GENTIL J.M. CARVALHO

Transcrição

1 by J.M. CARVALHO

2 1. SãO PAULO - CENTRO DA CIDADE - NOITE - EXTERNA Luiz caminha na direção de sua casa, pelo centro da cidade, quando vê um mendigo, sentado à frente de uma lotérica. Ajuda, senhor! Pra um golinho de cachaça? Luiz olha para Gentil, mas segue caminhando. De repente, ao pensar no que o mendigo disse, ele para e volta atrás. Você me pediu dinheiro pra beber? Sim, sou viciado. Quero uma cachacinha... Tá aí! Gostei! Foi sincero! Mas você não tá com fome? Também. Se for pra comer, eu te ajudo! É bom encher a barriga também. Vou buscar uma marmita aqui na padaria pra você. E o que você quer comer? Pode ser uma salada. Oi? Uma salada? É. Adoro salada. Cara, não é possível. De onde você surgiu? Não quer encher a barriga de arroz, feijão e carne?

3 2. Uma salada completa tá bom. Pode ser com macarrão. Adoro macarrão. Eu vou até acompanhar. Vem aqui comigo. Os dois caminham na direção da padaria. Gentil carrega um pedaço de papelão, uma mala suja e está de camisa, calça, botas e um boné esportivo. Ele está bastante sujo. Vou jogar esse papelão fora. Melhor. Vai ser estranho você entrar na padaria com ele. Gentil se livra do papelão. Eles caminham e conversam. É a minha cama... Eu percebi. Como você se chama? Gentil Ribeiro Rosa. Nome bonito... Gentil. Você é gentil? Nada... abandonei a minha família porque caí no vício da bebida. Isso não é ser gentil. Estar viciado é comum, do ser humano. Você pode sair dessa. Tem contato com sua família? Não. Faz três anos que moro naquele canto ali. Um dos meus filhos veio me ver uma vez. Gentil aponta para o outro lado da rua, abaixo de uma marquise.

4 3. (CONT'D) Ando com o papelão porque sempre me roubam. Mas não me meto em confusão. Meu problema só é a cachaça. Entendi. E onde sua família está? Em Osasco. Você não vai visitá-los? Não, eles me odeiam. Como não aguentei de vergonha e estava desempregado, eu vim pra rua. O que você fazia? Era músico! Toquei com o Jorginho da Viola e com o Amilton Cruz! Sério isso? Era violeiro dos bons! Uau! Que bacana! Aqui é a padaria. 2. SãO PAULO - CENTRO DA CIDADE - PADARIA - NOITE - EXTERNA O garçom anota os pedidos e os dois se olham. Luiz percebe que Gentil está emocionado. Eu não sei como te agradecer. Que Deus te abençoe muito pelo que está fazendo por mim. Você é cristão?

5 4. Sim! Sempre fui evangélico. Era evangelista na Assembleia. Pergunta qualquer coisa da Bíblia que eu sei! Meu pai é pastor. Todos da família são protestantes. A paz do Senhor! Amém! A paz do Senhor! Fico ainda mais feliz. Você tem muita luz. Nada. Sou tão normal quanto você. Também tenho minhas necessidades e adoro uma cervejinha. Até demais. Nem me fale em bebida. Hoje eu só quero a minha salada com macarronada! Deus é bom! Posso recitar um versículo pra você? Pode sim. "Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito". (Romanos 8:28). Gentil pega uma Bíblia na sua mala. (CONT'D) Leio todos os dias, toda hora. Não deixe de ler. Eu deveria ler mais a Bíblia... É o que me faz sobreviver...

6 O garçom chega com dois sucos de laranja, com três coxinhas para Luiz, com uma travessa de salada enorme e com outra travessa de macarronada a bolonhesa para Gentil SãO PAULO - CENTRO DA CIDADE - PADARIA - NOITE - EXTERNA Gentil devora a salada, enquanto Luiz o observa admirado com tamanho prazer. Achei que estivesse brincando quando pediu salada, mas pelo jeito... (MASTIGANDO COM VONTADE) Adoro cebola crua! Que figura! Você é daqui de São Paulo? Sou de Maringá. Poxa, que bacana! Descendente de europeus, com esses olhos azuis e esse cabelo loiro, eu imagino... Acho que sim... não sei... (continua comendo com vontade e para de repente) Se eu pudesse voltar pra lá, algum parente com certeza iria me ajudar! Mas você prefere voltar pra sua família em Osasco ou em Maringá? Ah, eu queria mesmo era voltar pra Maringá... (com lágrimas nos olhos) Lá eu era feliz. Tem muitos irmãos? Dez! Caramba!

7 6. Sou o caçula, o mais tonto... Nada. Acho você inteligente. Só é fraco pra bebida, imagino. Verdade! E como é dormir na rua? Ah, já estou acostumado... são três anos dormindo no papelão, comendo no bom prato e tomando banho no posto de gasolina ou nos albergues da prefeitura. E por que não dorme lá também? Impossível. Criei pânico de ficar com muita gente do lado. Não consigo dormir, então prefiro aquele meu canto. Hoje você vai dormir numa cama. Gentil olha para Luiz, um pouco surpreso. Não faça isso. Só hoje. Você vai tomar um bom banho quente, tirar a barba, vou te dar umas roupas minhas e você vai dormir na minha cama. Parece um sonho você falar isso. Hoje eu vou dormir no chão e você vai dormir na minha cama. Não faça isso! Só hoje.

