O processo de composição da personagem Célia do espetáculo Jardim das Espécies a partir do conceito pré-expressivo
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- Maria Vitória Vilaverde
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1 O processo de composição da personagem Célia do espetáculo Jardim das Espécies a partir do conceito pré-expressivo Lyvia Marianne Chagas Rabello 1, Lourdes Macena 2. 1 Graduanda do curso Lic. em Teatro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará IFCE. lyvia_marianne@hotmail.com 2 Doutoranda e profª do curso Lic. em Teatro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará - IFCE. lumacena@ifce.edu.br Resumo: A preocupação com a preparação corporal para a construção de um espetáculo teatral é comum a todos aqueles que constroem uma peça. No espetáculo Jardim das Espécies não foi diferente, buscando a preparação que mais se adequasse a proposta cênica, encontramos no conceito de préexpressividade a preparação corporal que se encaixava com a linguagem do espetáculo. Sendo esse artigo focado em como esse conceito ajudou na construção da personagem Célia. Esse estudo teve como metodologia a analise de material bibliográfico, aliada a pesquisa participante e observações de práticas corporais. Palavras chave: jardim das espécies, pré-expressivo, preparação corporal. 1. INTRODUÇÃO A preparação para a construção da personagem deve ser um dos pontos de maior atenção e dedicação, independente do espetáculo, pois ela é indiferente à estética teatral, é útil em todas as linguagens, e no espetáculo Jardim das Espécies 1 houve uma preocupação direcionada para o trabalho pré-expressivo das atrizes, pois a obra citada trabalha com a ideia da direta intervenção do público e isso causa sempre uma sequência de respostas diferentes, situações distintas a cada apresentação, tudo sempre é novo. A situação de improviso está sempre em eminência de acontecer. Como é de praxe afirmar no meio teatral que no teatro todo dia de apresentação é ímpar. Esse comentário é plenamente aceito, porém quando se diz que cada apresentação é uma surpresa, é compreensível interpretar que quando interagimos com o público utilizando de técnicas de improvisação, a situação vivida não é marcada, muito menos esperada, não se sabe o que vai ser encontrado ao tirar esse público de sua situação cômoda de observador-passivo e inseri-lo dentro do espetáculo como uma parte fundamental dele, agindo como um personagem daquela história e consequentemente com o poder de modificar o rumo da cena. Também há o fato de que o espectador está mais perto que o normal do espaço cênico, pois quando ele não está inserido diretamente em cena, ele está tão próximo que se pode assemelhar a sua presença a de outros personagens. O espectador está tão vivo quanto às atrizes que fazem o espetáculo Jardim das Espécies, por isso, em hipótese alguma as atrizes podem perder a sua presença. E tendo essa consciência a preocupação voltou-se para o como e onde podemos encontrar essa preparação, como se apropriar dessa energia 2 para manter a personagem viva, como construir esse estado de agir e reagir com organicidade sem perder a presença e consequentemente manter a personagem mesmo dentro da improvisação. Dentre tantas possibilidades, foi encontrado no trabalho de pré-expressividade 3 o meio para construir esse estado. É conceito este que iremos explicitar. 1 Jardim das Espécies, é uma peça encenada pelo EmFoco Grupo de Teatro em Fortaleza-CE. 2 O conceito de energia pode ser compreendido como força, vigor. Quando se estende ao conceito de artes cênicas este se prende ao significado de energia como presença cênica, a integração total de corpo à emoção que está sendo trabalhada. 3 Pré-expressividade é aquilo que vem antes da expressão, da personagem construída e antes da cena acabada. É o nível onde o ator produz e, principalmente, trabalha todos os elementos técnicos e vitais de suas ações físicas e vocais. (FERRACINI, 2003)
