SOBRE AS MARCAS DOS ALUNOS MIGRANTES NOS CURRÍCULOS REALIZADOS: O COTIDIANO DE UMA ESCOLA PÚBLICA DO INTERIOR



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Transcrição:

SOBRE AS MARCAS DOS ALUNOS MIGRANTES NOS CURRÍCULOS REALIZADOS: O COTIDIANO DE UMA ESCOLA PÚBLICA DO INTERIOR O texto trata de uma proposta de investigação acerca das redes de saberesfazeres tecidas e compartilhadas pelos alunos migrantes no cotidiano de uma escola pública do interior 1, buscando apreender as marcas deixadas nos currículos realizados a partir dos múltiplos espaçostempos e das relações estabelecidas com os contextos da vida cotidiana e com as produções culturais. Propõe caminhos metodológicos de caráter qualitativo, com bases fenomenológicas e traz como procedimento de pesquisa os estudos etnográficos. Como principais instrumentos para a coleta dos dados utiliza observação participante, entrevistas intensivas, análise de documentos e outros, como: filmagem, fotografia, gravação e diário de campo. O processo de investigação ainda assume o método indiciário (Ginzburg, 1990), considerando a importância dos pormenores, das pistas e dos indícios no contexto da pesquisa. 1 AS REDES ENTRELAÇADAS E OS FIOS DAS EXPERIÊNCIAS A experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção [...] requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar [...] parar para sentir, sentir mais devagar, demorarse nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação [...] (LARROSA, 2004, p. 160). Na tentativa de tecer algumas redes entrelaçadas de escritas que possam justificar os interesses de pesquisa, iniciamos com este fragmento do texto de Larrosa (2004) por acreditar na sua possibilidade de tradução de alguns caminhos trilhados durante a investigação. Neste ensaio, o autor propõe que a experiência seja entendida como algo que nos passa, acontece ou toca e, ainda, a necessidade de nos permitirmos à 1 A escola pública do interior a qual nos referimos está localizada no município de São Roque do Canaã, na Microrregião Central Serrana do Estado do Espírito Santo e possui aproximadamente onze mil habitantes.

2 experiência; de uma abertura nestes tempos tão tumultuados e assoberbados em que se vive. Assim, nos colocamos em relação à escola e aos sujeitos praticantes (Certeau, 1994) do cotidiano, na tentativa de interromper um pouco o turbilhão das ações, o automatismo, a homogeneização dos olhares e parar... num mergulho com todos os sentidos, buscando referências de sons, variedade de gostos, onde se possa tocar as coisas e pessoas e se deixar tocar por elas cheirando os odores que a realidade coloca a cada ponto do caminho (Alves, 2001, p. 17). Parar também para demorar-se nos detalhes naqueles pormenores e indícios imperceptíveis (Ginzburg, 1990) para a maioria e que dependem de atenção e interesse para com os dados marginais, reveladores (Idem, p. 149). E Larrosa acrescenta ainda: abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece... escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito. Foi assim, neste processo que o autor tão bem encaminha que nos aventuramos a puxar alguns fios das complexas redes trançadas nas escolas do interior, visitando seus espaçostempos 2 para ouvir as pessoas, conversar com elas, perceber suas angústias, sonhos, invenções num movimento marcado pelo emaranhado de relações que se entrecruzam, distanciam, aproximam, unem, desunem; onde não há caminhos definidos ou verdades estabelecidas. É como Ferraço (2004) indica: Essa dimensão do que é, de fato, realizadopensadofalado no miudinho dos cotidianos das escolas nos permite, enquanto sujeitopesquisador, além de poder afirmar que o local tem importância [...] poder pertencer a diferentes redes que expressam o entremeado desses saberesfazeres cotidianos, associados aos diferentes espaçostempos vividos pelos sujeitos (FERRAÇO, 2004, p.83-84). Retomando os mergulhos feitos nas escolas, destacamos os alunos que enfrentam grandes distâncias físicas, territoriais, culturais e que continuam ajudando a recriar a cada dia a escola pública de que fazem parte. São alunos que lidam diariamente com dificuldades próprias das localidades onde moram: estradas de chão e muita poeira separando as distâncias entre as escolas; subidas e descidas (a pé) de morros; caminhos reduzidos pelos atalhos em meio a matas; longas viagens; chuvas que impedem a 2 Assumimos esta forma de escrita com Alves, Ferraço, Azevedo e outros pesquisadores do cotidiano que, ao juntar as palavras, tentam mostrar que estes processos acontecem como estão escritos, sem separações.