8 7. Que Deus te abençoe muito e cada vez mais! Eu não tenho nem como recompensar SãO PAULO - CENTRO DA CIDADE - APTO - NOITE - INTERNA Gentil toma uma ducha com a porta do banheiro aberta. Luiz recolhe a roupa do mendigo com o nariz tampado. Pela mãe do guarda, rapaz! Vou jogar isso tudo fora, tudo bem? Obrigado! Luiz junta tudo e põe num saco de lixo. Quer que eu feche a porta aqui? Não precisa... olha essa tatuagem aqui? (mostrando o braço) Massa! Significa o quê? É a proteção de Deus... olha, tem dois anjos... um deles é você (e dá uma risada solta, mas logo fica sério) Eu já tomei banho de mangueira numa praça, uma vez... peladão... assim como estou agora... como é bom ficar pelado sem vergonha. Mas também, com uma jeba dessa, eu tenho é orgulho... Tô fora (e também dá risada, se afastando do banheiro) Gentil continua o banho e logo Luiz aparece novamente.

9 8. (CONT'D) Aqui tenho uma escova, um barbeador, espuma, desodorante, perfume e toalha pra você... aqui, uma roupa pra dormir. Escuta! Onde eu "tiver", eu vou sempre lembrar o que tá fazendo por mim... você é de Deus mesmo! Minha obrigação te fazer feliz por pelo menos um dia. 5. SãO PAULO - CENTRO DA CIDADE - APTO - NOITE - INTERNA Gentil está na cama, a TV está ligada e Luiz vem da cozinha. Deve fazer tempo que você não vê TV, né, Gentil? Luiz percebe que Gentil está dormindo profundamente e roncando muito. Luiz começa a separar umas roupas e objetos para o rapaz. Ele então pega um cobertor, cobre Gentil e pega outro para ele mesmo, põe no chão e dorme com um sorriso no rosto. 6. SãO PAULO - CENTRO DA CIDADE - APTO - MANHÃ - INTERNA Gentil... Gentil... acorda homem... Oi.. oi... desculpa... caí no sono... desculpa... Não, tudo bem... não tem problema. Mas eu preciso ir pro trabalho. Tá bem, vou me levantar e sair com você.

10 9. Coloquei um café na mesa. Come um pouco... Gentil vai direto para a mesa e come rapidamente, enquanto Luiz se arruma. (CONT'D) Você tem o que comer no almoço? Salada ué... tem coisa melhor? Tome um dinheiro pra comer também. Deus lhe pague, meu irmão. Luiz pega as coisas que separou. Isso é pra você. Eu vou trabalhar e quero te encontrar depois, por volta das sete, onde nos conhecemos... tudo bem? Estarei lá. Confie em mim. Vou aparecer. Mesmo se não aparecer. Já estou eternamente grato. Você não vai mais dormir na rua. Como assim? Se arruma... quer tomar banho? Não, vou te atrasar... Ok, então se arrume e saímos. Gentil pega roupas novas e as veste.

11 SãO PAULO - CENTRO DA CIDADE - NOITE - EXTERNA Luiz e Gentil se encontram na esquina onde se conheceram. Boa noite, meu amigo! Eu sabia que você ia aparecer. Tenho uma surpresa. Vem comigo... Pra onde vamos? Pra onde você mais quer ir? Não! (para) Vai me levar pra Maringá? Vamos pegar o metrô... só isso... (dá um sorriso). 8. SãO PAULO - RODOVIáRIA - NOITE - EXTERNA Luiz e Gentil chegam à rodoviária. Gentil dá um longo abraço em Luiz e o beija na bochecha. Aqui está sua passagem... Pensei que fosse mais perto. 10 horas de viagem! Pois eu não deixarei de sorrir um minuto sequer... vou ver tia Dora, seu Tonhão, meus primos... minha mãe! Que saudade da minha mãe... Sabia que a gente mora no meio do campo e só tem um telefone público lá? É mesmo? Vai me dar o número... sabe de cor? É , acho que é isso. (MORE)

12 11. (CONT'D) É só falar que todo mundo conhece minha família. Lá é a Estrada dos Rosa... chique... a estrada leva o nome da família. Chique mesmo! Um dia você vai me visitar. Vai comer bolinho de cachaça que minha mãe faz, o queijo que eu faço, vai me ouvir tocar viola... quero ver você lá. Pode deixar! Os dois se abraçam novamente. (FALANDO ALTO) Tchau, meu anjo! As pessoas que passam olham. Ele é meu anjo. Ele me salvou. Meu anjo... ele ali... Luiz é um anjo. Deus é bom. Deus é bom. Gentil entra no ônibus, todo sorridente. Ele acena para Luiz, que acena de volta. Ambos sorriem. É um dia a mais para Luiz, mas para Gentil, é o começo de uma nova vida. FIM