Revista Paulista de Pediatria ISSN: 0103-0582 rpp@spsp.org.br Sociedade de Pediatria de São Paulo Brasil Barbosa, Cássia Maria P. L.; Hangai, Luciana; Terreri, Maria Teresa; Len, Cláudio Arnaldo; Hilário, Maria Odete E. Dor em membros em um serviço de reumatologia pediátrica Revista Paulista de Pediatria, vol. 23, núm. 2, junio, 2005, pp. 63-68 Sociedade de Pediatria de São Paulo São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406038911004 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Artigo Original Dor em membros em um serviço de reumatologia pediátrica Limb pain in a pediatric rheumatology outpatient clinic Cássia Maria P. L. Barbosa 1, Luciana Hangai 2, Maria Teresa Terreri 3, Cláudio Arnaldo Len 3, Maria Odete E. Hilário 4 RESUMO ABSTRACT Objetivo: Avaliar clínica e laboratorialmente crianças e adolescentes com dor em membros e sua possível associação com fibromialgia e hipermobilidade articular. Método: Estudo transversal realizado no período de janeiro de 2001 a dezembro de 2002, que incluiu 103 crianças e adolescentes atendidos no Ambulatório de Reumatologia Pediátrica, com queixa de dor em membros. Além do exame físico geral, os pacientes foram submetidos ao exame osteoarticular, dos pontos de gatilho para fibromialgia com dolorímetro de Fisher e à pesquisa de critérios para hipermobilidade articular, coleta de hemograma e velocidade de hemossedimentação. Resultados: Das 103 crianças e adolescentes, 69 eram meninas (67%) e a média de idade do aparecimento dos sintomas foi aos 72 meses. O intervalo entre o início dos sintomas e a primeira consulta com o especialista foi de 31 meses. Em 64% dos pacientes foi referido um fator desencadeante para a dor, sendo o esforço físico o mais freqüente. Não foram encontradas alterações laboratoriais. Fibromialgia foi diagnosticada em 25,2% dos pacientes e a síndrome de hipermobilidade articular, em 27,2%. Três pacientes apresentaram fibromialgia associada à hipermobilidade. Já 20% tiveram alguma falta escolar em conseqüência da dor. Em 25% dos pacientes encontramos associação com história familiar de dor crônica. Conclusões: A dor em membros na infância é geralmente benigna e apresenta características clínicas próprias, sendo de pouco valor os exames subsidiários. Devem-se pesquisar fibromialgia e hipermobilidade articular. Um acompanhamento periódico para afastar outras causas de dor em membros é necessário nos casos onde não há regressão dos sintomas. Palavras-chave: Dor, fibromialgia, hipermobilidade articular. 1 Pós-graduanda do setor de Reumatologia Pediátrica da Disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) 2 Especializanda do setor de Reumatologia Pediátrica da Disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia do Departamento de Pediatria da Unifesp 3 Professores assistentes da Disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia do Departamento de Pediatria da Unifesp 4 Livre docente, chefe do setor de Reumatologia Pediátrica da Disciplina de Objective: To study the clinical and laboratorial characteristics of children and adolescents with limb pain and its association with fibromyalgia and joint hypermobility. Methods: This cross-sectional study included 103 children and adolescents with limb pain, followed in the Pediatric Rheumatology Outpatient Clinic from January 2001 to December 2002. The following assessments were done: clinical evaluation with osteoarticular examination, research of painful points of fibromyalgia with Fisher s dolorimeter, investigation of joint hypermobility criteria, hematological indices and erythrocyte sedimentation rate. Results: From the studied population, 69 (67%) were girls. The average age at the onset of symptoms was 72 months and the gap between the onset of symptoms and the first specialist evaluation was 31 months. 