REFLEXÕES A PARTIR DO CONCEITO DE MEDIAÇÃO EM L.S. VYGOTSKI

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Transcrição:

REFLEXÕES A PARTIR DO CONCEITO DE MEDIAÇÃO EM L.S. VYGOTSKI Palavra-chave: educação mediada; Maria Sylvia Cardoso Carneiro UFSC/UFRGS 1 Introdução O conceito de mediação é central no pensamento de Vygotski. A partir das leituras e discussões realizadas durante o Seminário Avançado Mediação no ato educativo: conexões e interrogações nas abordagens sistêmica, institucional e sóciohistórica, o presente trabalho traz reflexões a partir deste autor para a compreensão da idéia de mediação. Tais reflexões contribuem também para os estudos que venho desenvolvendo sobre a produção social da deficiência mental. Com o pressuposto básico de que, mesmo diante de alterações orgânicas significativas, a deficiência mental é sempre produzida socialmente, busco um conceito de deficiência mental que dê conta de expressar o movimento da vida das pessoas. Movimento este que contemple as interações sociais, as expectativas, os limites e as possibilidades colocados pelo contexto sócio-histórico de pessoas com características orgânicas diferenciadas da maioria da população. O conceito de mediação em Vygotski Uma das bases da abordagem histórico-cultural, também conhecida como abordagem sócio-histórica, aqui representada pelo pensamento de Vygotski, é a idéia de social. Encontramos em Pino (1995) reflexões que nos ajudam a entender o significado do social nesta abordagem: Ser social não significa unicamente que a atividade envolve diferentes indivíduos, pois isto, por si só, não é distintivo da atividade humana, já que é uma qualidade geral presente na atividade de numerosas espécies animais. O que distingue a atividade humana e lhe confere seu caráter social é que, além de ser socialmente planejada, [...] tanto os instrumentos produzidos para realizá-la quanto o produto dela resultante são socializáveis, ou seja, podem ser usados pelos outros. (p. 31)

1 Nesta mesma direção, destaco uma passagem de Marx, em O Capital, que está publicada no livro Formação Social da Mente (Vygotski, 1991): A aranha realiza operações que lembram o tecelão, e as caixas suspensas que as abelhas constróem envergonham o trabalho de muitos arquitetos. Mas até mesmo o pior dos arquitetos difere, de início, da mais hábil das abelhas, pelo fato de que, antes de fazer uma caixa de madeira, ele já a construiu mentalmente. No final do processo do trabalho, ele obtém um resultado que já existia em sua mente antes de ele começar a construção. O arquiteto não só modifica a forma que lhe foi dada pela natureza, dentro das restrições impostas pela natureza, como também realiza um plano que lhe é próprio, definindo os meios e o caráter da atividade aos quais ele deve subordinar sua vontade. Pino (1995) afirma que a capacidade de conhecer é uma característica adquirida pelos homens ao longo da sua história social e cultural. O ato de conhecer resulta da combinação da ação do sujeito e das condições sociais e culturais que tornam possível esta ação. Portanto, ao mesmo tempo em que o ato de conhecer é singular, próprio de cada sujeito, é também social, é o resultado da interação com os outros. Assim, o conhecimento não é simples produção do sujeito em interação com o objeto, mas a apropriação de forma singular de um objeto que, por ser uma produção humana, veicula uma significação social. Portanto, é a ressignificação pelo sujeito de algo já significado socialmente, o que pressupõe uma atividade semiótica específica a cada sujeito. Este caráter semiótico da atividade humana é central no pensamento de Vygotski. Os signos são mediadores das atividades humanas e, portanto, são constitutivos do homem. Vygotski (1999) destaca o papel dos signos nas interações que temos com o mundo. Estes podem ser a linguagem (oral, gestual, escrita,...), um desenho, uma obra de arte, dentre outros. É a sua presença que caracteriza a atividade humana como atividade instrumental, ou seja, a atividade humana é sempre mediada por signos culturais. Nesse sentido, Vygotski (1999, p.150) cita Marx: Se a essência das coisas e sua forma de se manifestar coincidissem diretamente, toda ciência seria supérflua. Este caráter semiótico nos permite discutir a linguagem humana e os limites da linguagem nos animais. É evidente que os animais também se comunicam e têm uma dimensão coletiva no seu viver. Mas, diferentemente da linguagem

