1 Fala e escrita - suas especificidades Fga. Dra. Ana Paula M. Goyano Mac-Kay CEFAC Na linguagem, as modalidades oral e escrita se completam, guardando cada uma suas propriedades. O fato de possuírem formas características não pode nos levar à falsa noção de que são modalidades destituídas de pontos de integração. Akinnaso (1982) afirma que fala e escrita apresentam formas superficiais diferentes e igual estrutura semântica subjacente: utilizam o mesmo sistema léxico-semântico e variam, em particular, na escolha e distribuição de padrões sintáticos e de vocabulário, de acordo com a produção do texto. Admitindo o princípio de continuum, Koch no livro O texto e a construção dos sentidos (1997) ressalta que os textos podem apresentar-se de várias formas, ou seja, ora se aproximando do pólo da fala (por exemplo: os bilhetes domésticos, os bilhetes dos casais, cartas familiares e textos de humor), ora se aproximando do pólo da escrita (por exemplo: os discursos de posse de cargo, as conferências, as entrevistas especializadas e propostas de produtos de alta tecnologia por vendedores especialmente treinados). Conforme observa a autora, fala e escrita constituem duas possibilidades de uso da língua que utilizam o mesmo sistema lingüístico e que, apesar de possuírem características próprias, não devem ser vistas de forma dicotômica.
2 Em síntese clara e objetiva, Koch (ibidem:62) oferece um esquema da estruturação da visão dicotômica, que ilustra as mais freqüentes diferenças entre fala e escrita apontadas na literatura, e que apresentamos a seguir: Fala Escrita contextualizada descontextualizada implícita explícita redundante condensada não-planejada planejada predominância do predominância do modus modus pragmático sintático fragmentada não-fragmentada incompleta completa pouco elaborada elaborada pouca densidade densidade informacional informacional predominância de frases predominância de frases curtas, simples ou complexas com subordinação coordenadas abundante pequena freqüência de emprego freqüente de passivas passivas poucas nominalizações abundância de nominalizações menor densidade lexical maior densidade lexical
3 Fávero, Andrade e Aquino (1994) observam o fato de as gramáticas adotarem como parâmetro a escrita e associarem a fala com um dos seus níveis de realização - o informal - e que essa posição fortalece o enfoque que polariza as duas modalidades por não incluir a possibilidade da existência de níveis de formalidade. As autoras (ibidem: 273) sinalizam para o fato de que, na verdade, tanto a fala como a escrita abarcam um continuum que vai do nível mais informal aos mais formais, passando por graus intermediários, e demonstram essa variação em dependência com as condições de produção do texto. Tais condições estão em estreita relação com o contexto, com as condições de interação, com os interlocutores e com o tipo de processamento da informação conforme o seguinte quadro apresentado pelas autoras: (op. cit.: 276): Fala interação face a face planejamento simultâneo ou quase simultâneo impossibilidade de apagamento sem condições de consulta ampla possibilidade de reformulação; é marcada, pública, pode ser promovida tanto pelo falante como pelo ouvinte Escrita interação à distância planejamento anterior à produção possibilidade de revisão para operar correções livre consulta as formulações podem não ser tão marcadas, é privada e promovida apenas pelo escritor
4 ouvinte acesso imediato ao feedback do ouvinte o falante pode processar o texto, redirecionando-o a partir das reações do ouvinte sem possibilidades de feed-back imediato o escritor pode processar o texto a partir das possíveis reações do leitor Silva (1996) discorre sobre as modalidades oral e escrita da linguagem considerando que o assunto é complexo, não havendo ainda respostas claras para as indagações a respeito do tema. Apresentamos, a seguir, um esquema que, segundo a autora, resume as características diferenciadoras do oral e do escrito (op. cit.: 167): Oral maior número de repetições turnos conversacionais mais freqüentes transitoriedade organização mental espontânea revisão imediata uma edição do ato da fala a formação do sentido apoiase no contexto interacional e situacional Escrito menor número de repetições turnos conversacionais menos freqüentes registro permanente organização mental elaborada várias revisões não-imediatas várias edições do escrito a formação do sentido é de ordem lógico-semântica