64% of the patients referred the presence of a triggering pain factor, most often the physical activity. There were no laboratory abnormalities. Fibromyalgia was diagnosed in 25% and joint hypermobility in 27%. The pain caused school absences in 20 % of the patients. Chronic familiar pain was present in 25% of the patients. Conclusions: Limb pain is usually a benign condition during infancy and has well defined symptoms and signs. In general, laboratorial exams do not offer valuable informations. It is important to look for fibromyalgia and joint hypermobility criteria in these patients. When symptoms persist, the patient needs periodic evaluation in order to exclude other causes of pain. Key-words: pain, fibromyalgia, joint hypermobility. Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia do Departamento de Pediatria da Unifesp Endereço para correspondência: Profa. Dra. Maria Teresa Terreri Rua Loefgreen, 2.381, apto. 141 CEP 04040-004 São Paulo/SP E-mail: terreri@uninet.com.br Recebido em: 22/11/2004 Aprovado em: 18/4/2005 63
Dor em membros em um serviço de reumatologia pediátrica Introdução A dor em membros benigna ( dor de crescimento ) é uma queixa comum na prática pediátrica, correspondendo a 15% das queixas desta faixa etária (1). Ela tem como características ser extra-articular, de intensidade variável, mais freqüente em membros inferiores (região anterior da tíbia, panturrilha, cavo poplíteo e região anterior da coxa), bilateral e difusa. Ocorre com mais freqüência no final da tarde e à noite, podendo estar relacionada à atividade física e ao estresse (2). Em alguns pacientes, a entidade está associada a doenças reumáticas, ortopédicas, infecciosas, oncológicas ou hematológicas, entre outras. Entretanto, na maioria das crianças, não está associada a qualquer patologia e costuma ser crônica (com duração maior que três meses) e recorrente. Inicia-se na infância, antes dos 5 anos, sendo mais freqüente entre os 5 e os 12 anos, com predomínio do sexo feminino (3). Não se observa claudicação ou sintomas constitucionais e o exame físico, os testes laboratoriais e o exame radiológico são normais. Contudo, a pesquisa de alterações em exames subsidiários deve limitar-se aos casos em que há dúvida no diagnóstico diferencial com doenças orgânicas. Recentemente, tem sido possível caracterizar pelo menos duas entidades associadas ao quadro de dor crônica recorrente em membros na infância: a síndrome da hipermobilidade articular benigna e a fibromialgia juvenil. No entanto, a fibromialgia costuma ocorrer em idades mais avançadas (adolescência) e se caracteriza por dor difusa, não apenas em membros. A hipermobilidade articular é definida pela presença de um grau exagerado de mobilidade das articulações, que pode ocorrer em indivíduos saudáveis ou se associar a síndromes genéticas, como Marfan e Ehlers-Danlos (4). O diagnóstico é feito por meio de critérios clínicos propostos por Carter e Wilkinson (5), modificados por Beighton et al (6). A síndrome de hipermobilidade articular se caracteriza pela presença de artralgia ou dor em membros, com evolução de pelo menos três meses, associada à hipermobilidade (7). Em geral, o sexo feminino é o mais acometido (8). O quadro apresenta evolução benigna e tende a diminuir com o aumento do tônus muscular durante a adolescência. A fibromialgia é uma síndrome dolorosa músculo-esquelética, difusa e crônica, sem acometimento inflamatório, envolvimento articular ou evolução para deformidade (9). Embora seja considerada uma condição benigna, a fibromialgia pode interferir consideravelmente na qualidade de vida: fadiga constante, distúrbio do sono, ansiedade ou depressão, cólon irritável e cefaléia são queixas freqüentes desses pacientes. Em 1990, o Colégio Americano de Reumatologia (ACR) definiu o diagnóstico de fibromialgia como dor músculo-esquelética difusa nos lados direito e esquerdo do corpo, acima e abaixo da cintura, com duração superior a três meses, com presença de pelo menos 11 de 18 pontos dolorosos. Os pontos são pesquisados bilateralmente e considerados positivos quando a palpação for dolorosa com a aplicação de uma força digital de 4 kgf/cm² (10). É importante lembrar que tais critérios, aplicados em adultos, estão sujeitos a críticas na faixa etária pediátrica, principalmente no que diz respeito à quantidade de pontos e