O masculino em crise identitária Mariana Paula Oliveira Resumo: Essa investigação se propõe a percorrer a construção subjetiva das identidades de gênero, a fim de tomar em consideração o sofrimento psíquico do masculino frente à perda de um lugar histórico e culturalmente construído e por tanto tempo vigente no cotidiano e no imaginário do homem e da mulher, sustentando suas relações. Diante das mudanças advindas da emancipação da mulher, do poder alcançado pela ciência e perdido pela igreja, e da lógica de produção-consumo, há um hiato entre o discurso de igualdade vigente no campo social e aquele da lógica das emoções inconsciente dos homens, frente às novas construções de relação entre gêneros. Para seguir esse caminho, tomou-se como método a interpretação psicanalítica. Juliana e Pedro, um casal namorados, fazem o estilo Eduardo e Mônica 1. Começam a namorar quando Juliana está se formando e Pedro entrando para a faculdade. Ela logo começa a trabalhar enquanto ele é sustentado financeiramente pelos pais durante toda a faculdade. Ambos tem a mesma idade. Diferentemente da história da música, com o passar do tempo o casal entra em crise, se separa, e cada um segue o seu caminho. É certo que não há um único motivo para a separação, mas ficou explícito que Pedro não conseguiu lidar com o fato de que, ainda estudante, namorava uma empresária com pós-graduação. Sabemos que esse tipo de situação veio se tornar frequente há pouco tempo na história da humanidade; há poucas décadas. Há séculos a configuração de relação de gêneros, de forma geral, trazia o homem em posição superior à da mulher: posição de poder, prestígio, liberdade, além de superioridade financeira: o homem era o provedor. Bastava nascer homem, e todos esses atributos vinham acoplados ao cromossomo Y, quase que naturalmente. Quanto à mulher, lhe restou árdua luta para ter o direito de 1 Da música de Legião Urbana, de 1986, do disco Dois, composta por Renato Russo, lançado por EMI
trabalhar, liderar, ser economicamente e afetivamente independente, não se casar, e até sentir prazer sexual. Nossa sociedade vive as ressonâncias do modelo de família patriarcal, ainda amplamente vigente. Esse modelo é bastante responsável pelo nosso imaginário sobre as relações de gênero, sobre o que vem a ser o feminino e o masculino. A crise na representação tradicional dos gêneros é relacionada predominantemente à liberalização da sexualidade que acompanhamos desde a segunda metade do século passado, principalmente a partir do movimento feminista, que segundo Céli Pinto (2003), começou ainda no final do século XIX, tendo maior repercussão na década de 70 do século XX, no contexto da ditadura. Mas até chegarmos nesse ponto, várias outras construções históricas e culturais nos conduziram nessa direção. Uma delas é, sem dúvida, a queda do poder da Igreja e de seus ideais de comportamento cristão. Dentre esses ideais, havia a necessidade de santificar a alma evitando e penitenciando os pecados do corpo. Além disso, para o ideal religioso, a mulher ocupava lugar de devoção e obediência ao homem, tendo também como destino natural a maternidade. Mas o Deus cristão perdeu o trono para outro deus: a ciência. Essa agora detém o poder de tudo explicar, tudo curar, e trazer o bem à humanidade. Durante certo tempo, a Igreja ainda detinha algum controle sobre as pesquisas científicas, e tentou evitar que viessem à tona conhecimentos que a desfavorecessem, como a teoria heliocêntrica, por exemplo, e outras mais recentes (séculos XIX e XX agora sem um controle direto sobre a ciência, mas, sobretudo, moral sobre os seus ainda devotos 2 ) no terreno da sexualidade que tiravam da condição de patológicos os desviantes daquilo que a Igreja e a aristocracia consideravam normalidade: homem e mulher, casados, que se relacionavam sexualmente para fins reprodutivos. A essa norma, sabe-se, a sociedade nunca se adequou. Ou quando se adequou forçadamente, sofreu. Um exemplo disso são as neuroses, as histerias. As maneiras de se viver a sexualidade humana vão para além desse 2 Em exemplo disso foi a campanha da Igreja Católica contra o uso da camisinha.
