As descrições iniciais sobre o Brasil e a propagação dos ideais expansionistas. HÜBSCHER, Agnes 1



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Transcrição:

As descrições iniciais sobre o Brasil e a propagação dos ideais expansionistas HÜBSCHER, Agnes 1 RESUMO: Os primeiros registros sobre o Brasil e seus habitantes são feitos por escritores europeus. Constatamos que, além de serem poucos, algumas versões nunca foram impressas. As visões captadas são as mais variadas e dependendo dos objetivos e da linguagem utilizada por quem escreve, revelam concepções diferentes. Assim, longe de serem uniformes, ou mera literatura informativa, os relatos são frutos de posturas ideológicas e interesses que visam propagar os ideais da expansão. Para entender um pouco dessa diversidade de registros bem como da linguagem e enfoque utilizado, observamos a carta de Pero Vaz de Caminha, considerada a certidão de nascimento do país, juntamente com as obras de Pero Magalhães Gândavo, ambos portugueses. Gândavo, um alto funcionário português, foi um dos principais escritores do século XVI, considerado o primeiro historiador do Brasil. Ampliando a visão para escritores de outros países, que não exerceram uma relação tão direta sobre o Brasil como Portugal, destacamos o alemão Hans Staden, bem como os franceses Jean de Léry e Auguste de Saint-Hilaire. Este, incumbido de uma missão especial permanece no Brasil durante cinco anos percorrendo o vasto território, inclusive o Rio Grande do Sul. Jean de Léry é enviado pelo líder religioso Calvino, permanece no país durante um ano, período em que convive com os índios fazendo anotações a respeito se sua existência. Por fim, nosso objetivo foi verificar a relação entre as formações discursivas e a literatura do período em questão. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Registros; Índios. ABSTRACT: The first writings about Brazil and its inhabitants are done by European writers. We notice that, besides they are few, some versions never were printed. Recovered views are very much variable and, depending on the objectives and the language used by who writes, they reveal different conceptions. Thus, far from being uniform or just informative literature, the writings are products of ideological views and interests which aim to propagate ideals of expansion. In order to understand a little of this diversity of registers, as well as of the language e the approach used, we observe the Carta by Pero Vaz de Caminha, considered "Certificate of Birth of the Country", together with works of Pero Magalhães Gândavo, both Portuguese. Gândavo, a high Portuguese functionary, who was one of the most writers of the XVI century, considered the first Brazilian historian. Amplifying the view of writes of other counties, which did not do a relation so direct about Brazil as Portugal, we highlight the German writer Hans Staden, as well as the French ones Jean de Léry and Auguste de Saitn-Hilaire. This one, charged of a special mission remains in Brazil for five years, going throughout the extent territory, including Rio Grande do Sul. Jean de Léry is sent by the religious leader Calvin, stays in the country during a year, period in which he lives together the Indians, taking notes about their 1 Aluna do curso de Mestrado em Letras da UFSM.

existence. Finally, our objective was to verify the relation between the discoursive formulations and the literature of that period. KEY-WORDS: Literature, Writings, Indians. A IMPORTÂNCIA DOS PRIMEIROS RELATOS Os relatos sobre a chegada dos primeiros europeus em terras brasileiras considerados literatura informativa são as únicas fontes de informação sobre o Brasil daquela época. Daí que a maior importância reside no valor histórico, uma vez que fornecem aos leitores a primeira impressão dos colonizadores quanto à natureza e clima tropical brasileiro, bem como o retrato da ideologia da época. Além disso, há também o primeiro contato do europeu com os nativos indígenas locais, retratando-os. Embora contivessem um pouco dos dois gêneros: crônicas e memórias, esses escritos não resultaram de nenhuma intenção literária. Por se tratar de uma tentativa se descrever e catalogar a terra e o povo, os relatos são considerados por alguns críticos como manifestações paraliterárias. Para Antônio Cândido a formação da literatura só ocorreu por volta de 1750, antes, foram apenas manifestações literárias, e não literatura brasileira. Conforme Abdala Júnior e Campedelli (1990), os primeiros textos, obedeceram a finalidades práticas: informações sobre a terra, para facilitar a exploração colonialista; ou, ainda, à dominação religiosa, também motivada por razões políticas. DIFERENTES OBJETIVOS NA DESCRIÇÃO INICIAL DO BRASIL

