POR UM OLHAR ANTIRRACISTA NA EDUCAÇÃO: ESTUDO DO CONTO O ANJO. Palavras-chave: Literatura afro-brasileira; Educação étnico-racial; Personagem.

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Transcrição:

POR UM OLHAR ANTIRRACISTA NA EDUCAÇÃO: ESTUDO DO CONTO O ANJO Rafaella de Queiroz Mendes 1 Maria Carolina de Godoy 2 Resumo: No presente estudo, procuramos analisar o conto O Anjo de Débora Garcia com enfoque em aspectos do enredo, sobretudo na personagem Inácio, que sofre racismo ao querer representar um anjo em uma peça teatral na escola. O tema do preconceito no contexto escolar é discutido neste trabalho ao lado das nuances do conto publicado em Cadernos Negros, volume 34. Palavras-chave: Literatura afro-brasileira; Educação étnico-racial; Personagem. Introdução O artigo aqui proposto faz parte de um projeto mais amplo intitulado Literatura afrobrasileira e sua divulgação em rede da Universidade Estadual de Londrina. Tem como objetivo expor, a partir de análises do conto O Anjo, a construção da identidade da personagem Inácio, pois sofreu racismo em âmbito escolar. Nesse conto, a autora aborda as representações de imagens conhecidas, como as dos anjos, para problematizar o tema do preconceito no contexto de sala de aula e também no religioso - especialmente aquele que ressalta a figura de anjos - uma vez que não são destacadas imagens de anjos negros. Essa proposta de estudo atende à lei 10.639/03 com o intuito de levar alunos da graduação, pós-graduação, pesquisadores e educadores a entrarem em contato com autores e obras que não fazem parte do cânone literário, como é o caso da literatura afro-brasileira. Neste artigo, serão usados como base para o seu desenvolvimento os estudiosos Eliane 1 Estudante de graduação em Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: rafa_qmendes@hotmail.com 2 Professora Doutora do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Coordenadora do projeto Literatura afro-brasileira e sua divulgação em rede, financiado pelo CNPq e pela Fundação Araucária. E-mail: mcdegodoy@uol.com.br 360

Cavalleiro (2001), Kabengele Munanga (2005) e Nilma Lino Gomes (2005) no que se refere ao tratamento do tema da educação étnico-racial; as leituras de Eduardo de Assis Duarte (2011), Maria Nazareth Soares Fonseca (2011), Octávio Ianni (2011) foram realizadas no projeto e contribuem para as reflexões sobre o conceito de literatura afro-brasileira; Antonio Candido (1968), Beth Brait (1985) e Regina Dalcastagné (2011) embasaram os estudos a respeito da personagem. Análise do conto O conto O Anjo, como mencionado anteriormente, retrata a história de Inácio, um bombeiro, que durante uma noite de trabalho, ao assistir a chamada para um filme relembra um fatídico e amargo dia de sua infância. A personagem Inácio estava no ensino fundamental, a professora havia sugerido uma peça de teatro à turma e ele empolgado pediu para ser o anjo da peça, primeiramente a professora fingiu não tê-lo ouvido, e posteriormente disse que ele não podia. Inácio ao ouvir aquilo, questiona a sua professora sobre o motivo pelo qual não poderia ser o anjo e tem como resposta Ora, você não viu no filme como é o anjo? Você é diferente dele! O anjo é branco e você... você é negro (GARCIA, 2011, p. 62). O que poderia entender por diferente uma criança que na época tinha apenas 10 anos e não sabia até então o que era a definição de preconceito? Na iconografia comum, a primeira imagem de anjo que nos vem à mente é de um ser puramente espiritual, branco, olhos claros, cachos loiros, asas de aves e auréola, ou seja, a representação de um anjo se dá de forma delicada, uma beleza sublime, com aspecto ingênuo, representado por crianças, por caracterizarem a inocência. Ao buscarmos imagens ilustrativas da época do Barroco, estilo artístico que floresceu na Europa, presentes em tetos de igrejas é possível identificar essas representações delicadas de anjos. Seus colegas de sala logo começaram a rir, e um o apelidou de anjo queimado. Revoltado com a situação, Inácio saiu correndo pelo corredor do colégio, e como carregava consigo uma caixa de fósforos ateou fogo nas lixeiras. Obviamente, a sua mãe foi chamada para o colégio e a diretora narrou o ocorrido. 361