2 2. MATERIAIS E MÉTODOS A pesquisa já tinha o foco, um ponto a ser alcançado e agora era a hora de trabalhar na prática o corpo, vivenciar, ter a experiência corpórea do que é esse fenômeno da pré-expressividade. O diretor do espetáculo Eduardo Bruno, sempre trouxe para os ensaios exercícios que trabalhasse a préexpressividade. Exercícios como pistão e rolamento, o aquecimento orgânico, aquele que se deve rasgar a musculatura passando pelos três planos, baixo, médio e alto. Exercícios que trabalhassem os princípios técnicos pré-expressivos individualmente ou de forma que abrangesse a todas segmentações do conceito pré-expressivo que serão citadas adiante. Também foram lidos textos que ajudassem o entendimento do tema pré-expressividade. Peças teatrais foram assistidas e comentadas para também observar na prática esse conceito aplicado e analisá-los. A participação nas aulas da cadeira de Interpretação III, ministradas pelo professor Tomaz de Aquino foi outro meio de contato com o tema. Esse processo metodológico constitui-se, primeiramente num levantamento bibliográfico, focado em autores que estudam o tema como Eugenio Barba, Luís Otávio Burnier, Renato Ferracini entre outros. Posteriormente, através do método de pesquisa participante houve o estudo do tema na prática, ou seja, vivenciamos o conceito corporeamente, analisando-o a partir da nossa realidade. A pesquisa participante caracteriza-se (ROCHA,2004, p.1) [...] relação entre a teoria e a prática na busca da sua interação dialética o que significa trabalhar na perspectiva da práxis... É importante ressaltar que as autoras tiveram a preocupação de não prejudicar a idoneidade dos resultados das pesquisas ao utilizar essa técnica como um dos métodos de pesquisa deste trabalho. Além disso, observamos as companheiras de grupo e os colegas de sala fazendo associações ao tema. Por fim assistindo espetáculos analisando-os sobre a existência ou não do conceito na sua execução. 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO Após o primeiro contato com a teoria da pré-expressividade foi encontrado nesse conceito o caminho para a preparação que gostaríamos para o espetáculo. O pré-expressivo trabalha o antes da cena, o antes da ação ou expressão, e busca a presença física na representação organizada. O ator que não procura essa preparação pré-expressiva muitas vezes não é interessante cenicamente. Sua atuação torna-se comum e dentro do conceito de representação o que é colocado no palco nunca deve ser comum, pois o cotidiano já se vê no nosso dia-a-dia. Para o palco é necessário o extracotidiano, e a preparação pré-expressiva nos trás essa energia extracotidiana 4. A representação organizada pode ser divida em níveis onde a pré-expressividade é o primeiro deles, como cita Ferracini: [...] a totalidade de representação de um ator é constituída de níveis distintos de organização. Partindo desse pressuposto, podemos dizer que existe um nível básico de organização, comum a todos os atores, e anterior à expressão em si. A esse nível básico de organização poderíamos denominar pré-expressividade. (FERRACINI, 2003, p.99) O pré-expressivo não se preocupa com a expressão artística em si, mas sim com o que a torna possível, portanto o pré-expressivo é a base do trabalho não interpretativo do ator. É com esse nível de operação que o ator busca trabalhar de maneira técnica e orgânica suas ações físicas e vocais e também a dilatação corpórea, e a capacidade de manipulação de suas energias. Essa base préexpressiva é um nível de organização fundamental para o teatro. Eugenio Barba confirma isso quando afirma (BARBA, 2009, p.25) A capacidade de concentrar-se no nível pré-expressivo possibilita uma ampliação do saber como consequência sobre o plano prático ou sobre o plano crítico e histórico.. 4 Energia extracotidiana é aquilo que se chama de técnica, uma qualidade que torna o corpo teatralmente decidido vivo crível. (BARBA, 2009, p.25)
