Atrofia de Múltiplos Sistemas: gestão de caso complexo em uma Unidade de Saúde da Família

Documentos relacionados
Atenção Básica: organização do trabalho na perspectiva da longitudinalidade e da coordenação do cuidado

ESCLEROSE MÚLTIPLA. Prof. Fernando Ramos Gonçalves

TÍTULO: ATROFIA DE MULTIPLOS SISTEMAS: RELATO DE CASO DR DIAGNÓSTICO REALIZADO EM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO

PROPOSTA DA LINHA DE CUIDADO DA SAÚDE DO IDOSO. Área Técnica Saúde da Pessoa Idosa

17/08/2018. Disfagia Neurogênica: Acidente Vascular Encefálico

Imagem 1 Corpos de Lafora em biópsia axilar corados com Hematoxilina e Eosina (esquerda) e PAS (direita). Fonte: Gökdemir et al, 2012.

Depressão, vamos virar este jogo?

DISTONIA FOCAL DO MÚSICO. RosylaneNascimento das Mercês Rocha; Joyce Pessoa Ferro; Denise Alves Souto; ThaysRettoreOrlando Cabral ZocrattoGomes.

Imagem 1 Corpos de Lafora em biópsia axilar corados com Hematoxilina e Eosina (esquerda) e PAS (direita). Fonte: Gökdemir et al, 2012.

Qualidade de vida de pacientes idosos com artrite reumatóide: revisão de literatura

ENFERMAGEM DOENÇAS CRONICAS NÃO TRANMISSIVEIS AVE / AVC. Profª. Tatiane da Silva Campos

Paralisia periódica hipocalêmica: Relato de caso em. paciente de ascendência africana.

Prejuízos Cognitivos e Comportamentais secundários à Epilepsia Autores: Thaís Martins; Calleo Henderson; Sandra Barboza. Instituição:Universidade

RESIDÊNCIA MÉDICA Concurso de Admissão Prova Escrita Dissertativa (16/11/2014) PSIQUIATRIA DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA E PSICOGERIATRIA

Ressonância magnética (RM) de encéfalo Análise das Imagens

DEMÊNCIA? O QUE é 45 MILHOES 70% O QUE É DEMÊNCIA? A DEMÊNCIA NAO É UMA DOENÇA EM 2013, DEMÊNCIA. Memória; Raciocínio; Planejamento; Aprendizagem;

Seminário Grandes Síndromes

Doenças Neurodegenerativas Relacionadas ao Envelhecimento

DEPRESSÃO PSICÓTICA E DEMÊNCIA POR CORPÚSCULOS DE LEWY EM IDOSA: RELATO DE CASO

DOENÇA DE PARKINSON O QUE É A DOENÇA

Patologias psiquiátricas mais prevalentes na atenção básica: Alguns sintomas físicos ocorrem sem nenhuma causa física e nesses casos,

VII CONGRESSO BRASILEIRO DE NEUROPSIOUIATRIA GERIÁTRICA CONGRESSO BRASILEIRO DE AL2HEIMER CENTRO DE CONVENÇÕES FREI CANECA I SÃO PAULO I SP

TERMO DE ESCLARECIMENTO E RESPONSABILIDADE AZATIOPRINA, GLATIRÂMER, BETAINTERFERONAS, NATALIZUMABE E FINGOLIMODE.

Relato de Caso: Porfiria Aguda Intermitente

AVALIAÇÃO DA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA NA REDUÇÃO DE INTERNAÇÕES HOSPITALARES EM FLORIANÓPOLIS SANTA

Doença de Alzheimer: o cuidado no diagnóstico

Grupo de Apoio aos Pacientes com Doença de Parkinson no HU/UFJF

MÓDULO 6 - USO NOCIVO DE SUBSTÂNCIAS - ÁLCOOL

Identifique-se na parte inferior desta capa. Caso se identifique em qualquer outro local deste Caderno, você será excluído do Processo Seletivo.