2 humana, é um tipo de comunicação que carece de signos que representem arbitrariamente um objeto ou uma ação. O máximo que se consegue é treinar um animal a responder a determinados comandos. Mesmo nos estudos mais recentes com chimpanzés acerca das possibilidades de aquisição de uma linguagem, observa-se que eles avançam bastante na relação símbolo e significado, chegando a se comunicar através de símbolos aprendidos, porém eles não conseguem atingir a dimensão sígnica (de representação) a ponto de poder ensinar o que aprenderam a outro sujeito. Como o ser humano iniciou a atividade instrumental, mediada por signos? Quando começou a ter capacidade de pensar sobre o que fazia, criar signos, e então planejar, comunicar aos outros? Para Marx, este salto se deu pelo trabalho, pela atividade manual. No livro A Ideologia Alemã (Marx & Engels, 1999, p.36), há uma passagem que talvez nos ajude a entender: A produção de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. Mais adiante, a célebre frase: Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência (p.37). Ou seja, aqui eles reafirmam a base material do humano. Toda a atividade humana (incluindo a atividade psíquica, com todas as suas fantasias, loucuras, desvarios) tem uma base material. Nada acontece desconectado da matéria. A questão é que muitas vezes não compreendemos ou não vemos a conexão. Então dá a impressão de que algumas atividades não têm uma relação com a materialidade 2. Nesta discussão, temos que estar atentos ao fato de que o contato com o mundo real, com a matéria, é sempre mediado por signos, ou seja, não é direto. Talvez as chamadas crianças selvagens ou um bebê ao nascer, experimentem um contato imediato, sem estas mediações simbólicas. Mas, a partir do momento que ingressamos na cultura, nossa relação com o mundo passa a ser mediada pelos valores, pelas verdades nela veiculadas. O que não significa que seremos passivamente moldados pela cultura. Interagimos com ela. Vygotski

3 afirma que o homem é produto e produtor de cultura. Ou seja, somos fruto das circunstâncias, mas também construímos estas circunstâncias, participamos como sujeito singular, que se singularizou a partir de sua cultura. Em outras palavras, Vygotski não reduz o sujeito ao coletivo, mas ele conclui que a gênese da constituição do sujeito é social. Para que ocorra mediação tem que haver necessariamente o signo. Nós, professores, precisamos entender que os signos que organizamos, que disponibilizamos para os alunos, podem ter diferentes significados. O problema é que muitas vezes pressupomos que o único significado é aquele que nós atribuímos ou que gostaríamos que fosse atribuído pelos alunos. Ora, se os signos, encharcados de significados e sentidos, são instrumentos de representação do real e não o real em si mesmo, há possibilidades diferentes de significá-los. O professor precisa estar atento a essas múltiplas possibilidades de significados e fazê-los circular. Este é o sentido da educação. Vygotski (1999) refere-se à educação como um domínio artificial: A educação não pode ser qualificada como o desenvolvimento artificial da criança. A educação é o domínio artificial dos processos naturais de desenvolvimento. A educação não apenas influi em alguns processos de desenvolvimento, mas reestrutura as funções do comportamento em toda sua amplitude (p.99). A educação constitui-se, então, num novo espaço (novo domínio) onde o desenvolvimento pode ocorrer através de outros instrumentos (diferentes dos que estão disponíveis no contexto natural). Não só a educação formal constitui-se num domínio artificial. Todas as estratégias de educação, mesmo que não planejadas conscientemente (a educação que a família proporciona em casa, por exemplo), constituem-se num domínio artificial. É principalmente a partir das interações na família que a criança se constitui e isso não se dá naturalmente. É interessante notar que na presença de uma deficiência fica mais evidente que o processo de desenvolvimento é construído a partir de condições concretas que não estão prédefinidas no sujeito nem na família ou grupo cultural ao qual pertence, mas que se constróem nas relações sociais. Quando não há a presença de signos culturais

