POR ENTRE TESSITURAS CURRICULARES, REDES, OPERAÇÕES, DIFERENÇAS: PISTAS PARA PENSAR AS ESCOLAS PÚBLICAS
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- Gabriella Zagalo Almada
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1 POR ENTRE TESSITURAS CURRICULARES, REDES, OPERAÇÕES, DIFERENÇAS: PISTAS PARA PENSAR AS ESCOLAS PÚBLICAS PIONTKOVSKY, Danielle 1 RESUMO O texto apresenta uma pesquisa realizada em escola pública de nível médio durante o curso de Doutorado em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. O estudo trata de questões relacionadas aos currículos que são colocadas em análise junto às redes coletivas de saberesfazessentidos tecidas e compartilhadas pelos sujeitos praticantes nos múltiplos espaçostempos de vida e nos cotidianos do Ifes - Campus Santa Teresa. Aposta nas relações e criações cotidianas, nos movimentos e tessituras dos currículos que se dão nessas redes, tecidas entre os alunos, seus professores e demais habitantes dos cotidianos escolares para além das uniformidades, padronizações e hierarquias das políticas oficiais de currículos. Busca traduzir tensões e aproximações vividas trazendo como foco de discussão os deslocamentos, diferenças, contextos, relações e experiências atravessadas pelos processos de identificação ligados às sexualidades, aos diferentes gêneros e à criação de subjetividades. Problematiza também os modos e processos pelos quais os currículos são constituídos, considerando o que é praticado pelos sujeitos ordinários como pistas para pensar as escolas públicas. Acredita ainda na possibilidade de produzir outros/novos movimentos nos currículos que considerem os processos criados nas atividades escolares e a ressignificação dos conhecimentos cotidianos que ocorrem na formação profissional de nível médio. Palavras-chaves: Currículos. Redes. Cotidianos. 1 ACEITO O RISCO: A CADA DIA QUE ACORDO, ACEITO O RISCO 2 : UMA POSSIBILIDADE DE INTRODUÇÃO... Aceito o risco. Aceitei o risco bem maior, como todo o mundo que vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever (LISPECTOR, 1999, p. 27). 1 Doutora em Educação (PPGE/UFES), Professora de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico / Coordenadora Geral de Ensino no Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), membro do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Currículos, Culturas e Cotidianos (Nupec3) e do Grupo de Pesquisa Currículos, Cotidianos, Culturas e Redes de Conhecimentos. danipirelli@ig.com.br. 2 Fragmento da crônica Aventura, de Clarice. In: LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 27.
2 Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo (PESSOA, 1928). 3 Aceitei o risco, carreguei todos os sonhos do mundo! Falar dos percursos atravessados até aqui traz essa sensação... Sentimentos que falam de um estilo de vida, de uma busca de possíveis... De uma história de vida em movimento, não como trajetória, com início e fim determinados, mas experimentada em percursos, sempre labirínticos, indefinidos, fugidios... Embora tenha aprendido que em diferentes situações essa mesma vida pode arrebatar, tirar o chão, tentar o enquadramento... e é essa a hora de levantar da cadeira, sonhar com possíveis horizontes de fuga, pela faceta nômade, flâneur, caminhante (ALMEIDA, 2003, p. 35) que cada um traz consigo... Também por isso não é fácil contar percursos e, como Deleuze (1992) também falou, antes de julgar as atitudes tomadas é preciso pensar nas rupturas e desvios que foram necessários. [...] É preciso tomar a obra por inteiro, segui-la e não julgá-la, captar suas bifurcações, estagnações, avanços, brechas, aceitá-la, recebê-la inteira. Caso contrário não se compreende nada (p. 108). E, assim, escrevo com a compreensão de que neste texto não aparece uma autoria soberana. Ao contrário, é feito com muitas mãos, porque aqui habitam muitos: diferentes, desiguais, desconectados 4... Sujeitos de múltiplos pertencimentos, em tempos de migração (CANCLINI, 2009). Sujeitos que não o são em si, mas que vivem processos de subjetivação diversos, ou seja, produzem modos de existência e neles também são produzidos! Sujeitos nômades, vivendo em trânsito... Também por isso, tento contar das astúcias e artimanhas (CERTEAU, 1994) criadas nos percursos coletivos de uma vida compartilhada com tantos e tantas, em relações cotidianas e intensamente enredadas. Relações que surgem nos contextos, nas ações, nas maneiras de fazer com, em práticas cotidianas, no dizer de Certeau (1994). E é o próprio autor que me ajuda a não esquecer dessa coletividade implicada no trabalho da escrita. 3 Parte do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa. Disponível em: 4 Fazendo referência ao título da obra de Néstor García Canclini (2009).