Emergências Oncológicas - Síndrome de. Compressão Medular na Emergência

HORÁRIO DA DATA ATIVIDADE TÍTULO ATIVIDADE

TRAUMATISMO RAQUIMEDULAR

PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DOS PACIENTES EM CUIDADOS PALIATIVOS NO GRUPO INTERDISCIPLINAR DE SUPORTE ONCOLÓGICO

SOBRECARGA DO CUIDADOR DE DEMÊNCIA FRONTOTEMPORAL E DOENÇA DE ALZHEIMER.

INTERFACE DOS DISTÚRBIOS PSIQUIÁTRICOS COM A NEUROLOGIA

Síndrome de Charles Bonnet

ASSISTÊNCIA DE ENFERMAGEM AO PACIENTE COM DOENÇA DE PARKINSON: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Clínica Médica no Brasil: Realidade e Perspectivas. Um olhar da Medicina de Família e Comunidade

DOENÇA DE PARKINSON NA VIDA SENIL PANORAMA DAS TAXAS DE MORBIMORTALIDADE E INCIDÊNCIA ENTRE AS REGIÕES BRASILEIRAS

AVALIAÇÃO FONOAUDIOLÓGICA NA ATROFIA DE MÚLTIPLOS SISTEMAS. Estudo com cinco pacientes

Dut 33. Implante de eletrodos e/ou gerador para estimulação Medular

Fatores de risco de queda na pessoa idosa residente na comunidade: Revisão Integrativa da Literatura

POLÍTICAS PÚBLICAS ATENÇÃO PRIMÁRIA A SAÚDE

Demência de Alzheimer. Dra. Célia Petrossi Gallo Garcia Médica Psiquiatra PAI-ZN

Programa de Residência Multiprofissional em Saúde

Título do Trabalho: Ansiedade e Depressão em Pacientes com Esclerose Múltipla em Brasília Autores: Tauil CB; Dias RM; Sousa ACJ; Valencia CEU; Campos

Imagem da Semana: Ressonância nuclear magnética

Síncope na emergência

Real Hospital Português de Beneficência em Pernambuco Clínica Médica TONTURA. R1 Bruna Lima R2 Priscila Machado Preceptor Flávio Pacheco

Anatomia da Medula Vertebral

Enxaqueca Crônica. Rafael G. S. Watanabe. Médico neurologista

ICS EDUCATIONAL COURSE

GRAVE. DEPRESSAo O QUE É A DEPRESSAO GRAVE? A depressão grave é uma condição médica comum e afeta 121 MILHÕES de pessoas em todo o mundo.

Insônia leva à busca de "medicamentos tarja-preta", como os benzodiazepínicos, que, a longo prazo, podem causar dependência química

Amiotrofias Espinhais Progressivas

Gestão da Atenção Especializada e articulação com a Atenção Básica

PROTOCOLO DE GERENCIAMENTO DE SEPSE 11- INSTRUÇÕES MULTIPROFISSINAIS ESPECÍFICAS: TIPO DE INSTRUÇÃO. Primeiras 06 horas

Internato de Neurologia Quinto Ano Médico. Ano 2015

Neuromodulação. Existem três tipos de Neuroestimulação previstas no rol ANS, RN 428 todas elas com

ONTARGET - Telmisartan, Ramipril, or Both in Patients at High Risk for Vascular Events N Engl J Med 2008;358:

PROJETO DE LEI DO SENADO Nº, DE 2012

Material e Métodos Relatamos o caso de uma paciente do sexo feminino, 14 anos, internada para investigação de doença reumatológica

Alterações vocais no Parkinson e método Lee Silverman

PERCEPÇÃO DE FISIOTERAPEUTAS RESIDENTES SOBRE IDOSOS CUIDADORES DE IDOSOS EM UM AMBULATÓRIO DE FISIOTERAPIA: RELATO DE EXPERIÊNCIA