à intensidade da pressão digital. Acredita-se que a presença de 11 pontos dolorosos aconteça na evolução da doença e que, inicialmente, crianças e adolescentes possam apresentar menos pontos de fibromialgia (9). O objetivo deste trabalho foi avaliar clínica e laboratorialmente crianças e adolescentes com dor em membros há pelo menos três meses, atendidos no ambulatório do setor de Reumatologia Pediátrica da disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia, do Departamento de Pediatria da Unifesp. Método No período de janeiro de 2001 a dezembro de 2002, foram selecionados, para o estudo transversal, crianças e adolescentes que apresentavam queixas de dor em membros por mais de três meses, atendidos no Ambulatório de Reumatologia Pediátrica da Disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia, do Departamento de Pediatria da Unifesp. Para a inclusão na pesquisa foram considerados os pacientes com idade inferior a 18 anos e que apresentaram diagnóstico de dor em membros. Excluíram-se aqueles com dor em membros de etiologia orgânica (doenças reumáticas, traumato/ortopédicas, infecciosas, onco/hematológicas ou outras patologias). Aplicou-se um questionário ao responsável pelo paciente durante a consulta médica, com perguntas relacionadas ao sexo; raça; idade de início da sintomatologia; caracterização; localização; horário; freqüência e duração da dor; presença de sinais inflamatórios; presença de fatores associados (falta escolar, dor abdominal e cefaléia); fatores desencadeantes ou de piora (atividade física, mudança de temperatura e estresse); fatores de melhora (massagem, analgésico, repouso); presença de claudicação e de história familiar. Além do exame físico geral, os pacientes foram submetidos ao exame osteoarticular e à pesquisa dos critérios para o diagnóstico de hipermobilidade articular (Quadro 1) e dos pontos 64
Cássia Maria P. L. Barbosa et al. de gatilho para o diagnóstico de fibromialgia (Quadro 2), com a utilização de um dolorímetro com carga. Ademais, exames laboratoriais, como hemograma e velocidade de hemossedimentação (VHS), foram solicitados para todos os pacientes. Não se fizeram radiografias simples de membros inferiores, porque não havia qualquer suspeita de outras patologias. Para estudar a associação entre as várias faixas etárias e a presença ou não de hipermobilidade articular e fibromialgia foi realizado o teste de Fisher. Resultados Foram avaliados 103 crianças e adolescentes com queixa de dor em membros benigna ( dor de crescimento ), 69 do sexo feminino (67%), 60 da raça não-caucasóide (58%), sendo que a idade de início das queixas variou de 18 (1 ano e 6 meses) a 197 meses (16 anos e 5 meses), com média de 72 meses (6 anos). O intervalo entre o início dos sintomas e a primeira consulta foi de 31 meses (2 anos e 7 meses). Segundo o questionário, a dor foi predominantemente articular em 75/103 pacientes (73%). A localização mais comum foi nos membros inferiores, sendo os joelhos (78%) e os tornozelos (34%) as articulações mais acometidas. Punhos e cotovelos apresentaram a mesma freqüência de acometimento (21%). Ombros, quadris, articulações interfalangeanas, metacarpofalangeanas e metatarsofalangeanas de mãos e pés também foram acometidos, porém com menor freqüência. A dor foi de caráter não articular em 27% dos casos (28/103), com predomínio em membros inferiores (89%), bilateral (80%), no período noturno (56%), seguida da dor sem preferência de horário (19%), vespertina (18%) e matutina (7%). A freqüência da dor foi maior que quatro vezes ao mês em 39% dos pacientes; de uma a três vezes ao mês em 28%, e de uma vez por semana em 18%. Dor constante foi a queixa de 15% dos pacientes avaliados. A duração da dor foi de horas em 50% e de minutos em 39%. Do grupo estudado, 46% relatou claudicação e 2% referiu sinais flogísticos pela anamnese. Antecedentes de infecção ou trauma aconteceram em poucos casos (6% e 3%, respectivamente). Em 66 pacientes (64%) alegou-se a presença de fatores desencadeantes para dor, dos quais o esforço físico, como correr ou pular muito durante o dia, foi o mais freqüente (79%), seguido por mudanças de temperatura ambiental (especialmente de quente para frio) e estresse. Algum fator de melhora foi citado por 69 pacientes (67%), sendo a massagem e o repouso os mais comuns. Com relação a outras queixas, 54% referiam cefaléia e 38%, dor abdominal. Em conseqüência da dor, 20% 1. Aproximação passiva do polegar sobre a região anterior do antebraço, até encostar nele. 2. Hiperextensão das articulações metacarpofalangianas, até que os dedos fiquem paralelos ao antebraço. 