3 E por pensar nessas operações, sempre coletivas, de efeitos diversos, onde aparecem intercâmbios, leituras e confrontos, preciso convidar Larrosa (2003) para a conversa... Estudar. Entre ler e escrever. Algo (se) passa. [...] Exercitar-se no silêncio. Habitar labirintos. Aprender a ler e a escrever cada vez de novo. Defender a liberdade, a solidão, o desejo que permanece desejo. Queimar o lido tão logo se leu e queimar o escrito tão logo se escreveu. [...] Não perguntar ao que sabe a resposta, nem sequer a essa parte de si mesmo que sabe a resposta, porque a resposta poderia matar a intensidade das perguntas e o que treme nessa intensidade. Ser a gente mesmo as perguntas. Fazer com que as perguntas leiam e escrevam. Guardar fidelidade às palavras. Deslizar-se no espaço em branco. Estudar. Sem por quê. Ser a gente mesmo o estudo (p. 115).... E faço essa escolha porque sei da necessidade de uso das palavras mas, sabendo que entre elas, habitam muitos silêncios. Depois, porque estudar se constitui numa ação permanente de escolha, uma atitude política, uma experiência repleta de deslizes, deslocamentos, labirintos, desejo que permanece desejo. E, ainda, pelo sentimento de que é preciso aprenderreaprender sempre... Aprender a ler e a escrever cada vez de novo, como se tudo aquilo que foi dito e escrito pudesse, em seguida, aguçar a vontade de criar outros textos, novos questionamentos... Ser a gente mesmo as perguntas. Fazer com que as perguntas leiam e escrevam (Idem, p. 115). E, como tudo é questão de palavras sem esquecer os silêncios (LARROSA, 2003, p. 89) faço agora o uso delas para justificar a relevância do trabalho de investigação. Começo, retomando a discussão de Alves e Oliveira (In: LOPES e MACEDO, 2002), acerca dos contextos cotidianos como espaços de tessitura dos conhecimentos, sobre os múltiplos contextos que constituem o sujeito enquanto redes de subjetividade. Elas acrescentam: Em cada um desses contextos os sujeitos cotidianos tecem seus conhecimentos a partir das múltiplas redes a que pertencem. Trata-se de operar um deslocamento radical dentro do mesmo lugar, que é o nosso um deslocamento que passe a se preocupar com o que se faz em espaços/tempos antes julgados comuns e mesmo ignorados, mas que têm uma enorme importância já que é neles que vivemos concretamente nossa vida (p ). Com a afirmação das autoras de que os espaçostempos onde se vive concretamente a vida são importantes, posso considerar também como relevantes os fatos vividos nos espaçostempos dos cotidianos das escolas e também fora delas, já que as ações que se realizam com aquilo que está perto podem fazer a diferença numa dimensão muito maior, como pressupõe Santos
4 (1995, p. 106) ao declarar que o reencantamento do mundo somente se dará com a inserção criativa da novidade utópica no que está mais próximo. Confesso que, por muito tempo, também não percebi a importância desses cotidianos que não se repetem, mas que, ao contrário, são repletos de invenções, pluralidades, acontecimentos e complexas redes de relações. Estas impressões de que os cotidianos em que se vive, que se fazem próximos e que compõem a vida da escola não seriam alvo de uma pesquisa com status e importância acadêmica se deve, sobretudo, à forte influência do discurso hegemônico da modernidade, que valorizava a sólida estrutura social, as metanarrativas e a proposta de procedimentos de organização, classificação e reprodução de dados. Nesse sentido, depois de alguns meses de permanência nos cotidianos do IFES - Campus Santa Teresa, as aproximações estabelecidas com os sujeitos em seus movimentos permanentes e complexos, despertaram em mim o desejo de trazer à cena do debate educacional tantas questões que atravessam as práticas, os currículos e as vidas dos personagens desse cenário e