PREVENÇÃO DE QUEDAS JUNTO AOS IDOSOS PORTADORES DA DOENÇA DE PARKINSON

Uso de antidepressivos na clínica ginecológica

26ª Reunião, Extraordinária Comissão de Assuntos Sociais

Plano de curso da disciplina de NEUROLOGIA

O PAPEL DA ATENÇÃO PRIMÁRIA NA TUBERCULOSE

Doenças do Sistema Nervoso

REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE Belo Horizonte Out. 2009

O PERFIL DOS PACIENTES COM SÍNDROME DE GUILLAIN-BARRÉ ATENDIDOS EM UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO

CONCURSO PÚBLICO DE SELEÇÃO PARA RESIDÊNCIA MÉDICA

Cultura de Segurança do paciente na Atenção Primária à Saúde

PROFAM. O Perfil do Médico de Família

SUMÁRIO. Sobre o curso Pág. 3. Etapas do Processo Seletivo. Cronograma de Aulas. Coordenação Programa e metodologia; Investimento.

NORM.TEC.Nº003/2010/DIR (Normativa possui ANEXOS I e II) Maringá, 17 de março de 2010

Depressão Pós Parto. (NEJM, Dez 2016)

André Luís Montillo UVA

25 mg, 100 mg e 200 mg (comprimidos) Cópia dos exames: colesterol total e frações, triglicerídeos, glicemia de jejum

P ERGUNTAR ( o máximo possível):

Processo Seletivo Unificado de Residência Médica 2017 PADRÃO DE RESPOSTAS PSIQUIATRIA DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

Fundação 28 de setembro de Total de Médicos 459. Clientes Mais de 56 mil. Colaboradores Diretos Mais de mil

ARTIGOS. INTEGRALIDADE: elenco de serviços oferecidos

Complexidade da especialidade. Proposta Especialidade NEUROFUNCIONAL segundo os critérios da CBO e outros. Complexidade da especialidade

CEFALEIAS PRIMÁRIAS NA EMERGÊNCIA PAULO SÉRGIO DE FARIA COORDENADOR DO AMBULATÓRIO DE CEFALEIAS-HGG

Experiências em Andaluzía da ampliação dos escopos de prática da Emfermagem

A PREVALÊNCIA DA DOENÇA DE PARKINSON NO MUNICÍPIO DE ITAPEVA-SP

PRINCÍPIOS PARA O CUIDADO DOMICILIAR POR PROFISSIONAIS DE NÍVEL SUPERIOR - FECALOMA: ABORDAGEM CLÍNICA, PRINCÍPIOS E INTERVENÇÕES

FISIOTERAPIA NEUROMUSCULOESQUELÉTICA Código Interno: 100

V FORUM DE MEDICINA DO TRABALHO CFM Conselheiro ALBERTO CARVALHO DE ALMEIDA

EBOOK SINTOMAS DEPRESSÃO DA DIEGO TINOCO

Estado do Rio de Janeiro Prefeitura Municipal de Carapebus Secretaria Municipal de Saúde

Relatório Gerencial Do Perfil Epidemiológico Da Unidade Concórdia do Complexo Hospitalar São Francisco

Segundo OMS, o transtorno afetivo afeta cerca de 50 milhões de pessoas no mundo, sendo a primeira causa de incapacidade para o trabalho entre todos

DIRETRIZES SOBRE COMORBIDADES PSIQUIÁTRICAS EM DEPENDÊNCIA AO ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS

Cuidados em Oncologia: o Desafio da Integralidade. Gelcio Luiz Quintella Mendes Coordenador de Assistência Instituto Nacional de Câncer