3. Hiperextensão dos cotovelos em ângulo maior de 10º. 4. Hiperextensão dos joelhos em ângulo maior de 10º. 5. Flexão da coluna, mantendo os joelhos estendidos, até encostar as palmas das mãos no chão. Quadro 1 Critérios para o diagnóstico de hipermobilidade articular: escala de Beighton (6). Os quatro primeiros critérios são validados em ambos os lados (1 ponto para cada lado) e o último critério vale apenas 1 ponto, totalizando 9 pontos. A presença de 5 ou mais pontos caracteriza o diagnóstico de hipermobilidade articular História de dor difusa: a dor é considerada difusa quando ocorre nos lados esquerdo e direito do corpo, acima e abaixo da cintura. Além disso, há presença de dor no esqueleto axial. Dor em 11 de 18 pontos à palpação digital: Occipital: bilateral, na inserção do músculo suboccipital. Paravertebral cervical, entre os processos transversos de C5 a C7. Borda superior do trapézio (ponto médio). Músculos supra-espinhais (em sua origem sobre as escápulas, na borda medial). Segunda junção condro-costal (na superfície das costelas). Epicôndilos laterais dos cotovelos (2 cm distalmente aos epicôndilos). Glúteos médios (no quadrante superior externo). Trocânteres maiores dos fêmures (posteriormente às proeminências). Interlinhas mediais dos joelhos (no coxim gorduroso medial). Quadro 2 Critérios para o diagnóstico de fibromialgia (Colégio Americano de Reumatologia, 1990) (9). A palpação digital deve ser realizada com força de aproximadamente 4 kg. Para o ponto ser considerado positivo, o paciente deve referir que a palpação foi dolorosa. Para propósitos de classificação, são necessários os dois critérios. A dor difusa deve estar presente por pelo menos 3 meses. A presença de outra patologia não exclui o diagnóstico de fibromialgia Rev Paul Pediatria 2005;23(2);63-8 65
Dor em membros em um serviço de reumatologia pediátrica apresentaram alguma falta escolar. Em 25% (26/103) dos pacientes, a dor em membros teve associação com história familiar de dor crônica. Encontrou-se alguma alteração no exame físico em 14% (15/103), sendo a escoliose o achado mais corriqueiro (9/15 60%), seguida de pé plano e da diferença de tamanho dos membros com igual freqüência (3/15 20%). Em nenhum paciente foram notados sinais flogísticos em extremidades ou articulações. Em 28 pacientes (27%) diagnosticou-se hipermobilidade articular associada à dor em membros benigna, sendo esta mais freqüente em crianças menores de 5 anos (Tabela 1). Não se observou diferença quanto ao sexo. A fibromialgia foi notada em 26 (25%) dos 103 pacientes com dor em membros benigna, sendo que 24 apresentaram de 11 a 15 pontos dolorosos e dois, 16 a 18 pontos. Quanto ao sexo, 19/26 (73%) eram meninas e 15/26 (58%) da raça não-caucasóide. A fibromialgia foi mais comum em crianças de idade mais avançada (mais da metade era maior que 104 meses) (Tabela 2). Os pontos dolorosos mais corriqueiros em nosso estudo foram os localizados nos músculos trapézio e subespinhal. Assim, dos 103 pacientes, 25 apresentaram somente a hipermobilidade articular, 23 só a fibromialgia e apenas três fibromialgia associada à hipermobilidade. Nos 52 restantes, a dor em membros não foi associada à hipermobilidade articular ou à fibromialgia. Tabela 1 Distribuição dos 28 pacientes com hipermobilidade articular, de acordo com a faixa etária dos 103 pacientes estudados Faixa etária n (%) dos pacientes % dos 28 por faixa etária pacientes 18 a 60 meses 15/21 (71%) 54 61 a 103 meses 7/26 (27%) 25 104 a 145 meses 5/41 (12%) 18 146 a 188 meses 1/15 (7%) 3 