que surgem em meio às tessituras das intrincadas e complexas redes do cotidiano (FERRAÇO, 2005, p ). Com a realização da pesquisa, estive disposta ao mergulho no cotidiano mais uma vez pedindo licença para entrar e agradecendo ao sair (FERRAÇO, 2005, p. 14) numa busca inquietante, como ensina Gallo (2008, p. 254), por aquilo que ainda não pensamos, num exercício permanente de questionamento sobre as certezas prontas do universo educacional (Idem, p. 254). E, nesse sentido, aparece o propósito de contribuir com a discussão acerca das experiências vividas pelos sujeitos, das relações estabelecidas entre eles na tessitura das redes de saberesfazeres que surgem nos contextos da formação de nível médio e profissionalizante, visando problematizar e colocar em análise a proposta curricular em questão e, desse modo, ampliar a teorização do campo do currículo. 2. UM BREVE ENSAIO TEÓRICO-METODOLÓGICO DA INVESTIGAÇÃO
5 Ao desejar a continuação dos estudos e pesquisas na área da educação a partir das possibilidades oferecidas pelo curso de Doutorado, aceitei o desafio de realizar uma pesquisa com os cotidianos da escola, numa tentativa permanente de diálogo, envolvimento e compromisso com outros e efêmeros caminhos a serem vividos junto aos movimentos criados entre os sujeitos praticantes e suas invenções/negociações curriculares. A opção por tal estudo é feita, portanto, por reconhecê-lo como uma oportunidade de, a partir da multiplicidade de currículos que são criados em redes, dos conhecimentos que se tecem nos vários e complexos espaçostempos (ALVES, 2002) de aprenderensinar 5 que acontecem dentro e fora da escola prosseguir e ampliar trajetórias como professorapesquisadora. Trilhar outros caminhos, como os propostos por Ferraço (2001). [...] Nossa metodologia de estudo da escola é fortemente centrada na vida cotidiana [...] Uma metodologia de pesquisa das práticas concretas e das artimanhas produzidas e compartilhadas [...] Neste enfoque metodológico, assumimos que não existe um único, mas diferentes caminhos. Caminhos percorridos por cada sujeito na diversidade de ações, representações e interações realizadas/vividas. Caminhos complexos, acidentais, plurais, multidimensionais, heterárquicos, fluidos, imprevisíveis, que se abrem e se deixam contaminar, permanentemente, pelas ações, pensamentos e imagens do mundo contemporâneo, enredando representações, significados e pessoas. Uma complexidade que não se esgota nunca e que, apesar de estar em todo lugar, não se deixa capturar. No máximo, ser vivida e com alguma dose de sorte, ser sentida (p. 103). Reafirmo, portanto, que a investigação assume a opção por caminhos metodológicos ligados à prática de pesquisa (CORAZZA, 2002) com os cotidianos, considerando a impossibilidade de realização de uma pesquisa distante da dimensão desse universo vivido e praticado pelos sujeitos e que se inventa com mil maneiras de caça não autorizada (CERTEAU, 1994, p. 38). Nos cotidianos, aparecem múltiplas artes de fazer, de combinar, de utilizar e que se constituem como práticas cotidianas que volta e meia exarcebam e desencaminham as nossas lógicas (Idem, p. 43). São práticas que se dão de forma tática, onde ocorrem vitórias do fraco sobre os mais fortes, manifestadas pelas artes de dar golpes, mobilidades, astúcias de caçadores, performances (BHABHA, 1998). Assim, com o desejo de me dedicar à difícil arte/ciência de pesquisar com o cotidiano (GARCIA, 2003, p. 193), considero ainda a necessidade de invenção de discursos tecidos 5 Lembro que a junção das palavras, fazendo-as novas expressões, se dá, como bem explica Alves (2010, p. 55) por um esforço presente nas pesquisas com os cotidianos de superar as heranças da Modernidade, entre as quais o pensamento em dicotomias, que foi tão necessário à lógica das ciências.