PARÂMETROS DE QUALIDADE PARA RESIDÊNCIA EM MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE

ENFERMAGEM DOENÇAS HEPÁTICAS. Profª. Tatiane da Silva Campos

Transcrição:

www.rbmfc.org.br CASOS CLÍNICOS Atrofia de Múltiplos Sistemas: gestão de caso complexo em uma Unidade de Saúde da Família Multiple System Atrophy: complex case management in a Family Health Team Atrofia multissistémica: gestión de caso complejo en una Unidad de Salud Familiar Natália Rocha Henriques Magela. Associação de Apoio a Projetos Comunitários de Jaboticabal (AAPROCOM). Jaboticabal, SP, Brasil. nataliarocha7@gmail.com. Luciane Loures dos Santos. Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Ribeirão Preto, SP, Brasil. luloures@fmrp.usp.br (Autora correspondente) Tiago Batistella. Núcleo de Saúde da Família II da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Ribeirão Preto, SP, Brasil. tatobatato@bol.com.br Marcela Stábile da Silva Fukui. Núcleo de Saúde da Família II da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Ribeirão Preto, SP, Brasil. marcelastabile@hotmail.com Janise Braga Barros Ferreira. Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Ribeirão Preto, SP, Brasil. janise@fmrp.usp.br Resumo A Atrofia de Múltiplos Sistemas é uma doença neurodegenerativa grave, caracterizada por falência autonômica progressiva, com características parkinsonianas, cerebelares e piramidais em diferentes combinações. É a terceira causa de Parkinsonismo, atingindo 7,8% dos maiores de 40 anos, de evolução rápida e com média de 6 a 10 anos de vida após o início dos sintomas. O objetivo do estudo foi relatar um caso complexo de Atrofia de Múltiplos Sistemas acompanhado em uma Unidade de Saúde da Família. Reforça a importância da longitudinalidade para a coordenação do cuidado, o diagnóstico diferencial e a integralidade da atenção. O olhar global da equipe de saúde da família influenciou o manejo do caso, favorecendo o trabalho em rede com a abordagem especializada. Destaca a magnitude da gestão do cuidado praticada na Atenção Primária à Saúde na condução dos casos complexos. Abstract Multiple System Atrophy is a severe neurodegenerative disorder characterized by progressive autonomic failure with parkinsonian features, pyramidal and cerebellar in different combinations. It is the third leading cause of parkinsonism, reaching 7.8% of those over 40 years old, of rapid development and an average lifespan of 6 to 10 years after the onset of symptoms. The aim of the study was to report a complex case of Multiple System Atrophy monitored in a Family Health Team. It reinforces the importance of longitudinality for the coordination of care, the differential diagnosis, and comprehensive care. The overall look of the family health team influenced the handling of the case favoring networking with the specialized approach. It highlights the magnitude of the care management practiced in Primary Health Care in the conduction of complex cases. Palavras-chave: Parkinsonismo Atrofia de Múltiplos Sistemas Administração de Caso Atenção Primária à Saúde Estratégia de Saúde da Família Diagnóstico Diferencial Keywords: Parkinsonian Disorders Multiple System Atrophy Case Management Primary Health Care Family Health Strategy Diagnosis, Differential Como citar: Magela NRH, Santos LL, Batistella T, Fukui MSS, Ferreira JBB. Atrofia de Múltiplos Sistemas: gestão de caso complexo em uma Unidade de Saúde da Família. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2016;11(38):1-6. http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc11(38)1328 Fonte de financiamento: declaram não haver. Parecer CEP: não se aplica. Conflito de interesses: declaram não haver. Procedência e revisão por pares: revisado por pares. Recebido em: 29/04/2016. Aprovado em: 24/08/2016. Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, 2016 Jan-Dez; 11(38):1-6 1