4 mediadores (como no caso das crianças selvagens) o padrão de desenvolvimento se distancia do humano. O conceito de zona de desenvolvimento proximal Tanto a avaliação das capacidades intelectuais dos sujeitos nos sistemas de ensino tradicionais quanto os testes psicológicos tradicionalmente utilizados para avaliação intelectual centram-se no desenvolvimento já efetivado, ou seja, em categorias intrapsicológicas, ignorando as funções que estão em processo de maturação. O indivíduo é avaliado pelas respostas que dá, não podendo receber pistas ou ajuda. O que acontece é que esta perspectiva de avaliação considera apenas o nível de desenvolvimento efetivo, ou seja, aquelas funções que já estão desenvolvidas na criança, permitindo que ela resolva determinados problemas de forma independente. Não considera que as interações promovem processos de aprendizagem, impulsionando processos internos de desenvolvimento. Depois que o indivíduo se apropria desses processos, estes não só farão parte do desenvolvimento como também o impulsionarão para novos avanços. Portanto, Vygotski evidencia que, para a avaliação do nível de desenvolvimento cognitivo da criança, deve-se considerar também o nível de desenvolvimento potencial, referindose ao nível expresso pela criança quando soluciona problemas sob orientação de um adulto ou com auxílio de companheiros mais experientes. A consideração destes dois níveis de desenvolvimento permite que se identifique não só o processo de desenvolvimento já efetivado como também os processos que estão em vias de se efetivar. O movimento entre estes dois níveis de desenvolvimento, traduzidos nas tarefas que a criança consegue realizar com auxílio de pessoas mais experientes, é denominado por Vygotski zona de desenvolvimento proximal (ZDP). ZDP: Zanella (2001) traz uma contribuição importante nos estudos sobre a A ZDP consiste no campo interpsicológico onde significações são socialmente produzidas e particularmente apropriadas, constituído nas e pelas relações sociais em que os sujeitos encontram-se envolvidos com problemas ou situações em que há o embate, a troca de idéias, o compartilhar e confrontar pontos de vista diferenciados. E que relações são essas?

5 Podem ser tanto relações adulto/criança, relações de pares ou mesmo relações com um interlocutor ausente: o que caracteriza a ZDP é a confrontação ativa e cooperativa de compreensões variadas a respeito de uma dada situação. (p. 113) A partir destas idéias, podemos entender a ZDP como um campo de possibilidades, como uma teia coletiva" em que todos estão envolvidos com a criação de pontos de apoio. Estes campos de possibilidades são concretos, pois há trocas efetivas, há interações riquíssimas entre pessoas com diferentes trajetórias e leituras. Portanto, é nas ZDPs que precisamos atuar, professores e alunos, na tentativa de criação e disponibilização de signos mediadores, que atribuam significados aos conteúdos estudados. A produção social da inteligência e da deficiência mental Sabemos que o mundo real dos homens é o mundo dos ordenamentos lógicos, portanto é um mundo sígnico. Enquanto o sujeito não tem acesso ao universo dos signos e aos processos de significação, ele não desenvolve as formas superiores de pensamento. Portanto, este não-desenvolvimento tem muito mais a ver com a escassez ou mesmo ausência de oportunidades de mediação semiótica do que com a lesão, com a alteração cromossômica ou com qualquer outra condição, orgânica ou não, significada como incapacidade individual. Consideremos somente a condição orgânica de uma pessoa com Síndrome de Down, por exemplo. Sabemos que a trissomia do 21 altera todas as células, todos os sistemas, em especial o sistema nervoso (tanto em nível de formação de estruturas quanto em nível de funcionamento) 3. É claro que deste ponto de vista, as possibilidades de desenvolvimento cognitivo são limitadas, pois há alterações estruturais e funcionais. Porém, se diante dessas condições alteradas, com um nítido comprometimento no funcionamento mental, possibilitamos a esta pessoa muito mais estímulos, desafios, acesso aos signos mediadores que permitem o acesso a funções superiores, aí as possibilidades são ilimitadas.