6 com os fios da complexidade, tão bem lembrada por Morin (1998) como sendo formada pelo complexus, ou seja, por aquilo que é tecido junto, por diferentes fios que se unem e se transformam numa coisa só, que se entrecruzam e se entrelaçam, mas que não destroem os aspectos múltiplos (variedade, diversidade, incerteza) que os teceram. O pensamento complexo (Idem, p. 231) propõe explorar tudo aquilo que foi deixado como explicado e tornase uma alternativa para patrulhar o nevoeiro, o incerto, o confuso, o indizível, o indecidível. O que é a complexidade? A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido [...] de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambigüidade, da incerteza... (MORIN, 2007, p. 13). E, nesse sentido, assumo que a investigação traz uma abordagem metodológica que permite também o uso de variados instrumentos e recursos filmagens, fotografias, narrativas, entrevistas, registros, documentos numa tentativa de dar visibilidade aos caminhos investigativos, às experiências vividas, aos atalhos percorridos e a tantos modos de fazersaber presentes nos cotidianos. Por tudo isso me proponho, então, a não parar a caminhada, desejando seguirtrilhar as trajetórias vividas pelos sujeitos praticantes do IFES Campus Santa Teresa. Um exercício pensado com Foucault que declara: não é o poder (nem o saber) que constitui o tema geral de minhas investigações, mas o sujeito (In: Eizirik, 2005, p. 22). Por compreender também que suas abordagens teóricas privilegiam a subjetividade sem, entretanto, negar o sujeito. De acordo com Passos (2008), Foucault desconstrói a noção de sujeito ideal, seja na forma do sujeito racional cartesiano, seja na do sujeito existencial fenomenológico. Porém [...] sua motivação para pensar os saberes e os modos de exercício do poder, que evoluem nas sociedades modernas e contemporâneas e as dominam, é precisamente decorrente do fato de que esses saberes e formas de exercício do poder configuram modos de subjetivação, modos de ser sujeitos, modos que são históricos, multifacetados e, muito importante, transformáveis (grifo nosso, p. 8). De modo semelhante, Bhabha (1998) nos ajuda a pensar nessa multiplicidade de fluxos que constitui as redes de subjetividades, quando explica que a noção de hibridação está ligada a forças e fixações deslizantes, que expõe deformação e deslocamento a todos os espaços,
7 mesmo quando aparecem práticas de discriminação ou dominação (Idem, p. 162). Ainda de acordo com os apontamentos de Carvalho (2009), para Homi Bhabha (1998), na contemporaneidade, o cruzamento de espaço e tempo tem produzido complexas figuras de diferença e identidade que não devem ser entendidas, apenas, por suas multiplicidades, mas por seus atravessamentos, seu caráter híbrido. Seriam nesses entre-lugares de atravessamentos que os terrenos para a produção de novas subjetividades floresceriam e dariam início a novas representações de identidades no ato de definição dessa própria sociedade (CARVALHO, 2009, p. 104). Nessa discussão voltada para as questões do híbrido e a partir da declaração de Bhabha (1996) em que anuncia que a hibridação refere-se precisamente ao fato de que uma nova situação, uma nova aliança que se formula, pode exigir de você eventualmente que traduza seus princípios, expanda-os, repense-os (p. 39), aparece a constituição do sujeito híbrido, que se revela, ao mesmo tempo, como uma semelhança e como uma ameaça. É o sujeito que habita os entre-lugares