Atrofia de Múltiplos Sistemas na USF Resumen La Atrofia Multissistémica es una enfermedad neurodegenerativa grave caracterizada por insuficiencia autonómica progresiva con características parkinsonianos, piramidal y del cerebelo en diferentes combinaciones. Es la tercera causa de parkinsonismo, alcanzando el 7,8% de los mayores de 40 años, de rápido desarrollo y de vida media de 6 a 10 años después de la aparición de los síntomas. El objetivo del estudio fue reportar un complejo caso de Atrofia Multissistémica en una Unidad de Salud Familiar. Se refuerza la importancia de longitudinalidad para la coordinación de la atención, el diagnóstico diferencial y la atención integral. El aspecto general del equipo de salud de la familia influyó en el manejo del caso a favor de la creación de redes con enfoque especializado. Destaca la magnitud de la Gestión de la Atención practicada en la atención primaria de salud en la gestión de casos complejos. Palabras clave: Trastornos Parkinsonianos Atrofia Multissistémica Manejo de Caso Atención Primaria de Salud Estrategia de Salud Familiar Diagnóstico Diferencial Introdução O trabalho de uma equipe de Atenção Primária à Saúde (APS) tem como características a assistência integral à pessoa e sua família, pautado no cuidado longitudinal, frente a queixas e problemas de saúde vagos, inespecíficos e prevalentes. 1 Muitas vezes, são necessários vários contatos com o paciente para definição e resolução de suas queixas e problemas indiferenciados. Ainda que bastante variado, cerca de 5% dos atendimentos clínicos necessitam de cuidados partilhados com especialistas focais em outros pontos da Rede de Atenção à Saúde (RAS) tanto para confirmação, elucidação diagnóstica, realização de exames complementares, quanto para dar continuidade ao tratamento do paciente. 1,2 Neste sentido, o Parkinsonismo é uma síndrome clínica bastante representativa desta necessidade de cuidado interdisciplinar, dada a sua elevada prevalência entre os idosos, a variedade de diagnósticos diferenciais e o acometimento de diversos sistemas, que exigem um olhar atento dos profissionais de saúde. 2,3 A primeira causa de Parkinsonismo é a Doença de Parkinson Idiopática (DPI), seguida da Paralisa Supranuclear Progressiva e da Atrofia de Múltiplos Sistemas (AMS). 4 A AMS é uma doença neurodegenerativa, com prevalência de 3,4 a 4,9 casos por 100.000 habitantes, atingindo 7,8 em 100.000 maiores de 40 anos, sendo mais comum entre aqueles com mais de 60 anos, em ambos os sexos. Após o início dos sintomas, a média de vida dos pacientes é de 6 a 10 anos. 3 É caracterizada por falência autonômica progressiva, apresentando características parkinsonianas, cerebelares e piramidais em diferentes combinações, sendo classificada em subtipos de acordo com os sintomas predominantes. É denominada Degeneração Estriatonigral, quando predominam os sintomas parkinsonianos; quando os cerebelares são mais comuns é conhecida como Atrofia Olivopontocerebelar e quando os sintomas mais típicos são os autonômicos, denomina-se síndrome de Shy-Drager. 3-5 A AMS apresenta o Parkinsonismo como principal déficit motor, sendo muito confundida com a DPI em estágios iniciais. Cerca de metade dos pacientes com AMS morrem diagnosticados como portadores de DPI. 3,5 Clinicamente, em comum com a DPI, a AMS possui uma fase prodrômica motora em 20 a 75% dos casos, incluindo disfunção sexual, retenção ou incontinência urinária e hipotensão ortostática. 3 Falência autonômica grave e precoce é uma característica fundamental para o diagnóstico de AMS, afetando principalmente os sistemas urogenital e cardiovascular, descritos na Tabela 1. A disfunção erétil ocorre tipicamente no início da doença. 3,5 Sintomas motores de Parkinsonismo, como lentidão de movimentos, rigidez e tendência à queda, caracterizam o subtipo parkinsoniano da doença. A degeneração progressiva da via estriatonigral ocasiona pouca ou ausência da resposta à levodopa, sendo um critério diagnóstico obrigatório. 3,5 2 Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, 2016 Jan-Dez; 11(38):1-6