3 chegada dos transportes escolares; animais soltos nas estradas; épocas de colheita onde se faz necessário ajudar na lavoura e no sustento da família. Os alunos, portanto, a quem chamamos de migrantes se constituem como sujeitos da pesquisa, presentes no cotidiano escolar e que caminham por longas distâncias para chegaram à escola. Escolhemos o termo migrante a partir da leitura do texto de Pacelli (1999) que escreve na tentativa de desconstruir a imagem do migrante como aquele a quem falta algo, associado à idéia de carência ou deficiência. O autor propõe uma reflexão para além da condição de simplesmente migrar, argumentando que nestas experiências se dá a construção do eu a partir do momento em que se coloca na rede do outro. Nesta trajetória, buscamos investigar as marcas deixadas nos currículos pelos alunos migrantes, desejando trazer à tona um pouco do cotidiano dessas pessoas cheias de vida e coragem, que não permitem o esvaziamento da escola pública nem mesmo sob condições de difícil acesso, permanência ou encantamento. 2 POSSÍVEIS CAMINHOS TEÓRICOS... Falar sobre os sujeitos das escolas requer de nós pesquisadores com o cotidiano [...] assumir a necessidade de falar com esses sujeitos. De fato, estamos defendendo a idéia da impossibilidade de se falar sobre os sujeitos das escolas se não nos dispomos a falar com eles (FERRAÇO, 2004, p.77). O caminho de investigação que estamos trilhando apóia-se nas colocações deste autor que considera como relevante possibilidade de estudo estar junto, estar com os sujeitos que, quando praticam diferentes redes de saberesfazeres nas escolas, aparecem como sujeitos cotidianos que inventam currículos (Ferraço, 2004). Assim o currículo seria inventado, realizado (Ferraço, 2004) nas relações cotidianas, nas diversas práticas que envolvem poder, discurso, criação de significados. De acordo com Certeau (1995, p.141) para que haja verdadeiramente cultura, não basta ser autor de práticas sociais; é preciso que essas práticas tenham significado para aquele que as realiza. E acrescenta que a cultura está intimamente ligada ao ato pelo qual cada um marca aquilo que outros lhe dão para viver e pensar. Portanto, a cultura é também consumo, uso, reinvenção dos produtos oferecidos aos sujeitos e aos grupos sociais. No contexto da teoria cultural contemporânea, a escola torna-se uma localidade de descentramento, um entre-lugar da cultura (Bhabha, 1998), baseada nas trocas e