e se apresenta de forma confusa, disseminada, sem pretensão à totalidade ou à identidade no mundo moderno; subverte as narrativas e subjetividades originárias ou iniciais para focalizar os momentos ou processos em que se produz, na articulação de diferenças culturais. O sujeito híbrido é semi-opositor, confuso, efeito, projeto, incalculável, semi-aquiescente. A potência do híbrido não é ser miscigenado, sincrético ou sintético. É confundir. É ser inclassificável (SOARES, 1999, p. 2). E a autora continua, sob a égide de Bhabha, auxiliando na significação do sujeito híbrido não como uma nova categoria fixa, homogênea ou estável, mas como uma possibilidade de superação dos processos discriminatórios e opressores. A partir desses modos de pensar os sujeitos e a constituição de suas redes de subjetividades, busquei movimentos que considerassem a permanente realização dos currículos a partir da dimensão das redes coletivas de saberesfazeres, trazendo como interesse de estudo as relações, diferenças e contextos atravessados pelos processos de identificação ligados às sexualidades, aos diferentes gêneros e à permanente criação de subjetividades. Busquei ainda me aproximar das experiências vividas entre alunos, professores e demais personagens da escola, problematizando os deslocamentos realizados, os contextos de vida, as tensões
8 estabelecidas e as possíveis dualidades ou perspectivas de integração criadas entre a formação básica de nível médio e o ensino profissionalizante. 3. OBJETIVO GERAL Problematizar os currículos realizados nas redes coletivas de saberesfazeres tecidas e compartilhadas pelos sujeitos praticantes nos múltiplos espaçostempos de vida e nos cotidianos do IFES Campus Santa Teresa, buscando dar visibilidade aos processos e às relações estabelecidas entre esses sujeitos, investigando deslocamentos, movimentos, tensões e encontros vividos na formação profissional de nível médio, bem como ampliando a teorização do campo do currículo. 4. PARA QUE SERVE A UTOPIA? SERVE PARA ISSO: PARA CAMINHAR 6... ALGUNS CAMINHOS JUNTO AO IFES CAMPUS SANTA TERESA E OUTRAS IMPLICAÇÕES A questão curricular, na perspectiva que aqui defendemos, só é possível de ser pensada na dimensão das redes coletivas de fazeressaberes dos sujeitos que praticam o cotidiano, fato que tem implicado a elaboração de outros discursos sobre educação [...] Para os sujeitos cotidianos complexos encarnados, falar em currículo [...] só faz sentido se considerarmos as marcas que esses sujeitos deixam nessas prescrições, isto é, seus usos, ações, informações, alterações, realizações, negações, desconsiderações, argumentações, obliterações, manipulações... (FERRAÇO, 2005, p.18; 21-22). A proposta de investigar/problematizar as invenções curriculares que surgem nos cotidianos da escola, me remete a pensar, conforme já ensinado com Lopes e Macedo (2002), que as teorizações do campo do currículo são obtidas por uma multiplicidade de estudos e contribuições teóricas que o configuram como um campo contestado, onde se misturam influências, interdependências e rejeições. São produções discursivas que se constituem não apenas como diferentes tendências e orientações teórico-metodológicas, mas, sobretudo, caracterizam o hibridismo que aparece no campo curricular na contemporaneidade. As múltiplas articulações redefinem os discursos acerca dos currículos fazendo emergir novas 6 GALEANO, Eduardo. Palavras andantes. Rio de Janeiro: Cultrix, 1994, p. 310.