Voltando para a casa com a sua mãe, tinha certeza de que seria castigado, mas pelo contrário, apenas conversaram longamente sobre o acontecimento. Nessa passagem do conto, é o momento em que a autora traz a nós leitores a descoberta que a personagem Inácio faz sobre preconceito, com a seguinte passagem: Inácio não soube explicar como se sentiu, não encontrava palavras para definir algo tão complexo, tão profundo, tão doloroso que, acabara de descobrir, chamava-se preconceito. [...] - Hoje, meu filho, pela lei somos todos iguais, mas é preciso saber jogar o jogo! (GARCIA, 2011, p. 64). A escola e a família representam diferentes estados de poder na educação de Inácio, que é silenciado em sua expressão de revolta. A respeito da discriminação ocorrida em espaço escolar e seu reflexo em muitas reações das crianças, Jeruse Romão (2001) destaca: [...] quando a criança é embranquecida pela escola, seu corpo torna-se um corpo dissidente de sua negritude. E, quando resiste, seu corpo expressa uma relação contra a opressão à sua liberdade de ser; não podendo ser negro, se rebela e explode. Muitas vezes, por não saber ou poder expressar verbalmente a opressão por que passa o que é comum entre as crianças -, manifesta suas revoltas e seus desgostos por meio de atitudes agressivas contra si e os outros. Na grande maioria das vezes é analisado e avaliado o comportamento de resposta às violências por que passa e não a causa destes comportamentos; assim sendo, a escola e sua prática pedagógica não são questionadas, mas sim os comportamentos dos/as alunos/as. (ROMÃO, 2001, p.167-168). Mesmo sendo respeitado após o ocorrido por amigos no espaço escolar, Inácio mantém seus gestos de resistência reprimidos nos pensamentos: Não sou problemático! Só não quero estar onde eles querem me colocar! Minha mãe é sozinha e precisa trabalhar para nos alimentar e pagar o aluguel, ela não pode faltar no trabalho por minha causa... lembro bem o que ela dizia: Sabe como é a vida de diarista, meu filho! Não tem segurança nenhuma... se a gente falta a patroa logo arruma outra sem dizer nada. (GARCIA, 2011, p.65). Esse episódio na vida de Inácio, no colégio, como supõe o conto repercutiu em outros momentos de sua vida de jogador, como sugere o seguinte trecho: 362

Contrariado, meses depois, Inácio estava encenando o pastor no Auto de Natal. Este foi seu primeiro desafio em jogar o jogo para sobreviver. E assim ele cresceu e conseguiu desempenhar na vida real o papel que sempre desejou... tornou-se bombeiro em sua cidade. Inácio estava mergulhado nas lembranças do dia em que teve consciência de que era negro e que travaria duras batalhas em sua vida.[...] (GARCIA, 2011, p. 65). A fala da mãe deixa transparecer a necessidade de desenvolver estratégias para superar o preconceito existente e, a fim de ajudá-lo a superar esse obstáculo na escola, ainda relata a sua própria história de vida ao filho, a história de suas origens e de seu povo (GARCIA, 2011, p. 64). Segundo a biografia presente no livro Cadernos Negros (2011, p.165), a autora Débora Garcia é formada em assistente social e a formação e atuação na área social servem de bagagem e inspiração para a produção cuja tônica é o cotidiano e suas facetas, com enfoque nas problemáticas sociais. A polêmica presente no conto Todo tema polêmico traz consigo as dificuldades de abordá-lo e o destaque para o assunto racismo a partir do conflito vivido por uma personagem negra em espaço escolar é recente na literatura. Como aponta o trabalho de Regina Dalcastagné (2011), a representação do negro na tradição literária brasileira está carregada de estereótipos e reproduções de condição inferiorizada dessas personagens. Um artigo de Eliane Cavalleiro, publicado no livro Racismo e anti-racismo na educação, apresenta parte de seu trabalho em que se destacam dados resultantes de pesquisas com professores negros e não negros, assim como alunos. Para Cavalleiro (2001, p. 146), a criança negra, quando é constrangida, não chega a ser acolhida e exemplifica a sua afirmação com o depoimento de uma menina de apenas seis anos que sofre em ambiente escolar com o racismo. A criança conta que escutava xingamentos do tipo preta que não toma banho e/ou preta cor de carvão e chegou a falar para a sua professora sobre esses episódios, mas esta não fez nada. Segundo Cavalleiro (2001, p. 146): A ausência de atitude por parte dos professores(as) sinaliza à criança 363

