Que Modelo de Organização para o Pós-Colheita do Algodão Agroecológico?

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Que Modelo de Organização para o Pós-Colheita do Algodão Agroecológico? BLOCH, Didier. Projeto Dom Helder Camara/ MDA / GEF/ FIDA, bloch.didier@gmail.com; LIMA, Pedro Jorge. Esplar, pedrojorge@esplar.org.br. Resumo O Projeto Algodão em Consórcios Agroecológicos iniciou em 2008, no bojo do Projeto Dom Helder Camara. Ele visa à expansão do cultivo do algodão, consorciado com milho, feijão e gergelim (entre outros), em cem comunidades do Semi-Árido Nordestino, ao longo de três anos. Um dos desafios é criar, junto com os agricultores, um modelo original de organização do beneficiamento e da comercialização. O texto toma como ponto de partida a experiência da ADEC no Ceará para, em seguida, apresentar o modelo atualmente em discussão no Projeto Algodão. Traz, por fim, sugestões para melhorar a sustentabilidade deste modelo. Palavras-chave: Semi-árido, orgânico, comercialização. Contexto O Projeto Algodão em Consórcios Agroecológicos começou em outubro de 2008, em cinco territórios do sertão nordestino. Faz parte da extensa rede comunitária, associativa e sindical do Projeto Dom Helder Camara (PDHC/MDA/SDT). Conta, também, com os conhecimentos acumulados pela equipe da Embrapa Algodão de Campina Grande (PB) e os dezoito anos de experiência da ONG Esplar, de Fortaleza, e da Associação para o Desenvolvimento Educacional e Cultural de Tauá (ADEC) no sertão cearense. (BLOCH, 2008) Seu propósito maior é mostrar que é possível expandir a cultura do algodão (Gossypium hirsutum) em sistemas consorciados, em mais de cem comunidades e assentamentos do semiárido, ao longo de três anos, com base na agricultura familiar e na agroecologia. Essa expansão deve se dar: melhorando a produção de alimentos como o milho e o feijão; cuidando do solo, da água e da biodiversidade; controlando pragas com protetores naturais como o gergelim (Sesamum indicum), o nim (Azadirachta indica) e biofertilizantes; comercializando a pluma e o caroço de algodão a preços justos (e, futuramente, torta e óleo de algodão). O consórcio agroecológico representa assim uma contribuição modesta, porém real para enfrentar a crise ambiental (recuperar solos, aumentar a biodiversidade, não usar fogo nem veneno), econômica (ampliar a geração de renda em áreas rurais pobres), energética e alimentar (ofertar caroço para a produção de biodiesel sem afetar a segurança alimentar). Os principais desafios dizem respeito à formação de técnicos e agricultores, à produtividade do algodão, à consolidação dos mercados e, por fim, àquele que será enfatizado neste artigo: a organização do beneficiamento e da comercialização da pluma de algodão. Para enfrentar este desafio, o Projeto Algodão inspirou-se inicialmente na experiência da ADEC que, graças à assessoria do Esplar, foi pioneira nos seguintes aspectos: Retomou o cultivo do algodão no início dos anos 90, no auge da crise do algodão, considerado até meados dos anos 80 o ouro branco do sertão. Contrapondo-se ao antigo modelo patrãomeeiro, procurou tornar os agricultores mais autônomos através de formações (intercâmbios, aulas, pesquisação...) sobre manejo do algodão seguindo princípios agroecológicos, e um longo aprendizado sobre beneficiamento e comercialização. Fomentou o cultivo consorciado e não o monocultivo. Os consórcios não comportam mais de 60% de algodão. Os demais cultivos são principalmente alimentares. O milho e o feijão predominam, Rev. Bras. De Agroecologia/nov. 2009 Vol. 4 No. 2 836