Magela NRH, Santos LL, Batistella T, Fukui MSS, Ferreira JBB Tabela 1. Sintomas e diagnóstico diferencial da falência autonômica. Falência autonômica Sintomas Diagnóstico diferencial Urogenital Disfunção erétil HPB em homens Urgência, polaciúria e incontinência Prolapso uterino ou flacidez perianal em mulheres Cardiovascular Hipotensão postural com síncope, tonturas, fraqueza e cefaleia HPB: hiperplasia prostática benigna. Quedas recorrentes, disfonia, disartria, disfagia e salivação excessiva são características dos estágios mais avançados da doença. Constipação e diarreia também podem ocorrer como disfunção do Sistema Nervoso Autônomo. Além disso, alterações comportamentais como depressão, ansiedade, ataques de pânico, e ideação suicida são descritos em cerca de 1/3 dos casos. 3-5 O diagnóstico da AMS deve ser considerado na presença de Parkinsonismo ou ataxia cerebelar, acompanhado por ao menos uma característica de falência autonômica e, pelo menos, uma das características adicionais, como marcha parkinsoniana ou uma síndrome cerebelar, conforme Figura 1. O diagnóstico definitivo é dado por análise patológica. 3 Figura 1. Características do diagnóstico da Atrofia de Múltiplos Sistemas (AMS). O objetivo deste relato foi apresentar um caso complexo de Atrofia de Múltiplos Sistemas acompanhado pela equipe de uma Unidade de Saúde da Família (USF). Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, 2016 Jan-Dez; 11(38):1-6 3

Atrofia de Múltiplos Sistemas na USF Detalhamento de caso Paciente do sexo masculino, 71 anos, contador, casado, procurou a Unidade de Saúde da Família com queixa de diminuição de força e dor em membros inferiores (MMII), do tipo queimação. Dois meses após o início do quadro, a dor se estendeu para os membros superiores (MMSS), associada à dificuldade para pegar e segurar os objetos. Paciente relatava dificuldade de iniciar o sono devido à dor e referia ter hiperplasia prostática benigna (HPB) em seguimento na urologia. No exame físico não apresentava sinais neurológicos, apenas discreta diminuição de força contra a resistência em MMII. Foram solicitados os exames laboratoriais: glicemia, eletrólitos, sorologias, avaliação renal e TSH. Todos apresentaram resultados normais. Diante do quadro, o paciente foi encaminhado para avaliação no serviço secundário de Neurologia do município, onde realizou outros exames, cujos resultados estão descritos na Tabela 2. Tabela 2. Resultados dos exames iniciais solicitados após avaliação neurológica. Exames Eletroneuromiografia de membros Ultrassom com Doppler de MMII Tomografia computadorizada de crânio Ressonância magnética de coluna e lombar Ressonância magnética de coluna cervical Resultados Comprometimento pré-ganglionar crônico das raízes cervicais C3 a C7 dir e esq, mais evidente em C4 e C5 onde havia evidência de perda axonal; Comprometimento pré-ganglionar crônico das raízes lombo-sacras L3 a S1 dir e esq, mais evidentes em L4 e L5, com sinais discretos a moderados de perdas axonal Sem alterações Pequenos infartos lacunares e atrofia cerebral Espondilose lombar com degeneração discal, sem sinais de hérnias discais ou compressões radiculares. Espondilose cervical com degeneração de múltiplos discos, protusão discal entre C4-C5 com compressão de saco dural. A partir dos resultados dos exames complementares, o neurologista prescreveu carbamazepina para controle de dor neuropática e o encaminhou para seguimento na ortopedia e fisioterapia. Em acompanhamento na USF, o paciente referia melhora parcial das dores nos MMII com a realização de fisioterapia, mas queixava-se de ansiedade, depressão, diminuição do apetite e insônia. Foi reorientado quanto à utilização da carbamazepina, pois estava fazendo uso irregular. A avaliação ortopédica incluiu a realização da ressonância magnética de coluna cervical e lombar, cujos resultados encontram-se na Tabela 2. A partir dos resultados, o paciente recebeu o diagnóstico de Dor neuropática secundária à polineuropatia por espondiloartrose e continuou o seguimento no serviço de Neurologia e na USF. Recebeu alta da Ortopedia porque foi descartada qualquer alteração na coluna lombar que justificasse hiperalgesia nos membros inferiores. Em nova consulta na USF (7 meses após início do quadro) o paciente se dizia cada vez mais desanimado, apático, com desejo de permanecer deitado durante todo dia. Referia desesperança, falta de vontade de trabalhar, sentimento de menos valia. Relacionava parte desses sentimentos à limitação física que as dores em membros lhe causavam e por estresse de cunho familiar. Paciente apresentava exames laboratoriais normais (TSH, eletrólitos, glicemia e lipidograma). 4 Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, 2016 Jan-Dez; 11(38):1-6