discriminada que ela não pode contar com a cooperação de seus/suas educadores/as. Por outro lado, para a criança que discrimina, sinaliza que ela pode repetir a sua ação visto que nada é feito, seu comportamento nem sequer é criticado. A conivência por parte dos profissionais da educação banaliza a discriminação racial. Assim, se aproximarmos essas observações sobre o contexto escolar à ficção, isto é, ao que ocorreu na vida da personagem no conto, veremos que as crianças apelidaram Inácio de anjo queimado, anjo incendiário e também não foram repreendidas. Pelo contrário, para a diretora a atitude de Inácio, ao incendiar lixeiras da escola, foi errada e digna de repreensão, a qual terminou com a sua suspensão. Inácio constatou naquele dia a existência do preconceito, discriminação e racismo ao seu redor. A identidade que a personagem é obrigada a construir dentro desse conto ao aprender a jogar com os episódios de racismo que irão ocorrer na sua ida, pode ser a realidade de muitas crianças pelo país. Crianças que se veem obrigadas a deixarem parte daquilo que é sua essência, de sua identidade como negro, sejam suas crenças ou alguns de seus costumes para conseguirem se encaixar ao ambiente. Podemos citar um caso que foi manchete de jornais e ilustra a afirmação anterior que aconteceu no dia 25 de agosto desse ano de 2014. Um estudante da rede pública de ensino do Rio de Janeiro foi impedido de adentrar a sua escola por usar colares do candomblé. Segundo familiares do garoto, ele já vinha sendo vítima de preconceito e a mãe preferiu transferi-lo de escola, mas o fato continuou a ocorrer, como afirma a reportagem do dia 02 de setembro de Mariucha Machado, publicada no do G1, portal de notícias da Globo. Diante da situação, a escola não tentou entrar em acordo com o estudante e seus responsáveis, preferiu que este não frequentasse o ambiente escolar. Sabe-se também que há algum tempo escolas da rede municipal do Rio de Janeiro possuem aulas sobre religião, inclusive sobre o candomblé. Stela Guedes Caputo (2005), ao escrever Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças que praticam o candomblé, afirma que as crianças praticantes do terreiro são deixadas de lado no espaço escolar: Elas ou pertencem à família do pai ou mãe-de-santo ou estão ligadas aos filhos e filhas-de-santo dos terreiros. Assim como os adultos, essas crianças 364

são iniciadas no candomblé, desempenham funções específicas, recebem cargos na hierarquia dos terreiros e manifestam orgulho de sua religião. Na escola, porém, essas crianças e adolescentes são invisibilizadas e silenciadas. (CAPUTO, 2005, p.37). Ao serem silenciadas pela escola, essas crianças tem parte de sua identidade arrancada, algumas chegam até a preferir não mencionar nada sobre sua cultura para evitar que sofram preconceito. É difícil para as crianças negras, e mesmo para os adultos, pois como afirma Nilma Lino Gomes: Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-si a si mesmo é um desafio enfrentado pelos negros e pelas negras brasileiros (as). (GOMES, 2005, p. 43). Logo, faz parte do papel da escola evitar que práticas racistas sejam reproduzidas, como também promover o contato dos alunos com uma diversidade de etnias e promover o engrandecimento dessa diversidade. A educação antirracista no ambiente escolar Entende-se por educação antirracista, como um veículo que pode vir a proporcionar uma melhor qualidade de educação, desconstruindo preconceitos, racismo, discriminação ao conceder aos discentes a prática da cidadania. Conforme afirma Cavalleiro (2001) sobre educação antirracista: No cotidiano escolar, a educação anti-racista visa à erradicação do preconceito, das discriminações e de tratamentos diferenciados. Nela, estereótipos e ideias preconcebidas, estejam onde estiverem (meios de comunicação, material didático e de apoio, corpo discente, docente, etc.), precisam ser duramente criticados e banidos. É um caminho que conduz à valorização da igualdade nas relações. E, para isso, o olhar crítico é a ferramenta mestra. (CAVALLEIRO, 2001, p. 150). Infelizmente, durante anos, as escolas brasileiras promoveram o silenciamento do negro ao negar uma participação positiva de debates sobre a cultura africana e 365