seguidos pelo gergelim e, em menor grau, o sorgo, o jerimum, a fava, a melancia, entre muitos outros. Evita-se, dessa forma, a armadilha que consiste em incentivar uma única cultura de renda em detrimento das culturas alimentares. Procurou o mercado orgânico e justo, de modo a remunerar melhor a pluma de algodão e a propiciar relações comerciais diferenciadas entre agricultores e compradores. (LIMA, 2008) Criou uma unidade territorial de beneficiamento da pluma de algodão em pleno sertão cearense. Em 2008, a ADEC, de Tauá, beneficiou 70 toneladas de algodão, produzido por cerca de 320 famílias de 10 municípios cearenses. Atualmente, a ADEC beneficia o algodão e vende a maior parte da pluma para a empresa francesa Veja, que paga o melhor preço do mercado orgânico na região (R$ 6,00 / kg de pluma). Isso permite: 1) oferecer uma boa remuneração aos agricultores, que vendem à ADEC o algodão em rama, por R$ 1,66 / kg; 2) cobrir despesas de frete e beneficiamento. Sobram, para a ADEC: 3) um beneficio monetário muito pequeno; 4) o caroço de algodão, vendido para sócios e não-sócios a preços diferenciados, ou armazenado para, no futuro, produzir óleo e torta. O caroço representa, assim, a quase totalidade dos benefícios. Nesse sistema, os preços do algodão orgânico e do caroço não cobrem: 1) A certificação orgânica, que tem custos proibitivos para o agricultor familiar nordestino. São pagos pelas empresas compradoras ou pela cooperação internacional. Os agricultores pagam apenas uma pequena taxa por família. 2) A infra-estrutura: descaroçadeira, prensa, galpão foram adquiridos com financiamentos. O benefício gerado pela comercialização do algodão cobre apenas a depreciação e a manutenção. 3) A assistência técnica no âmbito agroecológico, econômico e organizacional, bancada pela cooperação internacional e pelo governo brasileiro. Para todos esses itens, são necessários subsídios ou apoios. Além disso, um dos pontos essenciais é que a ADEC conhece, a cada ano, um período de dificuldades para conseguir o capital de giro suficiente para pagar o agricultor, o frete e as despesas de beneficiamento. As empresas compradoras costumam adiantar 40% do valor da pluma, mas esse montante cobre apenas a metade do valor do algodão em rama. Por outro lado, com uma margem beneficiária muito baixa, a ADEC não consegue se capitalizar de um ano para o outro a fim de compor seu próprio capital de giro. Descrição da experiência No mês de junho 2009, quando da redação deste texto, os agricultores de cada território do Projeto Algodão ainda estavam, com o apoio de técnicos e multiplicadores, organizando a logística do pós-colheita e deliberando sobre o preço do algodão em rama. Essas discussões, porém, começaram em janeiro, bem antes das colheitas, previstas para julho. Na fase inicial do Projeto Algodão, muitos aspectos da experiência da ADEC foram retomados, com pequenos ajustes. Outros, contudo, foram objeto de discussão entre técnicos, pesquisadores da Embrapa Algodão e agricultores. Como resultado dessas discussões onde foram convidados técnicos e diretores da ADEC, o modelo evoluiu. Essencialmente, existem três grandes diferenças com relação à ADEC: a busca mais rápida de sustentabilidade econômica, a participação do conjunto dos agricultores e o retorno do caroço de algodão como ração animal. Senão, vejamos. O primeiro ponto é a emergência de um modelo em que possa haver constituição progressiva de 837 Rev. Bras. De Agroecologia/nov. 2009 Vol. 4 No. 2

capital. Para tanto, o Projeto está incentivando a discussão, entre os agricultores, do preço de compra do algodão em rama, que pode oscilar entre dois extremos. Por um lado, temos o valor pago por atravessadores pelo algodão convencional (em torno de R$ 0,85 / kg de algodão em rama), que não remunera corretamente os cuidados agroecológicos. Por outro lado, temos o valor pago pela ADEC (R$ 1,66 / kg), que não permite sua capitalização. Entre estes dois extremos, existe um meio termo que poderá permitir uma progressiva capitalização do grupo ao longo dos ciclos sucessivos. É esse valor intermediário que os agricultores de cada território estão discutindo antes da colheita, até chegarem a um equilíbrio entre uma remuneração justa pelo esforço de cultivar algodão agroecológico e a necessária capitalização através de um fundo coletivo. Outro ponto importante é que os agricultores de determinada comunidade possam também opinar sobre o beneficiamento e a comercialização. Em Tauá, depois de comprar o algodão em rama dos dez municípios, a ADEC, cujos sócios são apenas de Tauá, fica com toda a responsabilidade do processo de pós-colheita. Ou seja, para a maioria dos agricultores, que são dos outros nove municípios, a ADEC representa um comprador garantido, pagando um bom preço para seu algodão em rama. Em compensação, a participação desses agricultores é apenas indireta: os dez municípios que fornecem algodão para a ADEC são representados por duas lideranças (geralmente sindicalistas) em outra institucionalidade, chamada Grupo Agroecologia e Mercado, onde, com a participação do Esplar e da ADEC, definem o plano de safra, o acompanhamento técnico e questões de logística, qualidade e preço.. No Projeto Algodão, o rumo que está se desenhando é diferente. Para que os agricultores possam se envolver mais diretamente nas decisões, o Projeto apóia um empreendimento cooperativo territorial, do qual todos eles possam ser sócios. Para tanto, evitou-se criar novas entidades. Em cada território, apostou-se na evolução de uma associação comunitária que já comprovou sua capacidade de gestão ou na criação de um novo setor dedicado ao algodão, numa cooperativa já existente. Por fim, as famílias têm insistido muito para que pelo menos parte do caroço possa voltar para elas. Depois de separar as sementes para o plantio no ano seguinte, a sobra de caroço será, em parte, redistribuída aos agricultores e, em parte, vendida para alimentar o fundo comum, a critério dos participantes. Resultados Para o agricultor acostumado a vender diretamente a sua produção, colocar-se nos papéis de comprador (que fixa o preço do algodão em rama), beneficiador e vendedor (de pluma e caroço) não é nada óbvio. Este será, sem dúvida, um processo longo, feito de tentativas, erros, correções de rumo, e que poderá inclusive tomar feições diferentes em cada território. Além do mais, outros elementos terão que ser levados em conta. As três evoluções com relação à ADEC fundo comum, maior participação e redistribuição de semente/caroço visam a sustentabilidade sócio-econômica e são necessárias. Não são, contudo, suficientes e, a médio prazo, a sustentabilidade dependerá também dos seguintes fatores: - Valorizar os demais produtos orgânicos do consórcios. Até hoje, o único mercado orgânico explorado foi o do algodão. Outros mercados são promissores, em particular o do gergelim. Como a certificação orgânica vale para toda a área (e não apenas para o algodão), o seu custo pode ser diluído com a comercialização dos demais produtos certificados como orgânicos tendo sempre Rev. Bras. De Agroecologia/nov. 2009 Vol. 4 No. 2 838