Existem poucos registros sobre a visão inicial do Brasil, o que temos são versões captadas por europeus, que traduzem uma visão cristã intolerante, caricatural dos costumes indígenas e do novo território. Dentre os escritores portugueses, merecem destaque Pero Vaz de Caminha e Pero Magalhães Gândavo. A falta de interesse de Portugal em divulgar as descobertas do novo mundo pode ser explicada por várias razões, talvez a mais convincente seria a de não atrair o interesse dos concorrentes para as novas colônias já que sua maior preocupação era exploração. Algumas narrativas de Gabriel Soares de Souza e frei Vicente do Salvador, por exemplo, jamais foram impressas por conterem informações que poderiam atrair cobiça de outras potências coloniais européias. Alguns manuscritos permanecem inéditos até a segunda metade do século XIX, e até hoje os arquivos portugueses são locais privilegiados para a investigação de pesquisadores que esperam, através do estudo de novos documentos, lançar luz sobre aspectos ainda obscuros da colonização portuguesa no Brasil. (ARBEX, 2002:29). O principal representante da chamada Literatura Informativa foi Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral. É autor da famosa carta escrita para EL-Rei Dom Manuel, A certidão de nascimento do país sobre o achamento do Brasil. Sendo o rei de Portugal interlocutor, cujo interesse era obter dados político-econômicos, e não um público leitor consolidado, a importância do documento reside no seu caráter inaugural e inventivo. Considerar a carta como certidão de nascimento do Brasil é um tanto duvidoso, uma vez que a preocupação de Caminha não era nomear territórios ou identificar os seus habitantes. Ao contrário, tinha como principal objetivo político avaliar a viabilidade de colonização com fins

exploratórios. Conforme José Aderaldo Castelo, citado por Oliveira, (1999:18), a carta foi a primeira expressão do deslumbramento e ao mesmo tempo dos equívocos e intenções do colonizador português. Embora escrita nos primórdios do descobrimento (1500), a Carta de Caminha só foi impressa em 1817, na Corografia Brasílica, pela Imprensa Régia de Rio de Janeiro. Seu conteúdo básico era a descrição da terra, do clima, do potencial de obtenção de minérios e a possibilidade de submeter os indígenas a princípios de conduta europeus. O espírito mercantilista encontrável em Caminha inaugura a observação simpática dos costumes e das coisas brasileiras. Já na representação dos índios, Caminha demonstra perplexidade e estranheza pelas diferenças de costumes entre europeus e indígenas. Esse comportamento estende-se principalmente à nudez. Por outro lado, o indígena é considerado com uma valoração extremamente positiva, a ponto de tornar-se símbolo de origem mítica do país posteriormente, em obras como Iracema e o Guarani, de José de Alencar. A feição deles é serem pardos maneiras d avermelhados de bons rostros e bons narizes bem feitos. Andam nus sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas e estão acerca disso com tanta inocência como têm de mostra o rosto. Na descrição da paisagem brasileira, há também estranhamento em relação à vastidão da terra e a variação da fauna e flora supostamente exóticas. Entretanto, a visão preponderante é a presença de condições favoráveis para desenvolver uma política colonizadora. Conforme Jaime Ginzburg (2001), o olhar eurocêntrico está associado aos interesses imperialistas da política colonizadora.