5 menor densidade lexical, maior densidade lexical, fragmentação continuidade incompletude no nível sintático maior especificação no nível sintático menor seletividade lexical maior seletividade lexical maior número de processos menor processo fonológico no fonológicos no nível nível fonológico fonológico Falar e escrever são formas diferentes de dizer e expressar significados construídos na linguagem e pela linguagem, dentro de uma situação interativa social. Nesse sentido, Halliday (1989) propõe que falar e escrever, enquanto formas diferentes de dizer e modos diferentes de se expressar em significados lingüísticos, apresentam uma interface: a analogia entre fala e escrita sustentada por três princípios. Um deles é que a escrita não incorpora todos os potenciais de significação da fala, pois deixa de lado as participações paralingüísticas e prosódicas e, a fala não apresenta os limites da sentença e do parágrafo; estas diferenças, porém, são de sinais e não de conteúdo. O outro é que não há necessidade de duas linguagens para a mesma função pois uma seria a duplicação da outra. Logo, cada modalidade serviria para uma finalidade mais específica, sem perder sua característica fundamental de ser linguagem. Por último, fala e escrita planteiam diferentes aportes para a experiência: a escrita cria o mundo da coisas/objetos (things) e a fala, o dos acontecimentos. Para esse autor, tais aportes seriam formas possíveis de se olhar para o mesmo objeto de conhecimento, ou seja, a experiência humana.
6 Outro aspecto levantado por Halliday (ibidem) é o de que o ser humano aprende ouvindo e falando, lendo e escrevendo; que aprender se traduz no processo de construir significados e que o componente cognitivo da aprendizagem pode ser conceituado como o processo de construção de significados mediante um sistema e uma estrutura semânticos. Reforçando a visão de integração, encontramos na contribuição desse autor a sugestão de que não podemos mais persistir em tratar a fala como caricatura de si mesma e em colocar a escrita em um pedestal, sob pena de prejudicarmos os caminhos para a melhor compreensão de como a criança aprende. Ainda dentro da análise das características mais específicas de cada modalidade, cabe enfatizar que no diálogo (e na maioria das produções de uso da modalidade oral) os interlocutores estão presentes e o contexto que os envolve é elemento constitutivo - explícito e implícito - da interação, enquanto na escrita há um distanciamento, temporal e espacial, entre o eu e o tu (físicos), ou seja, entre os interlocutores. Tal distanciamento não significa que o ato de escrever seja uma ação monológica uma vez que, como destaca Dietzsch (1988:2)...na figura solitária do escritor se mesclam um eu e um você (eu(s) e você(s)), dinamizando um outro espaço polifônico e polissêmico - espaço intersubjetivo - que remete a expressão para muito além do apenas observável. Em sociedades letradas, fala e escrita podem ser estudadas em perspectiva de relação, uma vez que compartilham as funções da linguagem, não obstante preenchendo papéis diferentes. Na medida em que as crianças pertencentes a culturas letradas vão-se desenvolvendo, suas
7 interações passam a ser transpassadas pelo discurso escrito e as significações têm uma nova possibilidade de análise de construção além da oferecida pelo discurso oral, a saber, a do âmbito do discurso escrito. Dentro do espaço discursivo da interação, o discurso escrito sofre interpenetrações sociais e culturais pois, em sua essência, está permeado pelos sentidos e valores da ideologia do grupo social. Essas interpenetrações se refletem nas formas de interação da criança com a escrita - objeto de conhecimento - dentro de um contexto sócio-histórico mais amplo, que revela os ideais e as concepções de um grupo social numa determinada época (Savioli e Fiorin, 1996:17). Os estudos psicolingüísticos, segundo Rojo, vêm focalizando sua atenção para questões da aquisição da escrita:. Até recentemente a linguagem escrita não foi vista como processo de desenvolvimento ou construção. Assim, durante décadas, o desenvolvimento da escrita foi encarado como um treinamento de habilidades viso-motoras e de transcrição de código sonoro em formas gráficas. Isto acarretou uma grande centração dos estudos no momento da alfabetização e na questão da correspondência grafema-fonema e dos aparatos orgânicos envolvidos na transcrição desta correspondência. (Rojo, 1990:169) O enfoque de que a escrita é um processo que se desenvolve e que não é um conhecimento puramente aprendido na escola, via alfabetização, é mostrado por Dietzsh (1988) quando apresenta o homem como aquele que