4 traduções de diferentes comunidades e sujeitos. Também a apropriação do conceito de hibridismo aparece como uma tentativa de ressignificar as relações de dominação identitária e cultural, onde as posições se modificam, misturam e não conseguem estabelecer um lugar fixo. É o próprio Bhabha que declara: O hibridismo [...] expõe a deformação e o deslocamento inerentes a todos os espaços de discriminação e dominação [...]. Confere novas implicações às suas identificações em estratégias de subversão que fazem o olhar do discriminado voltar-se para o olho do poder (BHABHA, 1998, p.162-163). Silva (2000, p.87) explica ainda que o hibridismo coloca num terreno bastante arenoso as concepções de identidades separadas, divididas ou puras, destacando que elas se formam de maneira híbrida; não sendo nenhuma das originais, mas com traços delas. No entanto, pretendemos deslocar essa discussão para questões que nos aproximam do currículo enquanto prática a ser negociada no cotidiano das escolas e recorremos a Bhabha (1998) que amplia estas idéias acerca da cultura para uma forma de produção irregular e incompleta de sentido, sempre produzida no ato da sobrevivência social. A cultura passa então a ser concebida como uma construção social, um lugar enunciativo, como aquilo que se constrói a partir das marcas colocadas pelos sujeitos e não há como negar que o currículo seja constituído a partir dessas significações culturais. 3 PARA FINALIZAR... NÃO PARA CONCLUIR No sentido de abordar as articulações entre cultura, educação e os currículos realizados e tentando um posicionamento de acordo com a perspectiva dos Estudos Culturais fica eliminada, mais uma vez, a possibilidade de realizar uma investigação com características hegemônicas. Ao contrário, buscamos tomar como sustentação de algumas idéias os complexos atravessamentos, desdobramentos e combinações que acontecem cotidianamente nas práticas e experiências das escolas, envolvendo sujeitos, valores, lutas e discursos que vão além de todas as tentativas de conceituação e aprisionamento. À moda de Bhabha (1998), afirmamos que são especificidades e multiplicidades que ocorrem dentro das escolas como processos encharcados de hibridismos, traduções, negociações. Nesta trajetória, desejamos retratar espaços cotidianos de vida e movimentos que mostrem a batalha diária travada pelos alunos migrantes ao tentarem reinventar a escola

5 pública, buscando o entendimento que esses sujeitos são importantes em seus espaçostempos de criação, com seus múltiplos aspectos culturais e que com eles marcam os currículos que são vividos nas escolas. A pesquisa traz a inquietação de que os contextos dos sujeitos cotidianos do interior valem a pena serem considerados, pois é neles que a escola precisa buscar caminhos para reorientar suas práticas, desconstruir conceitos rígidos e reavaliar propostas curriculares que sejam capazes de transformar condições pessoais e sociais. Acreditamos na possibilidade de pensar num currículo onde não ocorram separações rígidas entre os conhecimentos tradicionalmente elaborados e os conhecimentos da vida cotidiana. Um currículo que se estabeleça através de manifestações de troca e negociação, sem linearidade nas relações entre professores e alunos, tendo as múltiplas identidades culturais respeitadas e superando silenciamentos e processos discriminatórios. Um currículo realizado (Ferraço, 2004) como possibilidade de discussão dos saberesfazeres dos sujeitos individuaiscoletivos das escolas, com suas reais condições de inventividade e considerando as marcas que a seu modo deixam nesse currículo. Um currículo ainda como processo de identificação, invenção e hibridação; numa proposta que, tomando novamente como referência Bhabha (1998), seja possível a convivência das culturas locais dos sujeitos da escola com as culturas globais, presentes nas formulações vividas na sala de aula e fora dela. REFERÊNCIAS

6 ALVES, N.; OLIVEIRA, I. B. de; (orgs.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas. RJ: DP&A, 2001. BHABHA, H. K. O local da cultura. BH: UFMG, 1998. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. SP: Papirus, 1995.. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. RJ: Vozes, 1994. FERRAÇO, C. E. Os sujeitos praticantes dos cotidianos das escolas e a invenção dos currículos. In: MOREIRA, A. F. B.; PACHECO, J. A.; GARCIA, R. L. (orgs.). Currículo: pensar, sentir e diferir. RJ: DP&A, 2004. GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. SP: Companhia das Letras, 1990. LARROSA, J. Linguagem e educação depois de Babel. BH: Autêntica, 2004. PACELLI F., Ademir. O migrante na rede do outro: ensaios sobre alteridade e subjetividade. RJ: Te Corá, 1999. SILVA, T. T. da. (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. RJ: Vozes, 2000.