Pero Magalhães Gândavo, outro português, autor das obras Tratado de terra do Brasil (1573) e História da Província de Santa Cruz (1576), foi um dos principais escritores do século XVI, considerado o primeiro historiador do Brasil. Por ser alto funcionário português, Gândavo teve acesso aos arquivos e documentações da época sendo que ocupou funções governamentais quando esteve no Brasil. A obra de Gândavo é um abrangente panorama da vida na Colônia, que ele expõe com empenho de protagonista. Sua visão sobre os índios é que são bárbaros, canibais, cruéis, beliciosos, vingativos e sensuais. Seriam fáceis de serem cristianizados. A missão do cristianismo seria salvar os índios e civilizá-los, acabando com as guerras. Como o objetivo era a defesa e apologia da política colonizadora da Coroa portuguesa, Gândavo procurou criar uma imagem das grandezas e merecimentos. Sugere as qualidades da terra, mostrando como sua temperatura é amena e o clima saudável para depois enumerar os mantimentos disponíveis, a caça e os frutos do Brasil. Conforme seu texto, as condições de vida na província de Santa Cruz eram muito melhores do que em Portugal, pois nenhum pobre anda pelas portas a mendigar como nesses reinos. Ao mostrar as riquezas e a possibilidade de enriquecimento na terra recém descoberta Gândavo incentivou a imigração para o Brasil. Hans Staden, por sua vez, foi um jovem alemão que veio ao Brasil trabalhando como artilheiro para Tomé de Souza. Foi aprisionado pelos Tupinambás ficando dois anos entre eles. Escreveu Duas viagens do Brasil (1557) que foi a quinta obra em alemão sobre a América e a primeira sobre o índio brasileiro. O volume foi depois traduzido para o flamengo, holandês, latim, francês e inglês. A primeira tradução para o português data do século passado, encomendada pela revista do Instituto Histórico e Geográfico.

A antropofagia é o motivo principal de seu livro, talvez até pelo interesse que o assunto despertava na Europa. Porém, tanto no texto principal quanto num relatório que acrescenta como arremate das viagens, ele apresenta vivas descrições dos costumes indígenas: onde e como moram, como acendem o fogo, a maneira que cozinham e o que comem, seus utensílios, sua destreza no manejo do arco e flecha e de outros instrumentos, como preparam a bebida e com ela se embriagam, no que acreditam, suas formas de guerrear. Conforme Bellomo in Flores (1994:68), Staden procura não emitir juízo de valor sobre o que descreve. O índio é visto como guerreiro por tradição, seus hábitos selvagens são suas tradições. Sua luta é uma reação à traição dos brancos. A causa central do conflito é a disputa pela terra entre portugueses e índios. Podemos dizer que os registros são relevantes, pois, Staden de fato conviveu com os tupinambás. Por outro lado, o fato de chamar a atenção para o motivo da luta que é a disputa da terra, revela um olhar de fora, sem objetivo de exploração. Igualmente centrados no cotidiano da vida indígena, os livros do calvinista francês Jean de Léry apontam uma percepção histórica mais apurada dos costumes nativos pelo fato do autor ser um homem culto, de formação humanista e, portanto, aberto às diferenças entre as civilizações. Movido por um espírito universalista, encara com simpatia os índios, relativizando moralmente certos hábitos que na Europa passavam por bárbaros. Léry permanece no país durante um ano (1557), como enviado do líder religioso Calvino, para servir ao vice-rei Nicolau D. Villegagnon. Este coordena o projeto fundador da colônia francesa na futura cidade do Rio de Janeiro. O objetivo dos textos escritos era provar ao rei francês (Henrique II) que os investimentos com vistas à colonização do Brasil eram compensatórios.

Léry tem a oportunidade de conviver (em liberdade) com os tupinambás, fazendo uma série de anotações interessantíssimas a respeito de sua existência. Seu texto Viagem à Terra do Brasil, escrito em francês, é considerado uma obra-prima. Teve edições em holandês, alemão e latim. Além de detalhar um significativo conjunto de costumes religiosos, medicinais, sociais (casamentos, funerais, educação dos filhos, etc.) e de mostrar certas práticas desconhecidas na época, entre os quais a preparação e o uso do cauim e do fumo, o viajante francês descreve com minúcias o ímpeto guerreiro dos homens tropicais, vendo as batalhas entre as tribos de forma quase poética. A antropofagia é também um dos temas predominantes da obra, sendo mostrada com uma riqueza de detalhes em muito superior à obra de Hans Staden. A visão abrangente e humanista do viajante francês leva-o não apenas compreender o nativo, mas também a apreciar a terra brasileira como um paraíso terreal. Em um de seus textos, Léry trata especificamente sobre o canibalismo, visto como uma cerimônia, um ritual que correspondia à aquisição de um status no seio da sociedade ameríndia. Conforme Zilá Bernd (1992), o texto de Léry é sensível a este sentido ritual: mas não comem a carne como poderíamos pensar, por simples gulodice, pois embora confessem ser a carne humana saborosíssima, seu principal intuito é causar temor aos vivos (Léry, 1980:200). No momento em que Léry compreende que o canibalismo é um ritual praticado somente em relação aos inimigos, ele consegue relativizar sua compreensão sobre o índio e considerar a prática dos selvagens brasileiros menos condenável do que a de seus compatriotas durante os massacres em guerras religiosas em que os irmãos se matavam.