Total 28/103 (27%) 100 Teste de Fisher: p < 0,001 Tabela 2 Distribuição dos 26 pacientes com fibromialgia, de acordo com a faixa etária dos 103 pacientes estudados Faixa etária n (%) dos pacientes por faixa etária % dos 26 pacientes 18 a 60 meses 1/21 (5%) 4 61 a 103 meses 4/26 (15%) 15 104 a 145 meses 13/41 (32%) 50 146 a 188 meses 8/15 (53%) 31 Total 26/103 (25%) 100 Teste de Fisher: p < 0,001 Quanto aos exames laboratoriais, não se observou anemia em qualquer paciente. A VHS apresentou-se normal (até 20 mm na primeira hora) em uma ou mais determinações, na totalidade do grupo pesquisado. Discussão A dor em membros é a terceira queixa mais freqüente na prática pediátrica, considerando-se que, em ambulatório de Reumatologia Pediátrica, a queixa pode ser ainda mais comum. Entretanto, é preciso estar alerta para os diagnósticos diferenciais, motivo pelo qual esses pacientes devem ser acompanhados por longos períodos, se as queixas persistirem. No presente estudo, o predomínio do sexo feminino e a média de idade de início das queixas (72 meses) estão de acordo com os descritos na literatura (2,3,8). Notou-se que o intervalo médio entre o início dos sintomas e a época da primeira consulta com o reumatologista pediátrico foi de 31 meses, evidenciando um atraso no encaminhamento de tais pacientes ao especialista. Sabe-se das dificuldades relativas ao preenchimento de questionários por responsáveis de pacientes em nosso meio e que o critério de subjetividade deve ser levado em conta. No entanto, o questionário desta pesquisa era de fácil execução e nenhum responsável apresentou dificuldade em respondê-lo. A dor em membros é descrita como de localização predominantemente não-articular e mais freqüente em membros inferiores (11). Contudo, os resultados obtidos apontam para um predomínio de dor articular, provavelmente porque, por oferecer um serviço especializado, o ambulatório pesquisado recebe pacientes que suscitam mais dúvidas quanto ao diagnóstico. Dentre as localizações articulares, houve predomínio dos joelhos, seguido dos tornozelos, o que já foi observado por outros autores (11). A dor extra-articular foi mais freqüentemente percebida na região entre os joelhos e os tornozelos, o que pode ser devido à maior atividade física e à suscetibilidade a impactos dessas regiões (12). A simetria da dor torna improvável o diagnóstico de tumores, principalmente ósseos. Todavia, em casos de dor unilateral e persistente faz-se necessária a investigação por meio de recursos de imagem (13). No presente estudo, a dor foi bilateral na maioria dos casos (79%), como descrito na literatura (8). A dor em membros benigna costuma se dar mais no final do dia e no período noturno, assim como em nossos pa- 66
Cássia Maria P. L. Barbosa et al. cientes, despertando-os usualmente. Processos oncológicos, entretanto, também possuem tal característica (1,2). Em relação à duração da dor, nossa pesquisa constatou o predomínio de horas, mostrando que o quadro de dor é, na maioria das vezes, fugaz, geralmente cessando espontaneamente ou com manobras simples, como massagem. Quanto à freqüência, a dor ocorreu mais de uma vez por semana em 39% dos pacientes. Na literatura, no entanto, existem poucos relatos sobre esse dado. Mikkelsson e colaboradores afirmaram que 32% das crianças referiam dor músculo-esquelética ao menos uma vez por semana e 39% ao menos uma vez por mês (14). Por definição, a dor em membros benigna não causa claudicação; contudo, 46% de nossos pacientes apresentaram tal queixa. Pode ter havido certa supervalorização desse sinal por parte dos pais e pacientes, uma vez que a claudicação não foi percebida durante o exame clínico. Outra característica importante da dor em membros é a ausência de sinais flogísticos, como se deu na casuística aqui apresentada. A maior parte dos pacientes tem algum fator desencadeante para a dor. O esforço físico pode estar relacionado ao uso inadequado de mochilas, com peso acima do recomendado (até 10% do peso corporal) (15), a atividades profissionais (distúrbio ósteo-muscular relacionado ao trabalho) e/ou