sentido na paradoxalidade da existência, é elemento de segurança na ausência de segurança. Podemos afirmar, o ser existencial, possuído pelo absoluto, encontra o sentido de ser na falta de sentido da existência alienada, mediante o ato da coragem ontológica e assim agrega sua identidade diluída e fragmentada. Palavras-chave: Antropologia Teológica, Paul Tillich, Coragem de ser
2 A Problemática: análise antropológica A busca da identidade e do papel do indivíduo no mundo constitui-se uma problemática na atualidade. O ser humano questiona-se por ela, pois, percebe-se diluído de identidade própria, uma vez que esta é atribuída pelo seu contexto econômico, político e social que mina sua própria liberdade e escolha, como algo dado e, portanto, entra em conflito com o impulso próprio de realização. Além disso, o ser humano é envolvido numa série de rotinas que o exigem, ou seja, é absorvido pela máquina que gira e torna-se uma peça da mesma, uma coisa entre outras coisas, comercializada e instrumentalizada 1. A pergunta por identidade, ou seja, por autenticidade, realização própria, passa do quem sou eu? para ser ou não ser?, quando reconhece que sua existência é alienada, ou seja, dissociada de realização própria. Não é sua própria existência. A alienação se dá num processo de coisificação e uniformização dos sujeitos. Até mesmo a percepção de sua falta de realização e, assim, não-existência, é mais uma vez engolida, desta vez, não de forma econômica ou social, mas cultural, religiosa e ideológica. Afirma Girardi, a grande maioria das pessoas não pensa com a própria cabeça, não tem capacidade crítica. Todos somos vítimas da mais grave expropriação, cujo objeto é exatamente a autonomia intelectual, moral e religiosa; ou seja, a capacidade de definir autonomamente nossa identidade e o sentido de nossa vida 2. Sob tal problemática, urge a pergunta de como o ser humano, o sujeito, pode realizar-se, enquanto indivíduo, ou seja, enquanto autêntico, dotado de identidade própria, pessoal, plena e realizada. A Discussão: em busca de algum sentido 1 DUSSEL, Enrique D. Método para uma Filosofia da Libertação: superação analética da dialética Hegeliana. São Paulo: Loyola, 1986, p GIRARDI, Giulio. Teologia da Libertação na Nova Ordem Mundial. Crise da esperança e crise da Teologia. In: SUSIN, Luiz Carlos (Org) Sarça Ardente. Teologia na América Latina: Prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 35.
3 Ao mesmo tempo em que não falamos de um ser humano pronto, imutável, uma vez que é produto histórico 3, também não falamos de uma história acabada, imutável. Ao mesmo tempo em que o ser humano reconhece que vive um projeto que não é seu, ele também percebe a si como um alguém que não se confunde com o mundo, mas é capaz de reconhecer ao mundo e a si 4. Toda sua relação, então, é dialética. As certezas do mundo imutável da pré-modernidade ou a certeza diante do progresso da modernidade, diante da força do discurso, esvai-se numa nova realidade de falência dos discursos. E esta vacuidade de sentido, a ausência completa de certezas, a contingência da dúvida, ou, em outras palavras, este niilismo, é a principal manifestação de angústia da atualidade 5. É o que Tillich chama, em A Coragem de Ser, de angústia espiritual, ou seja, ansiedade diante da vacuidade e insignificação 6. A logoterapia, corrente da psicanálise alternativa ao modelo freudiano, entende o ser humano como regido pela realização de um sentido 7. A busca do sentido não é uma forma de fuga do sofrimento ou uma aceitação resignada do mesmo, mas um ato de coragem sobre o sofrimento onipresente na vida, assim, a busca do sentido não consiste em obter prazer ou evitar a dor, mas antes em ver um sentido em sua vida 8. A dignidade diante do sofrimento é um ato de coragem que permite ao ser humano transcender o sofrimento 9. Para o existencialismo o ser humano é sempre um ainda-não que será, uma não-totalidade, ou uma totalidade inacabada, ou ainda, uma totalização-em-curso, ou seja, uma perpétua totalização em busca de uma totalidade que nos falta (o nosso si propriamente dito) 10. A filosofia existencialista entende, ainda, que a ação (ou a 3 MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 6. ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2011, p FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. 32. ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 2012, p TILLICH, Paul. A Coragem de Ser: Baseado nas Conferências Terry Pronunciadas na Yale university. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p FRANKL, 2012, p FRANKL, 2012, p FRANKL, 2012, p PERDIGÃO, Paulo. Existência e Liberdade: Uma introdução à filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 44.