6 A este movimento, que cria condições de possibilidade de um desenvolvimento peculiar em um sujeito com características significativamente diferenciadas da maioria da população, Vygotski chama de compensação: O fato fundamental que encontramos no desenvolvimento agravado pelo defeito, é o duplo papel que desempenha a insuficiência orgânica no processo deste desenvolvimento e da formação da personalidade da criança. Por uma parte, o defeito é o menos, a limitação, a debilidade, a diminuição do desenvolvimento; por outra, precisamente porque cria dificuldades, estimula um avanço elevado e intensificado. A tese central da defectologia atual é a seguinte: todo defeito cria os estímulos para elaborar uma compensação. (Vygotski, 1997, p. 14) Portanto, é através da compensação que estes sujeitos podem se desenvolver numa direção diferente daquela traçada pelos prognósticos tradicionais. É através da compensação que sujeitos com Síndrome de Down, por exemplo, têm se constituído com características diferentes e até contrárias àquelas previstas para essa condição. Não se trata de comparar o desenvolvimento desses sujeitos, que possuem limites marcados biologicamente, com o de sujeitos que trazem as possibilidades orgânicas íntegras, sem comprometimentos (os normais ). Trata-se sim de entender que a Síndrome de Down, e tudo o que ela altera biologicamente, permanece, não se transforma. O que pode mudar é a relação com a Síndrome. Os avanços na área médica contribuíram, por exemplo, para que se minimizem problemas cardíacos, respiratórios e de postura, que são comuns na Síndrome de Down. Aliado a esses avanços, o entendimento de que estas pessoas também precisam de atividade física, também precisam de uma dieta alimentar balanceada, também podem aprender e ser autônomas, vem mudando significativamente as relações sociais, incluindo aí as expectativas que se tem em relação a estas pessoas. Há uns vinte anos atrás era comum se achar que uma das características da Síndrome de Down era a obesidade. Era raro encontrar uma pessoa com S. de Down alta e magra. Hoje, há atletas com performances invejáveis. Da mesma forma, na escola, há cada vez mais crianças Down se alfabetizando, concluindo as séries iniciais, um número menor concluindo o ensino médio e menos ainda chegando ao ensino superior. Mesmo em número pequeno, cada um desses sujeitos que conquista um nível a

7 mais na sua escolarização, no seu desempenho esportivo ou artístico, nos mostra que é possível que todo ser humano aprenda. Que todos, ainda que com condições físicas, mentais, sensoriais, emocionais significativamente diferentes, podem desenvolver sua inteligência. Aí se coloca uma possibilidade de se compreender a deficiência mental como uma condição socialmente construída. Nesse sentido, podemos afirmar que a condição deficiente é determinada mais pelas condições concretas de vida, pelas relações que se estabelecem entre as pessoas, do que por características pessoais próprias de quem tem alguma limitação orgânica. Assim, é possível compreender que as pessoas, mesmo aquelas com características físicas identificadas socialmente como deficiências, podem relacionar-se e constituir-se de outras formas, a partir de outras relações (GARCIA, 1999). Aproximações entre Vygotski e Maturana As leituras e discussões do Seminário possibilitaram o estabelecimento de algumas relações entre o pensamento de Vygotski e o de Maturana. A relevância dada à linguagem é uma delas. Ambos os autores pontuam que a linguagem é mais do que um instrumento de comunicação. Ela é o instrumento que nos permite representar o mundo (Vygotski). Ela nos permite estar no mundo (Maturana). É através dos significados e sentidos das palavras, que temos acesso ao mundo, ao conhecimento. Portanto, a linguagem organiza o pensamento. É através dela que nos apropriamos da cultura, desenvolvemos conceitos. Para Vygotski, as palavras são conceitos, pois cada uma carrega em si um ou mais significados que, necessariamente, são abstraídos do objeto pretensamente concreto. Outro ponto de aproximação é a questão da biologia e da cultura. É muito interessante e, ao mesmo tempo difícil de compreender e explicar, o pressuposto de indissociabilidade da biologia e da cultura. Não há produção cultural sem uma base material, orgânica, assim como não há aspectos biológicos humanos desvinculados do seu desenvolvimento cultural. Pois, mesmo as manifestações mais simples, como os reflexos no bebê, quando se objetivam, em contato com a cultura, adquirem significações contextuais. Aqui é possível relacionar o que Vygotski chama de