Magela NRH, Santos LL, Batistella T, Fukui MSS, Ferreira JBB Foi levantada a hipótese de Episódio Depressivo Maior, iniciando o uso de sertralina e agendada consulta conjunta com o psiquiatra por meio do matriciamento em Saúde Mental na própria USF. Os demais medicamentos foram mantidos. Cabe pontuar que atendimentos e visitas domiciliares foram realizados por profissionais da equipe de referência da USF e por nutricionistas, fisioterapeutas e fonoaudiólogos da Residência Multiprofissional durante a condução do caso. Passados aproximadamente um ano e meio do início dos sintomas, e quatro meses após última consulta na USF, o paciente retornou referindo não estar tomando nenhuma medicação prescrita por não perceber melhora de suas queixas. Continuava realizando fisioterapia, porém não percebia retorno da força nos MMII. Além disso, referia piora da apatia, perda de apetite, desânimo, vontade de permanecer deitado. Já não conseguia mais trabalhar. Tentou iniciar atividade física em academia, tendo melhora das dores logo após os exercícios, porém desistiu rapidamente. O tratamento para depressão foi reiniciado com citalopram, já que o mesmo referia não ter se adaptado à sertralina por efeitos colaterais. Cerca de 3 meses após, iniciou uso de fraldas devido à incontinência urinária, permanecendo os exames laboratoriais normais, inclusive urocultura. Foi levantada a hipótese de demência vascular e incontinência de origem neurogênica pelo serviço de Neurologia. Em retorno, no atendimento clínico em conjunto com a Psiquiatria, observou-se piora da marcha, com característica Parkinsoniana, tremores de extremidade discretos e presença de roda denteada bilateralmente em MMSS. Foi sugerida a hipótese de Episódio Depressivo Maior, interrogada doença de Parkinson Idiopática ou outra causa de doença neurodegenerativa. Reforçou-se a importância do uso correto da medicação antidepressiva, além de encaminhamento para o ambulatório de Neurogeriatria para dar continuidade à investigação da causa orgânica que justificasse esse conjunto de sinais e sintomas. Nos retornos subsequentes com a equipe de saúde ampliada, na USF, observou-se piora do quadro, com incontinência também fecal, dificuldade de marcha com incapacidade para deambular sozinho e desequilíbrio acentuado. A dor tornou-se incapacitante nos membros superiores e inferiores e com dificuldade para movimentos finos, tornando o paciente dependente para atividades básicas de vida diária. No ambulatório de Neurogeriatria foi realizado o diagnóstico de Parkinsonismo, e como diagnóstico diferencial, interrogada a hipótese de AMS. Com o uso de levodopa, ele apresentou efeitos colaterais (alucinações visuais), sendo necessária a redução da dose, com pouca melhora dos sintomas parkinsonianos. Permaneceu com sintomas inalterados, cada vez mais dependente dos familiares - evolução esperada da AMS. Ressalta-se que o paciente recebeu atenção domiciliar e na USF durante a progressão da doença, evoluindo com infecção do trato urinário, necessitando de internação hospitalar, vindo a óbito por falência de múltiplos órgãos secundária à sepse, três anos e meio depois dos primeiros sintomas. Discussão O relato apresentado descreve a evolução de um quadro grave e raro que teve início com uma queixa de disfunção autonômica urogenital (HPB), associado à dor e diminuição da força nos membros. Evoluiu com a associação de sintomas depressivos, comum em um terço dos casos de AMS e na presença de sintomas de marcha parkinsoniana, arresponsiva ao uso de levodopa, indo a óbito. Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, 2016 Jan-Dez; 11(38):1-6 5