4 realização) do ser humano no presente é determinada pelo futuro 11. O futuro é pulsão da vida, vontade. É um lançar-se ao não-ser, num movimento de transcendência, que se opõe a redução como coisa, e um tornar-se ser de sentido e significado. Mas sob que fundamento pode estar alicerçada esta coragem, uma vez que as certezas diante de si mesmo ou da história e mundo estão descartadas? O Elemento: a coragem de ser Analisada e discutida a situação do ser humano, apresentamos o conceito, já dado no cabeçalho, de Coragem como elemento de cura ontológica, ou seja, como elemento de superação da fragmentação da identidade do ser humano, o que possibilita sua realização. Tillich define a Coragem como auto-afirmação a-despeito-de 12, ou seja, a despeito da angústia, da incerteza. A Coragem possui aspecto ontológico e ético. Deve ser entendida em sua dupla definição, como ato ético e afirmação do ser, ou seja, a busca pela identidade. Ela é um elemento de decisão e, portanto, ético, e ao mesmo tempo um elemento que agrega a própria estrutura do ser 13. A definição, tanto ética como ontológica da Coragem, corresponde, pressupõe e conduz necessariamente uma à outra 14. A Coragem é a possibilidade do ser a despeito das incertezas. Dietrich Bonhoeffer, teólogo que viveu no contexto do totalitarismo nazista e seu projeto alienante que expropriava a consciência do povo alemão, fala a respeito de uma coragem que enfrenta a incerteza em seu livro Discipulado. Ele diz que o discípulo, ou seja, aquele é atingido por esta coragem, é arrancado de sua relativa segurança de vida e lançado à incerteza completa (i. é, na verdade, para a absoluta segurança e proteção da comunhão com Jesus) 15. A percepção do indivíduo de ausência de certezas e, portanto, de segurança, não impossibilita, ao contrário, revela o sentido 11 PERDIGÃO, 1995, p TILLICH, 1972, p TILLICH, 1972, p TILLICH, 1972, p BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 11. ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2011, p. 21.
5 último que emerge da dúvida e da insegurança. O fundamento da coragem de ser emerge como um não lugar, um limite, um inconceitual, mas como potência que tudo atinge 16. Coragem, dessa forma, assemelha-se a fé na tradição cristã. A fé, entretanto, não é a crença em algo inacreditável 17. Isso seria um reducionismo do que seria a fé. Em Tillich, fé não é uma afirmação teórica, de algo incerto; é a aceitação existencial de algo que transcende a experiência ordinária. A fé não é uma opinião, mas um estado 18. Nessas palavras, Tillich resume a concepção de fé como um estar possuído pelo serem-si 19, por aquilo que toca o ser humano de forma incondicional 20. O ser todo é requerido pela fé. Em outras palavras, a Coragem requer não só o raciocínio, mas o ser inteiro em seu ato ético e ontológico. Esse estar possuído pelo ser-em-si é o conteúdo da Coragem, que permite que o lançar-se à incerteza não se torne um salto suicida, uma coragem niilista, que desafia tudo e todos. Esse ser-em-si é o fundamento do ser, é Deus 21. Esta fé esta muito mais próxima a uma experiência com e de Deus que a uma noção de Deus. É uma fé existencial. Para Tillich, Deus é a resposta à pergunta implícita na finitude do ser humano; ele é o nome para aquilo que preocupa o ser humano de forma última 22. Deus, em Tillich, é o incondicional. Esse incondicional é o elemento de insegurança que vai de encontro a toda falsa segurança. O incondicional é o fundamento e o abismo de todo o ser. A Cura: o processo libertador da alienação Até aqui descrevemos a Coragem como elemento de cura do ser, isto é, seu aspecto ontológico de auto-afirmação. Sobre o processo, ou pistas do uso do conceito 16 TILLICH, 1972, p TILLICH, 1972, p TILLICH, 1972, p TILLICH, 1972, p TILLICH. Paul. Dinâmica da Fé. São Leopoldo: Sinodal, 1974, p MUELLER, Enio R. O Sistema Teológico. In: MUELLER, Enio R., BEIMS, Robert W. (Orgs). Fronteiras e Interfaces: O pensamento de Paul Tillich em perspectiva interdisciplinar. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2005, p TILLICH, 2011, p. 219.