3 O pré-expressivo é dividido em princípios que juntos formam esse conceito. Dilatação corpórea, equilíbrio, oposição, base, olhos e olhar, equivalência, variação de fisicidade, manipulação de energia, precisão e impulso, são os princípios do pré-expressivo. Esse conceito ajuda o ator a desenvolver a capacidade de reagir as modificações sem perder a dilatação corpórea, o que torna o corpo teatralmente decidido independentemente da situação. E é esse estado que foi buscado para compor a personagem Célia, nunca deixar de estar perceptível e interessante cenicamente. O treinamento pré-expressivo é visto como uma qualidade. Ele pode ser notado como a ponte que ator atravessa para alcançar novos caminhos práticos e corpóreos. Vemos o espetáculo Jardim das Espécies como um desses novos caminhos e para esclarecer esse comentário discorrermos sobre o que é o espetáculo. O Jardim das Espécies tem uma mistura de linguagens teatral, onde trabalhamos com os conceitos de performance, teatro físico, teatro do real, naturalismo e épico. Juntamos tudo e reinventamos a estética do nosso espetáculo, criando assim uma identidade para grupo. Vemos isso como um novo caminho, não que tenhamos inventado algo novo, temos a plena consciência que não, mas esse é um novo caminho para nós atrizes e diretor do espetáculo. São caminhos que são ainda totalmente desconhecidos para nós. Utilizamos da preparação pré-expressiva para alcançar esse caminho sem muitos tropeços. Voltando ao espetáculo, a proposta é ser encenado num espaço não convencional teatralmente, mais especificamente em uma casa. É uma peça mais intimista que tem um número pequeno de público devido a limitação de ocupação do espaço. Trabalhamos com a ideia de que a plateia é uma visita, um amigo, e que por desejo do destino, acabam presenciando fatos da casa e de seus habitantes. Esses habitantes são mulheres que como todo ser humano inserido na sociedade tem algum tipo de loucura, mas até que ponto isso passa ser realmente patológico? O público ora está como um fantasma que assiste a tudo num camarote privilegiado e ora está dentro dele. Como o amigo que veio para uma visita cordial, interagindo diretamente com as personagens e influenciando no curso da história, é criado um frágil elo que cabe as atrizes lutar para manter isso firme e intacto. Resumindo, a ideia do espetáculo pode ser descrita nessas palavras de Artaud (1999, p.131), O próprio [...] não será redigido, fixado a priori, mas em cena; será feito em cena, criado em cena, em correlação com a outra linguagem e com as necessidades das atitudes dos signos dos movimentos e dos objetos.. Conforme vimos acima isso justifica a preocupação com a preparação pré-expressiva das atrizes. Esse corpo cênico precisa estar em um equilíbrio perfeito, ou próximo disso, para responder sem dúvida a necessidade da cena, ou caso contrario o andamento da peça é comprometido e o elo de conexão com o espectador é quebrado. Além da interação das atrizes com o público também existe a relação com o espaço, devemos reagir as particularidades que o lugar impõe, adaptar. O local está tão presente e participativo quanto a figura do público, com o atenuante de que o lugar não sabe que as situações que acontecem ali na verdade é uma representação. Toda vez que apresentamos em um novo lugar, analisamos o espaço e criamos relações com o mesmo, literalmente nos ambientamos, trazemos elementos específicos do lugar para dentro da peça. Quando atuamos, além da necessidade de adaptar-se, também interferimos no fluxo do ambiente, quebramos a rotina do lugar. Em uma das cenas a personagem Célia sai da casa e vai para a rua, mas especificamente vai para próximo de uma escola, creche, berçário, um ambiente que lembre crianças. O primeiro passo a ser tomado nesse caso é reconhecer o lugar, saber onde é a escola mais próxima da casa, para inserir características do lugar na peça, e quando a cena está acontecendo é um dos momentos que o espaço mais dialoga com as atrizes. É por isso que vislumbramos a necessidade de buscar equilíbrio para estar em cena, de encontrar uma harmonia de energia e intenções. Essa capacidade de controlar a energia e a dilatação corpórea vem com o treinamento pré-expressivo, pois segundo o autor (BURNIER, 2001, p.20), [...] técnicas corpóreas precisas e codificadas de atuação, [...] levam o ator a um conhecimento e domínio primoroso de seu instrumento de trabalho e, por meio deste, de sua arte.. E como afirma o autor, o conhecimento e aperfeiçoamento da técnica elaboram o produto final, ou seja, a arte. Mas não podemos desejar uma encenação boa, se não desenvolvemos a base. Fazendo uma analise, percebemos um crescimento desde o início dos ensaios da peça, mas tudo começou a ficar mais claro e palpável e quando iniciamos os estudos práticos. É inegável o que o domínio da técnica pode fazer pelo ator e consequentemente pelo espetáculo.