Na visão de Bernd, apesar do uso de expressões como crueldade, massacre, ou assassinato para referir à antropofagia, e nações bárbaras e canalhas selvagens, aos índios, o texto de Léry apresenta um outro enfoque em relação aos escritores anteriores. De uma visão do outro como objeto, há uma mudança para uma percepção do outro como sujeito, diferente do eu. Bernd recomenda a releitura de certos textos inaugurais, sobretudo de autores franceses, pouco conhecidos por leitores brasileiros, por permitirem: uma melhor compreensão do caráter heterogêneo da formação cultural das Américas e, pela análise das visões do outro que deles emana, para esclarecer as relações centro/periferia que até hoje constituem o problema maior das literaturas das Américas constituídas sob o sistema colonial. (BERND, 1992:22). No que se refere à literatura dos padres jesuítas, observamos que seus textos aliam poesia religiosa e preocupação com a conversão indígena, a preservação dos costumes ibéricos bem como o avanço dos ideais contra-reformistas. Os padres são enviados ao Brasil com o intuito de catequizar os índios - nova perspectiva vislumbrada pela Igreja para ampliar sua dominação. Assim, por um lado, havia a preocupação da conquista material - principalmente ouro, prata, ferro madeira - e por outro, a preocupação espiritual resultante da Contra-Reforma. Posteriormente, com a chegada da Corte de Portugal que se instala no Rio de Janeiro, ocorrem uma série de transformações, como a abertura dos portos ao comércio e a chegada de inúmeros viajantes, o que ocasiona, conforme Sérgio Buarque de Holanda (1975: 13, 14), um redescobrimento do Brasil. Os inúmeros viajantes a aportarem no Rio de Janeiro teriam uma função considerável na criação de uma imagem de Brasil, uma vez que este olhar estrangeiro

acabaria por trazer ao habitante local um ponto de vista ignorado ou esquecido, reavivando um sentimento de pertencimento a um grande país. Nessa época chega ao Brasil o aristocrata alemão Auguste de Saint-Hilaire. Representante da França tem uma missão oficial com objetivos de pesquisar e recolher espécimes raras e desconhecidas. Saint-Hilaire percorreu mais de 15.000 Km entre 1816 e 1821. Na sua viagem pelo território do Rio Grande do sul viajou 2400 Km, fazendo anotações diárias referentes a espécimes da flora, ao clima, ao habitat. O viajante dedicou muito de seu tempo para analisar o caráter da população rio-grandense percebendo certos desvios sociais da formação histórica. Ele defende a superioridade racial dos brancos frente às raças negra e indígena. Os índios são em geral os homens mais frios e mais indiferentes que existem no mundo. Sua imprevidência pode originar-se de uma organização menos delicada que a nossa e é provavelmente uma rudez de órgãos que os torna ao mesmo tempo insensíveis à dor e aos males físicos. Os negros tão distanciados de nós são contudo superiores aos indígenas. Seu julgamento não é jamais tão correto quanto o nosso. Eles conservam qualquer coisa de infantil em suas maneiras, linguagem, idéias de futuro, vimos alguns que guardaram algum dinheiro, mesmo sendo escravos, enfim, eles não são incapazes de afeição e mesmo de serem generosos. (Cap. XIX, p.416). Estas considerações revelam um temor ao produto da mistura da raça e costumes de brancos com indígenas alegando que a mestiçagem causa desordem e retarda a adoção de costumes espanhóis. Assim, nesta província, os lares oferecem o exemplo da desunião e de toda espécie de desordens. Entregando-se às índias, os homens se embrutecem, tornam-se insuportáveis e estúpidos; disso tive muitos exemplos entre São Borja e São João. (Saint- Hilaire).