esportivas. É comum a presença de outras queixas em crianças com dor em membros, o que reforça a idéia de somatização (16). Cerca de metade dos nossos pacientes apresentava cefaléia e/ou dor abdominal associadas. A literatura descreve o estresse psicológico como um dos principais fatores de piora ou desencadeamento da dor (17,18,19), porém é difícil de ser investigado. Deve-se sempre inquirir familiares e pacientes com essa queixa sobre traumas psicossociais, como separação, dificuldades escolares e desemprego. Crianças provenientes de ambientes familiares onde a queixa de dor crônica está presente têm maior freqüência de dor em membros, de modo similar ao observado em nosso estudo, em que 25% dos casos apresentaram história familiar. No momento do exame físico, os pacientes estavam sem dor, o que é característico da dor benigna em membros. Embora 15% dos pacientes tenham apresentado alterações ortopédicas ao exame físico, não acreditamos que elas tenham sido a causa da dor. A hipermobilidade articular é um aumento no grau de extensão articular, que, em geral, não implica doença do tecido conectivo, apresentando alta prevalência na infância. De Cunto et al, em 2001, estudaram 359 escolares na Argentina e encontraram prevalência de hipermobilidade em 37% das crianças (20). A dor em membros pode estar associada à hipermobilidade articular, caracterizando a síndrome da hipermobilidade articular (11), como aconteceu com 27% dos pacientes analisados. Entretanto, é difícil ter certeza dessa associação, uma vez que outras causas de dor articular, como atividade física em excesso, podem estar implicadas. De maneira semelhante à relatada na literatura, a maior freqüência de hipermobilidade articular se deu em crianças com menos de 5 anos, nas quais a frouxidão ligamentar é mais acentuada (5). Em nosso estudo, 25% dos pacientes apresentaram fibromialgia, mais freqüente em crianças de idade mais avançada (mais da metade era maior que 104 meses), provavelmente por terem vivência mais corriqueira de dor e por saberem expressá-la com mais precisão. Além disso, as atividades de esforço repetitivo, como computadores e videogames, são mais comuns nessa faixa etária. Acreditamos haver necessidade de revisão dos critérios diagnósticos de fibromialgia na faixa etária pediátrica, já que pressões digitais mais baixas e um menor número de pontos dolorosos podem ser significativos para esse grupo. O estudo objetivo do sono desses pacientes, por meio da polissonografia, pode mostrar alterações na arquitetura do sono, com aumento do estágio 1, redução do sono de ondas delta e um maior número de despertares. A intrusão de ondas alfa no sono de ondas lentas (padrão alfa-delta) é indicativo de sono não-restaurador e superficial e se associa à fadiga e a dores generalizadas (21). Em estudo com 338 crianças saudáveis em idade escolar, Buskila et al encontraram prevalência de fibromialgia de 6,2% em população pediátrica saudável (22). A prevalência encontrada nesse pesquisa pode se dever ao fato de se tratar de uma população de um serviço reumatológico de referência. Os pontos dolorosos que apareceram com maior freqüência foram os localizados no trapézio e subespinhal, que é a localização mais comum na literatura (23). Quanto aos achados laboratoriais, a ausência de alterações no hemograma e nas provas de fase aguda ajuda a excluir causas orgânicas de dor em membros, embora não as afaste totalmente. Em trabalho realizado em nosso serviço com crianças leucêmicas, 5% apresentaram hemograma inicial normal (24). A VHS mostrou-se normal em uma ou mais determinações, em todos os pacientes. É importante lembrar que esse exame tem pouca especificidade e pode se alterar por diversas condições. O tratamento da dor em membros benigna restringe-se ao uso do calor local, massagens e analgésicos orais, quando 67