6 de Coragem como elemento de cura ontológica 23, queremos abordar agora. Não existe um método de cura ontológica, o que poderia dar-se a entender quando dizemos processo. Tampouco, Coragem se refere a heroísmos e/ou a ascetismo moral. Trata-se, antes, de um anseio de viver e de sobreviver, do que o teólogo salvadorenho Jon Sobrino chamou de santidade primordial 24. Não se trata de uma santidade da virtude, ou seja, da força, mas do sofrimento 25, que é a própria condição do ser humano alienado. Diante do sofrimento, da alienação, é comum que as pessoas fujam de seu enfrentamento. A expressão honradez com o real de Sobrino convida a teologia a deixar a realidade ser o que é 26, sem manipulá-la ou maquiá-la. Isso significará reconhecer e assumir a alienação. A realidade precisa ser assumida e aceita, este é o primeiro passo numa cura d alma libertadora, numa cura d alma da Coragem. Isso é o contrário de fuga. O Aconselhamento a partir da Coragem deve chamar a pessoa de volta à realidade, apresentá-la à sua real situação e lhe convocar honradez, honestidade 27. Assim começa a formação de identidade autêntica. A Coragem de ser é potência de ser. Este poder propulsionador de vida é caracterizado por Tillich através do amor e amor é unir o que está separado. A reunião pressupõe separação daquilo que estava essencialmente junto 28. Amor é superação da alienação, da fragmentação da realidade e do sujeito. A cura da alienação é superar o estado de ausência de identidade própria e última, que se dá pela dubiedade da identidade, entre a determinação alienante e o impulso próprio de realização. Cura ontológica, portanto, é re-unir as partes. A alienação é superada pela empatia, pelo amor, pela solidariedade, pela reunião, ou, podemos dizer, pela reconciliação. É preciso resgatar a empatia consigo mesma, é preciso que ela possa perdoar a si própria. O elemento perdoador salva da 23 Nota: Pensa-se a palavra cura em referência direta a palavra alemã Sorge, presente em Seelsorge, cura d alma, ao invés da palavra Heilung. 24 SOBRINO, Jon. Onde está Deus?: Terremoto, terrorismo, barbárie e utopia. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p SOBRINO, 2007, p SOBRINO, 2007, p KIERKEGAARD, Søren A. O conceito de angústia: Uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário. Petrópolis: Vozes, 2011, p TILLICH, Paul. Amor, Poder e Justiça. Análises ontológicas e aplicações éticas. São Paulo: Novo Século, 2004, p. 36.
7 autocondenação e do desespero. O elemento dado proporciona um centro espiritual que une os elementos de nossa própria pessoa e torna o poder, inteiramente sozinho, possível 29. Este poder de ser, o sentido último e identidade última, tem uma raiz mais profunda. Não o indivíduo que paira num vácuo de sentido, mas justamente o que participa do poder que fundamenta sua coragem de ser; a coragem é pessoal, mas não solitária 30. O perdão que realiza a identidade está expressa na confiança protestante da justificação pela fé, definida por Tillich como aquêle que é inaceitável é aceito de forma incondicional 31. Aceitar a aceitação é reconhecer uma identidade última que emerge onde todas as formas de identidade que encontram sob a dúvida: ser aceito por Deus, ser alguém para Deus. O encontro da identidade, portanto, não é nem a formação da identidade pela expropriação do ser (heteronomia), nem mesmo um ato solitário (autonomia), mas é a realização pela participação no sentido último incondicional, a despeito da angústia de ser. Considerações finais A pesquisa parte de um reconhecimento de que o mundo contemporâneo tende a transformar pessoas em coisas, números, peças da máquina, que o ser humano vêse destituído de uma identidade própria, plena, realizada. Reconhece, assim, um problema ontológico. Discute essa percepção e apresenta o conceito tillichiano de Coragem como elemento de cura ontológica. A coragem arranca o ser humano de sua (falsa) segurança e o joga em meio à insegurança. Está longe de ser uma zona de conforto. Ao contrário, Coragem de ser é um processo dinâmico. Não se trata também de uma aceitação resignada da alienação, mas sua superação. O contexto contemporâneo de objetificação de toda a realidade se coloca como um desafio à teologia a ajudar os sujeitos a encontrarem sua realização, a superação de sua alienação. O poder que supera a alienação não domina, mas aceita, e não poderia ser diferente. O sujeito, por outro lado, não se dilui nesse poder, mas participa 29 TILLICH, 2004, p TILLICH, 1972, p TILLICH, 1972, p. 128.
8 do mesmo, realizando-se como ser. A cura ontológica, que se dá a partir da coragem de ser, interpela-se como um tema desafiador para a Antropologia Teológica na atualidade. Referenciais BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 11. ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, DUSSEL, Enrique D. Método para uma Filosofia da Libertação: superação analética da dialética Hegeliana. São Paulo: Loyola, FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. 32. ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, KIERKEGAARD, Søren A. O conceito de angústia: Uma simples reflexão psicológicodemonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário. Petrópolis: Vozes, MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, MUELLER, Enio R., BEIMS, Robert W. (Orgs). Fronteiras e Interfaces: O pensamento de Paul Tillich em perspectiva interdisciplinar. São Leopoldo: Sinodal/EST, PERDIGÃO, Paulo. Existência e Liberdade: Uma introdução à filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM, SOBRINO, Jon. Onde está Deus?: Terremoto, terrorismo, barbárie e utopia. São Leopoldo: Sinodal, SUSIN, Luiz Carlos (Org) Sarça Ardente. Teologia na América Latina: Prospectivas. São Paulo: Paulinas, TILLICH, Paul. A Coragem de Ser: Baseado nas Conferências Terry Pronunciadas na Yale university. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, TILLICH, Paul. Amor, Poder e Justiça. Análises ontológicas e aplicações éticas. São Paulo: Novo Século, TILLICH. Paul. Dinâmica da Fé. São Leopoldo: Sinodal, TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 6. ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2011.
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