padrão imposto, e se não podiam ser vividas nos lares, para elas foram criadas outras paredes, como as boates gays e as casas de prostituição. Aqui é preciso acrescentar outro fator fundamental que influenciou e influencia as mudanças nas relações e representações de gênero: a emergência de uma sociedade de consumo, para a qual interessa a variedade alimentando a lógica produção-consumo. A vida sexual se torna produto, o outro se torna objeto, e é preciso haver oferta de produtos variados para os gostos também variados dos fregueses. Padrão único e preconceito não são boas fontes de lucro. Todavia, medicamentos anticoncepcionais, estimulantes para a ereção, indústria pornográfica, cirurgias plásticas e de mudança de sexo, são. Diante de tudo isso, o que antes era considerado pecado, e em seguida, doença, é cada vez mais reconhecido como expressão natural da sexualidade humana. Com esse aumento do leque de possibilidades de vivências sexuais, ao mesmo tempo em que a mulher foi conquistando (à custa de suor e fogo nos sutiãs) cada vez mais e melhores lugares no cenário social inclusive nos topos de hierarquia, como na presidência de empresas, e de países há consequentemente sérias mudanças nas relações entre os gêneros. Se a mulher tanto batalhou para ampliar suas representações no mundo humano, o homem também pagou o ônus das suas representações, tanto na situação de superioridade, quanto agora, diante de sua possível perda. Georges Boris (2003) destaca rituais de iniciação masculina de algumas sociedades primitivas, mas também presentes de formas mais sutis em nossa sociedade, em que o garoto precisa provar sua masculinidade, sua virilidade, assumindo esse lugar tão privilegiado: macho, adulto, heterossexual. Tal autor afirma ainda que a subjetividade masculina seja construída pelo negativo, ou seja, o homem não deve ser um bebê, uma mulher ou um homossexual, o que o leva a ter uma relação próxima com a violência, o priva de poder sentir dor, entre outras construções associadas. Sendo assim, não foi tão natural que o homem usufruísse de seu poder sobre a mulher, mas, mesmo assim, essa era/ é uma representação da identidade masculina forte o bastante para sustentar o homem por séculos e séculos, amém! E a mulher também. Mas obviamente, essa não tinha muito
interesse na manutenção desse formato de relação, apesar de certos benefícios. Então a mulher, de uma posição unicamente abaixo, pôde alcançar a igualdade bem como a superioridade na relação com o homem. A mulher conhece agora todos os lugares possíveis, e na nossa sociedade, ela os ocupa. Ao homem coube a tentativa frustrada de tentar impedir a ascensão da mulher, já que a questão é dialética, e, mexendo-se no lugar da mulher, mexese com o lugar dele. O discurso das leis e da boa convivência diz que a igualdade é o que se deseja. Mas o desejo, na concepção psicanalítica mais especificamente usando o conceito de Fabio Herrmann (2001) é da ordem do inconsciente, e almeja tanto aquilo que se quer, como também o que não se quer. O homem quer e não quer o poder. Quer e não quer a independência. Assim como a mulher. E ambos desejam o desejo do outro. Percebe-se, aqui, que não é possível falar em masculino sem se falar em feminino, e vice-versa. Assim como, falando em construção da subjetividade dos gêneros, estamos dentro do terreno da construção do psiquismo humano, o campo do real. A mulher não depende mais do homem, mas o homem ainda depende da mulher. Para conceber se quiser conceber a mulher pode procurar uma clínica de fertilização artificial e escolher um embrião. O homem nasce da mulher, de seu útero, (pelo menos até agora) e a partir desse fato, podemos repensar a construção da idéia religiosa de que a mulher vem da costela do homem. Não seria uma inversão da dependência? Houve, por muito tempo em nossa história, uma configuração de relações de gênero predeterminada. Mas a mulher não estava feliz. Lutou, realizou transformações. Perdeu a inveja do falos. Adquiriu seus próprios. E o homem? O que fez com tudo isso? Como se vê diante de tantas transformações? O masculino sofre um abalo identitário. O masculino sofre. O discurso vigente de igualdade, de direitos iguais, que demonstra a conformidade do homem em dividir a conta com a mulher no restaurante, no motel, em ser sustentado por ela em casa num período de desemprego, em cuidar dos filhos enquanto ela trabalha até tarde, parece não tão vigente assim na lógica das
emoções, visto que, como no caso de Juliana e Pedro, os atos dizem outra coisa: dizem de um incômodo. Masculino e feminino são roupas-representações que se atrelaram na história da humanidade aos corpos XY e XX, respectivamente. Porém, nas últimas décadas, tem se estabelecido um movimento que desatrela e dá independência a tais vestes. O cartunista Laerte Coutinho, que desde 2004 se transveste de mulher e assume sua bissexualidade, diz em um programa de tv 3 : A revolução feminina é um dos marcos da humanidade. O que não aconteceu, foi uma revolução masculina. Em sua fala e suas vestes, ele parece propor essa revolução, relativizando os conceitos de feminino e masculino, desatrelando-os de atributos que não os sustentam mais (poder, dinheiro, hierarquia, anatomia, roupagem) propondo novos amparos a tais identidades, amparos menos impostos e mais construídos pelas subjetividades, afirmando, a partir da sua própria experiência, que não se trata de uma construção fácil, mas que ela visa um lugar mais confortável para o seu desejo. Resumo O masculino em crise identitária Mariana Paula Oliveira Resumo: Essa investigação se propõe a percorrer a construção subjetiva das identidades de gênero, a fim de tomar em consideração o sofrimento psíquico do masculino frente à perda de um lugar histórico e culturalmente construído e por tanto tempo vigente no cotidiano e no imaginário do homem e da mulher, sustentando suas relações. Diante das mudanças advindas da emancipação da mulher, do poder alcançado pela ciência e perdido pela igreja, e da lógica de produção-consumo, há um hiato entre o discurso de igualdade vigente no campo social e aquele da lógica das emoções inconsciente dos homens, frente às novas construções de relação entre gêneros. Para seguir esse caminho, tomou-se como método a interpretação psicanalítica. 3 Programa Roda Viva, exibido pela TV Cultura em 20 de fevereiro de 2012.
Referências: BORIS, G. (2003) Os rituais da Construção da Subjetividade Masculina. Ser Macho ou Ser Homem? Uma história de Dor, Violência, Paixão e Regozijo. In: II Seminário Internacional de Educação Intercultural, Gênero e Movimentos Sociais: Identidade, Diferença e Mediações. Florianópolis. Herrmann, F. (2001). Introdução à teoria dos campos. São Paulo: Casa do Psicólogo. PINTO, Céli Regina Jardim. (2003) Uma história do feminismo no Brasil. (Coleção História do Povo Brasileiro). São Paulo: Fundação Perseu Abramo.