afrodescendente na construção de uma igualdade social. O resgate de memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional. (MUNANGA, 2005, p. 16). Então é necessário um olhar crítico sobre um episódio de discriminação no espaço escolar, seja pelo viés da literatura, seja pela prática pedagógica. A pessoa que pratica preconceito precisa estar consciente de que seus atos possuem consequências, assim como também é relevante que essa pessoa seja instruída a respeito do tema, principalmente no espaço escolar. A ausência de intervenção de outra pessoa na conscientização da criança e do jovem nas escolas, como professores e coordenadores, apenas ajuda na manifestação de uma prática negativa durante a época de formação das crianças. A partir do que propõe a Lei 10.639/03, o conto O Anjo pode ser um material didático para ser trabalho em sala de aula tanto para inserção da literatura afro-brasileira no contexto escolar, como para abordagem de temas nem sempre presentes em nossa arte literária. Esse conto abre caminhos para se trabalhar o tema do preconceito e problematizar imagens recorrentes no cotidiano que o reforçam, contribuindo de forma positiva para valorização de identidades no contexto de ensino. Considerações finais Professores e educadores precisam observar a Lei 10.639/03, trabalhar com seus alunos a cultura afro-brasileira e africana. Contos, músicas, romances que abordam os temas são bons caminhos para que essa prática seja inserida na sala de aula. Propor a leitura de materiais e posteriormente promover discussões sobre o assunto, seja sobre o racismo, o preconceito, a violência, seja sobre a cultura afro-brasileira são formas ricas de trabalho. 366

No conto estudado, as crianças que apelidaram Inácio de anjo queimado e anjo incendiário não foram repreendidas, reproduzindo o cotidiano do espaço escolar descrito por Eliane Cavalleiro. Pelo contrário, a diretora não levou em consideração as circunstâncias que levaram Inácio à atitude de incendiário e apenas preocupou-se em repreendê-lo. Assim, ao entendermos que a educação antirracista é um veículo para promover uma melhor qualidade de educação, nós como professores, coordenadores, membros ativos da educação das crianças e adolescentes devemos colaborar cada vez mais com essa prática de cidadania. Referências BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985. CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1974. CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreios E como a escola se relaciona com crianças que praticam o candomblé. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Educação, 2005. Disponível em: <http://www2.dbd.pucrio.br/pergamum/tesesabertas/0114346_05_cap_01.pdf>. Acesso em: set/2014. CAVALLEIRO, Eliane. Educação anti-racista: compromisso indispensável para um mundo melhor. In: CAVALLEIRO, Eliane (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001. DALCASTAGNÉ, Regina. A personagem negra na literatura brasileira contemporânea. In: Literatura e Afrodescendência no Brasil Antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In: DUARTE, E.; FONSECA, M. N. (Org.). Literatura e Afrodescendência no Brasil Antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. v.4 GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: Ministério da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literatura Negra Os sentidos e as ramificações. In: DUARTE, E.; FONSECA, M. N. (Org.). Literatura e Afrodescendência no Brasil Antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. v.4 367

GARCIA, Débora. O anjo. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (Org.). Cadernos negros: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2011. vol. 34. IANNI, Octávio. Literatura e Consciência. In: DUARTE, E.; FONSECA, M. N. (Org.). Literatura e Afrodescendência no Brasil Antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. v.4 MACHADO, Mariucha. Aluno é barrado em escola municipal do Rio por usar guias do candomblé. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/09/aluno-e-barrado-em-escola-municipal-dorio-por-usar-guias-do-candomble.html. Acesso em: 07 out. 2014. MUNANGA, Kabengele. (Org.). Superando o Racismo na escola. 2ª edição revisada [Brasília]: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. ROMÃO, Jeruse. O educador, a educação e a construção de uma auto-estima positiva no educando negro. In: CAVALLEIRO, Eliane (Org.) Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001. 368