8 procura encontrar um instrumento - a escrita - que não somente represente a fala mas, que sirva, também, para mediar suas relações com o ambiente. Sua proposta, entretanto, ainda não menciona de forma clara os aspectos sócio-históricos inscritos no processo de desenvolvimento, visto estabelecer a escrita apenas como forma de representar a fala. Smolka (1993) propõe a escrita enquanto espaço onde a criança incorpora novas formas de interação, transformando sua realidade sóciocultural. Ainda segundo a autora, é na escrita que a criança vai-se explicitando segundo suas falas e lugares sociais. Rojo (1991) salienta que no seu processo de desenvolvimento, o leitor/escritor vai incorporando, gradualmente, a modalidade discursiva da escrita e as características dos papéis do leitor/escritor. Avançando nessa perspectiva, a visão da escrita como produto cultural (não mais vinculada à alfabetização) fica explícita na posição de Tfouni (1988, 1995), quando sugere uma relação entre escrita, alfabetização e letramento como a existente entre produto e processo... enquanto os sistemas de escrita são produto cultural, a alfabetização e o letramento são processos de aquisição de um sistema escrito (Tfouni, 1988:9). A autora ressalta o âmbito individual ao qual pertence a alfabetização quando afirma que essa se refere à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para ler e escrever ou de práticas de linguagem, e que isso é levado a efeito, em geral, por meio do processo de escolarização e, portanto de instrução formal (ibidem:9).
9 Dentre as conseqüências dessa proposta teórica, destacamos a influência do letramento sobre indivíduos porque em sociedades letradas, como a nossa, encontramos: a) os indivíduos que não dominam a escrita mas que pertencem a esta sociedade, como os não-alfabetizados e, b) os que têm um domínio ainda limitado da escrita, devido a circunstâncias diversas. O proposto em (a) e (b) possibilita uma visão que concorda com a teoria exposta em Tfouni (1995) e em Leda (1995): da interpenetração do discurso oral no escrito e do discurso escrito no oral, e que, nesse sentido, considera-se também como discurso letrado o discurso oral interpenetrado pelo discurso escrito. Esse processo de interpenetração pode ser analisado como um dos aspectos de integração entre as duas modalidades da linguagem. Os estudos sobre as marcas de produção de textos orais e escritos compõem um outro tópico de interesse nas investigações sobre as especificidades da fala e escrita. A fala apresenta marcas explícitas de sua produção (hesitações, repetições, marcadores e truncamentos, entre outros). A escrita revela-se como produto acabado e os momentos de revisão, de retomada, de correção (os rascunhos) não estão presentes no produto final. Fiad justifica a relevância da pesquisa das marcas da reelaboração presentes em um texto quando afirma que Os estudos da aquisição da escrita preocupados com o processo têm olhado com especial atenção para esses materiais, entendendo que a análise dos manuscritos permite reconstruir o trabalho de enunciação escrita (Fiad, 1997:159).
10 A literatura também privilegiou, por um longo período, as diferenças de um ponto comparativo entre tipos de textos, mas não entre as modalidades oral e escrita propriamente ditas. Fávero, Andrade e Aquino alertam para a necessidade de um maior cuidado nas conclusões sobre a qualidade de elaboração e complexidade de uma modalidade em relação à outra, porque os critérios ou parâmetros de pesquisa adotados em vários estudos podem ter concorrido para o grau de ênfase conferido às diferenças:... podemos dizer que o problema parece decorrer da questão de critério(s) de pesquisa, não se podendo dessa forma generalizar, afirmando que uma seja mais complexa, melhor elaborada, mais explícita ou mais autônoma que a outra. (Fávero, Andrade e Aquino, 1994:279) A questão levantada por essas autoras merece destaque porque viabiliza o estudo da integração das modalidades sem neglicenciar as características intrínsecas de cada uma delas. Texto extraído de: MAC-KAY, A.P.M.G.. Atividade verbal: processo de diferença e integração entre fala e escrita.são Paulo, Plexus, 2000, p.13-19.