Dor em membros em um serviço de reumatologia pediátrica necessário. É fundamental tranqüilizar pais e pacientes em relação à dor, com orientação quanto à natureza benigna e autolimitada do sintoma, e à presença de prognóstico favorável. Distúrbios emocionais devem ser pesquisados e acompanhados quando presentes. Esportes de impacto não são aconselháveis para pacientes com síndrome de hipermobilidade e a atividade física deve ser estimulada naqueles com fibromialgia. Em resumo, a dor em membros é uma queixa comum na prática pediátrica, apresenta características clínicas próprias, sendo de pouco valor os exames subsidiários. Um acompanhamento periódico para afastar causas orgânicas de dor em membros é necessário nos casos em que não há remissão dos sintomas. Deve-se pesquisar a presença de hipermobilidade articular e/ou de fibromialgia. Referências bibliográficas 1. Oster J, Nielsen A. Growing pains. A clinical investigation of school population. Acta Paediatr Scand 1972;61:329-34. 2. Abub-Arafeh I, Russell G. Recurrent limb pain in school children. Arch Dis Child 1996;74:336-9. 3. Peterson H. Growing pains. Ped Clin North America 1986;33:1365-72. 4. El Garf AK, Mahmoud GA, Mahgoub EH. Hypermobility among Egyptian children: prevalence and features. J Rheumatol 1998;25:1003-5. 5. Carter C, Wilkinson J. Persistent joint laxity and congenital dislocation of the hip. J Bone Jt Surg 1964;52B:40-5. 6. Beighton P, Solomon L, Soskolne CL. Articular mobility in an Africa population. Ann Rheum Dis 1973;32:413-8. 7. Kirk JA, Ansell BM, Bywaters EGL. The hypermobility syndrome. Musculoskeletal complaints associated with generalized joint hypermobility. Ann Rheum Dis 1967;26:419-25. 8. Sherry DD, Malleson PN. Non-rheumatic muskuloskeletal pain. In: Cassidy JT, Petty RE, editors. Textbook of Pediatric Rheumatology. 4 th ed. Philadelphia: WB Saunders; 2001. p. 362-80. 9. Siegel DM, Janeway D, Baum J. Fibromyalgia syndrome in children and adolescents: clinical features at presentation and status at follow-up. Pediatrics 1998;101:377-82. 10. Wolfe F, Smythe HA, Yunus MB, Bennett RM, Bombardier C, Goldenberg DL, et al. The American College of Rheumatology 1990 criteria for the classification of fibromyalgia. Arthritis Rheum 1990;33:160-72. 11. Gedalia A, Press J. Articular symptoms in hypermobility school children: a prospective study. J Pediatr 1991;119:944-7. 12. Forléo LH, Hilário MO, Peixoto AL, Naspitz C, Goldenberg J. Articular hypermobility in school children in São Paulo, Brazil. J Rheumatol 1993;20:916-7. 13. Manners P. Are growing pains a myth? Aust Fam Physician 1999;28:124-7. 14. Mikkelsson M, Salminen JJ, Kautiainen H. Non-specific musculoskeletal pain in preadolescents. Prevalence and 1-year persistence. Pain 1997;73:29-35. 15. Forjuoh SN, Lane BL, Schuchmann JA. Percentage of body carried by students in their school backpacks. Am J Phys Med Rehabil 2003;82:261-6. 16. Oster J. Recurrent abdominal pain, headache and limb pain in children and adolescents. Pediatrics 1972;50:429-36. 17. Sherry DD, Mc Guire T, Mellins E, Salmonson K, Wallace CA, Nepom B. Psychosomatic muskuloskeletal pain in childhood: clinical and psychological analysis of 100 children. Pediatrics 1991;88:1093-9. 18. Aasland A, Flató B, Vandvik IH. Psychosocial factors in children with idiopathic musculoskeletal pain: a prospective, longitudinal study. Acta Paediatr 1997;86:740-6. 19. Passo MH. Aches and limb pain. Ped Clin North America 1982;29:209-19. 20. De Cunto C, Moroldo MB, Liberatore DI, Imach E. Hiperlaxitud articular: estimación de su prevalencia en niños en edad escolar. Arch Argent Pediatr 2001;99:105-10. 21. Roizenblatt S, Moldofsky H, Benedito-Silva AA, Tufik S. Alpha sleep characteristics in fibromyalgia. Arthritis Rheum 2001;44:222-30. 22. Buskila D, Press J, Gedalia A, Klein M, Neumann L, Boehm R, et al. Assessment of non-articular tenderness and prevalence of fibromyalgia in children. J Rheumatol 1993;20:368-70. 23. Liphaus BL, Campos LMMA, Silva CAA, Kiss MHB. Síndrome da fibromialgia em crianças e adolescentes. Estudo clínico de 34 casos. Rev Bras Reumatol 2001;41:71-4. 24. Barbosa CMPL, Nakamura C, Terreri MT, Lee MLM, Petrilli AS, Hilário MOE. Manifestações músculo-esqueléticas como apresentação inicial das leucemias agudas. J Pediatr (Rio J) 2002;78:481-4. 68