8 transformação de funções elementares em funções psicológicas superiores. As funções elementares são de origem biológica e estão presentes no ser humano desde o nascimento, assim como nos animais, enquanto as funções psicológicas superiores, característicamente humanas, pressupõem operações mentais com signos e permitem ao indivíduo fazer-se sujeito capaz de pensar a realidade e transformá-la. Estas funções se desenvolvem a partir das interações sociais, mediadas pelos signos culturais. As funções psicológicas superiores, portanto, não estão dadas ao nascer, mas serão formadas na medida em que o indivíduo interagir com o meio social. Não há cultura, contexto social, história, sem a existência de homens concretos, entendidos a partir da sua materialidade, que inclui a configuração biológica (Marx já nos dizia isso). Por sua vez, os aspectos biológicos já estão atravessados pelos culturais desde o nascimento (ou até antes). Isso é evidente quando pensamos em como cuidamos do nosso corpo físico, como nos alimentamos, como é feita a higiene, como nos vestimos, como nos movimentamos/deslocamos. Ou seja, não é possível separar biologia e cultura. Há os casos das "crianças selvagens" (Victor de Aveyron, na França; Amala e Kamala, na Índia). Como estas crianças se constituíram como seres humanos? Sem referências culturais humanas, portanto sem mediações semióticas (através de signos, de representações do mundo), quando foram encontradas possuíam características muito mais próximas dos animais, tanto biológica quanto culturalmente falando. A criança inicia seu desenvolvimento em um mundo já humanizado, carregado de significados sociais atribuídos pelas gerações que a precedem ( o que provavelmente não aconteceu com as chamadas criançasselvagens ). Portanto, é possível afirmar que todo o desenvolvimento humano, incluindo aqui tanto o padrão normal quanto o desenvolvimento peculiar de sujeitos com diferenças significativas, se dá sempre no entrelaçamento de aspectos biológicos e culturais. Referências

9 GARCIA, Rosalba M.C.. A educação de sujeitos considerados portadores de deficiência: contribuições vygotskianas. Ponto de Vista. Florianópolis, p. 42-46, 1999. MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na educação e na política. Belo Horizonte : UFMG, 2002. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo : Hucitec, 1999. PINO, A. Semiótica e cognição na perspectiva histórico-cultural. Temas em Psicologia. São Paulo, Sociedade Brasileira de Psicologia. 1995, n. 2 p. 31-40. VYGOTSKI, Lev S. A formação social da mente. São Paulo : Martins Fontes, 1991.. Obras escogidas V : fundamentos de defectología. Madrid : Visor, 1997.. Teoria e Método em Psicologia. São Paulo : Martins Fontes, 1999. ZANELLA, Andréa V. Vigotski : Contexto, contribuições à psicologia e o conceito de zona de desenvolvimento proximal. Itajaí, SC : UNIVALI, 2001. 1 Pesquisadora do Núcleo de Investigação do Desenvolvimento Humano/CED/UFSC. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. 2 Materialidade aqui entendida como as condições concretas de existência, contemplando desde as bases físicas até o que é produzido nas relações sociais (o conhecimento, os sonhos, os desejos, as emoções). 3 Sobre aspectos orgânicos da Síndrome de Down, ver SCHWARTZMAN, José S. et al. Síndrome de Down. São Paulo : Mackenzie : Memnon, 1999.