Atrofia de Múltiplos Sistemas na USF Cabe ao Médico de Família e Comunidade (MFC) e a equipe da USF, a partir do cuidado longitudinal, ter um contato próximo com o paciente e seus familiares, dentro de seu território, permitindo um vínculo diferenciado. Neste relato, nota-se que o paciente manteve ativo o seu vínculo à USF e a equipe de saúde. Pôde-se observar que a natureza da interação entre profissionais de diferentes campos do conhecimento proporcionou a continuidade do cuidado, contrapondo-se às relações tradicionais hierarquizadas. 6,7 De outro modo, evidencia-se que o exercício da longitudinalidade permitiu o alcance de ações integrais, que foram determinantes para o manejo de um caso complexo e diagnóstico diferencial. É sabido que as queixas inespecíficas são muito frequentes na APS, correspondendo aproximadamente a 30% das consultas. 8 Frente a este desafio, uma estratégia interessante pode ser o uso da espera permitida, quando a observação longitudinal do paciente permite o conhecimento de novas informações acerca do caso, facilitando a intrincada construção do diagnóstico de muitas condições na APS que envolvem situações clínicas de maior prevalência e casos mais raros e complexos. Para fazer a gestão do cuidado integral e longitudinal, o MFC dispõe de formação que permite a prática da clínica ampliada, primando pela organização da assistência e a coordenação da atenção. O MFC é o responsável direto pela gestão do cuidado do paciente, mesmo quando é necessário o encaminhamento para os outros pontos da RAS, verificando se houve acesso às metodologias diagnósticas e terapêuticas, situação favorecida por ações regulatórias nas redes de saúde, tais como o sistema de referência e contrarreferência. Desta forma, a análise deste caso pôde ilustrar a complexidade da clínica da APS articulada à operação dos seus principais conceitos e características, como a longitudinalidade, a coordenação do cuidado, integralidade da atenção e o foco na pessoa e na família. Referências 1. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO/Ministério da Saúde; 2004. 726 p. 2. Falk JW, Gusso G, Lopes JMC. Medicina de Família e Comunidade como especialidade médica e profissão. In: Tratado de Medicina de Família e Comunidade. Porto Alegre: Artmed; 2012. p. 12-18. 3. Fanciulli A, Wenning GK. Multiple-system atrophy. N Engl J Med. 2015;372(3):249-63. PMID: 25587949 DOI: http://dx.doi. org/10.1056/nejmra1311488 4. Knopp DB, Barsottini OGP, Ferraz HB. Avaliação fonoaudiológica na Atrofia de Múltiplos Sistemas. Estudo com cinco pacientes. Arq Neuro-Psiquiatr. 2002;60(3A):619-23. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/s0004-282x2002000400019 5. Albuquerque AV, Freitas MR, Cincinatus D, Harouche MB. Clinical-radiological correlation. Report of two cases. Arq Neuro- Psiquiatr. 2007;65(2B):512-5. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/s0004-282x2007000300029 6. Gusso G. A especialidade Medicina de Família e Comunidade. Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. 2011. [citado 2016 Mar 4]. Disponível em: http://www.apmfc.org.br/images/artigos/especialidade.pdf 7. Matuda CG, Pinto NRS, Martins CL, Frazão P. Colaboração interprofissional na Estratégia Saúde da Família: implicações para a produção do cuidado e a gestão do trabalho. Ciênc Saúde Coletiva. 2015;20(8):2511-21. DOI: http://dx.doi. org/10.1590/1413-81232015208.11652014 8. Landsberg GAP, Savassi LCM, Sousa AB, Freitas JMR, Nascimento JLS, Azagra R. Análise de demanda em Medicina de Família no Brasil utilizando a Classificação Internacional de Atenção Primária. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(11):3025-36. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/s1413-81232012001100019 6 Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, 2016 Jan-Dez; 11(38):1-6