9 questões, problemáticas e referências. Outras e diversas áreas, como os estudos culturais, os enfoques pós-estruturais e pós-modernos e a filosofia, também são hibridizadas com as tradicionais referências do campo do currículo. O processo de hibridação ocorre com a quebra e a mistura de coleções organizadas por sistemas culturais diversos, com a desterritorialização de produções discursivas variadas (LOPES; MACEDO, 2002, p. 47). A ideia do hibridismo difundida por Lopes e Macedo (2002), portanto, é colocada como uma marca do campo curricular que não está ligada apenas aos múltiplos espaçostempos de realização desses currículos no cotidiano, mas, sobretudo, à mistura das diferentes perspectivas teóricas dos grupos de pesquisa sobre o currículo no Brasil. Assim, a hibridação defendida pelas autoras se refere à multiplicidade das teorizações contemporâneas. Assumindo o processo de hibridação que acontece nas relações, nas discussões teóricas, nas práticas e associando a educação e o currículo aos processos culturais mais amplos, não há como negar a importância dos fluxos de significados que se estabelecem entre diferentes campos e sujeitos (Idem, p. 49), onde as experiências e apropriações são hibridizadas de tal forma que impedem a criação de uma definição única e precisa de currículo. Porém, nesse momento em que se reconhece tal campo como locus da pluralidade e dos embates entre temáticas, atores e instituições e, defendendo que uma das principais marcas do pensamento curricular atual é o hibridismo, colocado no trânsito das diversidades e das tendências políticas das relações que o constituem, julgo ser importante retomar Bhabha (1996) quando explica que a noção de hibridação 7 está ligada a forças e fixações deslizantes, que expõe deformação e deslocamento a todos os espaços, mesmo quando aparecem práticas de discriminação ou dominação. Nesse contexto de múltiplas discursividades e teorizações, trago algumas das perspectivas que emergem, nesses embates, acerca da noção do currículo em redes. São produções que defendem que os currículos são produzidos em contextos cotidianos variados, nas relações contemporâneas que se articulam entre os sujeitos e em espaços de fluidez, criatividade e 7 Bhabha (1996, p ) destaca ainda que a importância da hibridação não é ser capaz de rastrear os momentos originais dos quais emerge um terceiro, para ele, a hibridação é o terceiro espaço que permite a outras posições emergir. Amplia ainda mais essa noção, ao declarar que a importância da hibridação é que ela traz os vestígios daqueles sentimentos e práticas que a informam, tal qual uma tradução, e assim põe em conjunto os vestígios de alguns outros sentidos ou discursos [...] O processo de hibridação cultural gera algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação de sentido e representação (p ).
10 coletivização. Assim, a partir da metáfora do rizoma, são questionadas as fronteiras estabelecidas pela modernidade entre o conhecimento científico e o conhecimento tecido nos contextos cotidianos da sociedade. E, com essa discussão, é incorporada a ideia de que todos os sujeitos estão permanentemente envolvidos na multiplicidade e complexidade das redes, através e nas quais criam conhecimentos e os tecem com os conhecimentos de outros sujeitos. [...] A noção de conhecimento em rede introduz um novo referencial básico, a prática social, na qual o conhecimento praticado é tecido por contatos múltiplos. Propõe-se, desta forma, a inversão da polarização moderna entre teoria e prática, passando-se a compreender o espaço prático como aquele em que a teoria é tecida. Tal proposição, ao reconceituar a prática como o espaço cotidiano no qual o saber é criado, elimina as fronteiras entre ciência e senso comum, entre conhecimento válido e conhecimento cotidiano (LOPES; MACEDO, 2002). Nesse sentido, os conhecimentos já não são considerados a partir de caracterizações globalizadas, mas tidos como saberes que são tecidos por meio das táticas e das estratégias, dos diversos usos de tudo aquilo que compõe o cotidiano; por meio das redes em que são praticados, numa multiplicidade de encontros, significações, contextos. A metáfora da rede, portanto, subverte o papel de inferioridade