Por narrar o que vê, Saint-Hilaire difunde um inventário da natureza e da sociedade das regiões não-européias por onde passa. É responsável pelo alargamento das zonas de contato e da geração de representações sobre a natureza, a sociedade e cultura destas regiões. É evidente que este esforço não se deve apenas a uma consciência de missão científica ou a uma curiosidade, uma vontade de saber desvinculada de quais quer outros interesses. Em alguns trechos Saint-Hilaire trabalha com noções comparativas como o nosso (europeu) e o deles (brasileiro) sendo que o que é deles é atrasado e não civilizado. O outro é elaborado a partir dos valores, da lógica e da visão de mundo do autor. Percebendo as diferenças culturais entre os moradores de cada região por onde passou, Saint-Hilaire classifica essas diferenças em hierarquias cujos parâmetros são a cultura européia, civilizada, culta. O contato com o índio é visto como elemento degenerador do homem europeu e sua língua. O índio é considerado selvagem, pois não se deixava civilizar, não aceitava facilmente o contato com outros habitantes que foram se instalando em seus antigos territórios. Comparando a linguagem utilizada nos textos fundadores verificamos que o uso recorrente da figura retórica da comparação é uma característica predominante em todos os primeiros cronistas. Mesmo que a comparação fosse para exaltar a superioridade da América, o parâmetro era sempre estabelecido com a Europa o que demonstra o caráter etnocêntrico dos primeiros escritores. A linguagem e o discurso utilizado evidenciam a posição de quem está escrevendo e revelam a postura ideológica em questão. Diante desses relatos observamos que por traz da literatura informativa estavam interesses burgueses de consolidação de poder, busca de matéria primas, tentativas de expandir o comércio costeiro para o interior e apoderação de territórios. Ao lado do mero interesse em captar

e descrever peculiaridades do novo território, existiam intenções, formas articuladas na construção de representações e ações que favoreciam o processo expansionista. Sob esta perspectiva, podemos entender as razões das descrições degradantes sobre os índios, a ênfase em relação à riqueza da terra e as possibilidades de exploração. Isso evidencia que já naquela época as colônias foram alvos de formações discursivas que contemplavam os ideais colonialistas. Numa abordagem mais recente, este tema é discutido por Edward Said em Cultura e Imperialismo e Homi Bhabha O Local da Cultura. Este último aponta que: o objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com a base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução (HOMI BHABHA,1998:111). Said (1995:13), por sua vez, chama a atenção para a relação entre a narrativa e propagação de ideais imperialistas quando afirma: o poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos. Sendo a terra o principal objeto de disputa no imperialismo, a questão de quem teria o direito de explorá-la, até, por um tempo, era decidida na narrativa. Diante do exposto, empreendemos que o colonialismo vem de longe e, sem dúvidas, muito do que se afirma hoje a respeito das novas formas colonialistas caracterizam, por assim dizer, retomadas do que fora consolidado ao longo dos anos. Nesse sentido, levando em consideração a existência da relação entre a linguagem, isto é, o tipo de enfoque utilizado pelos cronistas, e a propagação dos ideais expansionistas, o papel da literatura é, justamente,

exteriorizar o discurso colonialista imbuído nas descrições e imagens criadas sobre o Brasil por esses escritores europeus. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABDALA JÚNIOR, B. e CAMPEDELLI, Samira Y. Tempos da literatura brasileira. São Paulo: Ática, 1990. ARBEX, Júnior. et.al. Cinco séculos de Brasil. São Paulo: Moderna, 2002. BHABHA, Homi. O Local da cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2003. BERND, Zilá. Literatura e Identidade Nacional. Porto Alegre: ed. da Universidade UFEGS, 1992. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira.São Paulo: Cultrix, 1994. CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1964, v.1. FLORES, Moacyr (org.). Negros e Índios, história e literatura. Coleção: História 2. EDPUCRS, Porto Alegre, 1994. GINZBURG, Jaime; KUHN, Fabio. Caderno Z.H. Cultura.18 de Agosto de 2001. LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. 3.ed. São Paulo: Pioneira, 1976. OLIVEIRA, C. Antônio; VILLA, Marco A. (org.). Cronista de descobrimento. Ed. Ática, 1999. SAID, W. Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.