o cuidado de manter a parcela para o auto-consumo da família. - Valorizar mais o caroço de algodão, seja vendendo parte dele, seja produzindo óleo e torta. - Melhorar a produtividade do algodão. A produtividade média no Ceará, em 2008, foi de 200 quilos por hectare de consórcio. É uma média muito baixa, que pode aumentar graças a pesquisas conjuntas entre Embrapa Algodão, ONGs e agricultores. - Descentralizar o beneficiamento de modo a reduzir o custo de transporte, um dos maiores custos diretos. Pode diminuir bastante com a instalação de mini-usinas em nível territorial. - Adequar a capacidade das máquinas ao volume de algodão a ser processado. A remuneração dos operadores é também uma das maiores despesas da ADEC. Com máquinas maiores seria possível diminuir substancialmente os custos de operação. - Negociar com as certificadoras. O preço da certificação é proibitivo para a agricultura familiar do semi-árido, em especial em condições de sequeiro. O chamado controle interno talvez seja um pouco mais barato, mas é muito exigente em tempo e organização. Resta a opção de pressionar as certificadoras para adequar a certificação à realidade do semi-árido. - Criar uma plataforma para fomentar o diálogo entre os diferentes atores da cadeia do algodão (agricultores, Ongs, sindicatos, cooperativas, empresas, governos...) no intuito de: Discutir as oportunidades e ameaças, e mapear os atuais desafios de toda a cadeia. Passar de uma visão parcial e estreita (cada um enxergando apenas o pedacinho da cadeia que lhe diz respeito) para uma visão mais sistêmica. Ter uma idéia mais precisa dos custos nos vários elos da cadeia, e poder assim constituir uma sólida base de discussão sobre quem pode / deve pagar o que; Elaborar estratégias para resolver gargalos, como por exemplo a fabricação do fio orgânico, que poderia ser mais barata se uma única fiação processasse toda a pluma. Essa discussão é desejável e possível porque há interesses em comum: O mercado orgânico é ainda incipiente e frágil. Precisa desse diálogo entre atores para se consolidar, tanto do ponto de vista quantitativo, como qualitativo. A discussão e a reformulação da certificação interessa a toda a cadeia. Para construir o mercado justo é preciso discutir conjuntamente as regras. É possível elaborar projetos conjuntos de financiamento por instituições públicas. Mesmo melhorando a sustentabilidade econômica, apoios governamentais e não-governamentais permanecerão necessários a curto prazo, em particular para capital de giro, máquinas e galpões. Para crescer será preciso, também, direcionar esforços para a política de assistência técnica, de modo que passe a incorporar de fato a abordagem agroecológica O papel do Projeto Algodão é fazer com que as experiências sejam referências para a organização da produção e da comercialização, de modo que os consórcios possam multiplicarse sertões afora. Para tanto, a discussão do modelo não deve ser apenas econômica. Estão também em jogo importantes aspectos políticos (relações de poder entre atores da cadeia e destes com os governos); ambientais (eliminar as queimadas e o uso de agrotóxicos, melhorar o solo, conservar paisagens) e sociais (segurança alimentar e condições para a permanência das famílias em particular, dos jovens no campo). 839 Rev. Bras. De Agroecologia/nov. 2009 Vol. 4 No. 2

Referências BLOCH, D. Agroecologia e acesso a mercados 3 experiências na agricultura familiar da região Nordeste do Brasil [2008]. Oxfam. Recife. <http://comunidades.mda.gov.br/o/901166> LIMA, P.J. Algodão Agroecológico no comércio justo: fazendo a diferença. Revista Agriculturas, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 2008. Rev. Bras. De Agroecologia/nov. 2009 Vol. 4 No. 2 840