4 O treinamento é muito exaustivo, mas com o tempo acaba-se adquirindo o preparo e resistência física tão necessária para o ator como Artaud afirma: O ator é uma atleta afetivo (ARTAUD, 1999, p.27). Era nos momentos de mais cansaço que tudo era mais intenso que quebravam-se os vícios e encontrava-se algo interessante. Existe uma cena no espetáculo que as atrizes fazem um bolo. Nunca pensamos que a simples ação de fazer um bolo poderia ser tão extracotidiana, mas tudo isso deve-se ao pensamento de que o ator e suas ações não devem ser somente um corpo sem intenções, mas um corpo-em-vida que a simples ação de fazer um bolo tenha o poder de tocar e modificar o outro. Isso só é possível a partir da pré-expressividade do ator, pois é ela que preenche a cena, que dosa a energia e a dilatação corpórea do ator, que toca quem está ao seu redor. Acreditamos que a preparação pré-expressiva para construir a Célia teve uma enorme importância, pois ela tem uma força interior, uma perturbação que não pode e nem deve ser vista em seu corpo. O que queremos dizer, é que ela não tem movimentos corporais grandiosos, eles são mais contidos. Essa perturbação deve ser exposta através da dilatação corpórea, incomodando pela sua força interior e não pelo excesso de movimentação. Célia carrega um peso invisível, mas sentido por todos que estão a sua volta, isso foi possível através dos princípios técnicos pré-expressivos. Temos certeza que se estivéssemos preparado essa peça sem o conhecimento teórico da pré-expressividade a força da personagem perderia a sua potência. Por meio dos elementos técnicos da pré-expressividade a personagem Célia é potencializa. Importante lembrar que não adianta de nada toda essa preparação se ao final a técnica ficar aparente, em um corpo mecânico. A criação só será realizada quando ambos, impulso criador e a modelagem, acontecerem. (Burnier, 2001, p.24). O autor alerta para a necessidade do estudo da técnica, mas que ela ao final de tudo não fique aparente. Que a potência criativa do ator torne tudo orgânico, como se não fosse estudado, proposital, pelo contrario que tudo parecesse natural, espontâneo. 6. CONCLUSÕES O espetáculo Jardim das Espécies é o resultado da união de colegas de sala do curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal do Ceará, possuíamos em comum o pensamento teatral e a confiança na força do espetáculo Jardim das Espécies, mas principalmente na capacidade das atrizes e diretor que se dedicam a essa peça. A peça nasceu do desejo do diretor do grupo em dialogar sobre a loucura, não a que encontramos em manicômio. Falamos da loucura que atinge a todo sociedade rotulada como normal, porém focamos o tema mais nas mulheres, onde fatores com a pressão do mundo moderno, o acúmulo de funções(mãe, esposa, e fonte de rendar do seu lar), pode ajudar a desenvolver essas insanidades. Queremos aproximar o público para que eles possam brincar e entrar em contato com suas loucuras, ou quem sabe até mesmo se identificar em uma das personagens. Observa-se que a construção das personalidades mesmo sem querer foi se encaminhando para uma assemelhação de características próprias atrizes ou nas mulheres próximas a nós como mães, tias, avós. A estrutura do espetáculo é de colagem, tudo isso para valorizar o conceito de presenciar um fato isolado de uma casa. Uma pergunta que traduz muito essa ideia é, se eu entrar agora na sua casa o que eu iria ver? Sendo o espetáculo itinerante, o público passeia por todos os cômodos da casa visualizando momentos. Momentos esses que mostrarão mentes fragilizadas, relações conturbadas, pessoas que encontraram nas suas loucuras a forma de camuflar traumas. Desde que iniciamos a encenação até a última cena nunca deixamos de estar atuando, tendo que dosar e manipular as energias corporais o tempo inteiro. Estando sempre em modo operante, nós corporificamos o psicológico de mentes fragilizadas e mantemos esse corpo preenchido cenicamente durante todo o espetáculo. Se não fosse pela conscientização e o trabalho pré-expressivo, muito provavelmente esse estado seria perdido com muita facilidade. Depois de introjetado o conceito e entendê-lo com a base para a atuação, levamos o conhecimento não só para esse espetáculo especificamente, levamos para o alicerce da interpretação das atrizes, sempre utilizando-o em futuras experimentações cênicas. Esse processo enriqueceu muito a peça, a técnica só veio acrescentar e refinar as interpretações. O pré-expressivo é um conceito de extrema pertinência prática, em uma das apresentações, quando a personagem Célia saiu perturbada andando pela rua, um taxista parou oferecendo ajuda, não podíamos quebrar e dizer que tudo não passava de uma encenação tínhamos que
5 seguir e reagir com a personagem, mantendo as energias e agindo como a situação pedia e foi nessa situações que a base pré-expressiva nos ajudou. Ao final toda essa preparação corporal, junto com a elaboração da estética do espetáculo, e a explicitação através deste artigo, tem como único intuito acordar a dimensão interior, tanto do ator, quanto a do espectador. A técnica do ator não pode ser somente mecânica, devemos torná-la humana para que permita estabelecer uma ponte de comunicação com o seu espectador, pois assim não fosse, ela seria só mais uma ginástica a preparar o corpo para uma atividade puramente física, o que evidentemente não é o caso. REFERÊNCIAS ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho. 2d. São Paulo. SP: Martins Fontes, BARBA, Eugenio. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. Trad: Patrícia Alves Braga. Brasília. DF: Teatro Caleidoscópio, BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas. SP: Editora Unicamp, FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas. SP: Editora Unicamp, ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo: teatro físico. São Paulo. SP: Editora Perspectiva, 2008.
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