dos conhecimentos da vida cotidiana em relação àqueles estabelecidos como conhecimentos científicos. E, nesse momento, lembro o que Alves (2002) já ensinou, possibilitando acreditar em novas alternativas, outros saberes: [...] há modos de fazer e de criar conhecimentos no cotidiano diferentes daqueles aprendidos na modernidade (p. 17). Diante da multiplicidade e da complexidade de relações que os sujeitos estabelecem, surge a necessidade de compreender que existem diferentes redes de conhecimentos e ainda, que a tessitura do conhecimento também se dá nessas redes; ou seja, cada ser humano está imerso em redes coletivas e compartilhadas nas quais cria conhecimentos, significações e modos de vida, em processos constantes de subjetivação. São, portanto, incalculáveis as possibilidades de criação dos sujeitos, a partir das redes de conhecimentos que fazem emergir ações, práticas e sentidos nos currículos que são realizados nos cotidianos. Currículos que surgem sempre em movimento, junto ao constante trançardestrançar dos conhecimentos nas redes e a partir dos espaçostempos da escola e da vida. Assim, partindo da perspectiva assumida neste trabalho de que as práticas curriculares acontecem em meio às redes de saberesfazeres dos sujeitos praticantes que nelas tecem seus conhecimentos, assumindo-os como sujeitos híbridos (BHABHA, 1998) que habitam entre-
11 lugares culturais e manifestam suas ações através de traduções, negociações, performances e, reconhecendo o cotidiano como espaço privilegiado de produção curricular (OLIVEIRA, 2003) para além das prescrições e propostas oficiais, problematizo quais sentidos de currículo estão sendo produzidos na escola da pesquisa. Faço uma tentativa de aproximação das redes tecidas pelos sujeitos que produzem esses sentidos e tantos modos de viver nos cotidianos da escola, sabendo da impossibilidade de total apreensão ou análise dessas redes... Partindo de uma infinidade de práticas, significações, narrativas, são feitos alguns recortes com a tentativa de problematizar as marcas encontradas. De fato, sempre estamos dando nossas versões particularescoletivas desses fatos. E não há como ser diferente (FERRAÇO, 2004, p. 86). Assumo também, com Ferraço (2004) e Oliveira (2003), que a dimensão do currículo vai muito além das prescrições escritas e formais encontradas nas escolas (como parâmetros e propostas curriculares, livros didáticos, calendários de datas específicas, entre outros textos), estando muito mais relacionado aos usos que desses documentos são feitos e às criações e relações que emergem das práticas. Para Ferraço (2004), os currículos realizados são redes de fazeressaberes, de discursospráticas, compartilhadas entre os sujeitos que praticam os cotidianos das escolas, e que envolvem outros sujeitos para além desses cotidianos (p. 85). A partir desses breves apontamentos e das implicações evidenciadas com o entendimento de que os currículos tecidos nos cotidianos estão muito além das prescrições formais e, como explica Carvalho (2005, p ), envolvem as relações entre poder, cultura e escolarização, representando, mesmo que de forma nem sempre explícita, o jogo de interações e/ou relações presentes no cotidiano escolar, pretendi com a pesquisa me aproximar das relações e diferentes espaçostempos que configuram esses currículos, assim como apreender um pouco das redes de saberesfazeres tecidas pelos sujeitos nos múltiplos espaçostempos dos cotidianos. [...] O importante é buscar compreender como os sujeitos das práticas tecem seus conhecimentos de todos os tipos, buscando discutir, assim, o que poderíamos chamar o fazer curricular cotidiano e as lógicas de tecer conhecimentos nas redes cotidianas, as das escolas, de seus professores/professoras e de seus alunos/alunas, dentre tantas (ALVES, 2002, p. 17, grifo da autora). No caso específico do IFES Campus Santa Teresa, as invenções curriculares estão
12 diretamente voltadas para o ensino da área agrícola e/ou agropecuária, onde quase 70% do total de alunos (considerando quatrocentas e oitenta matrículas nos cursos de nível médio e a idade de 18 anos) se encontra no sistema de internato, ou seja, mora na escola. É preciso destacar que, para esses alunos e alunas que residem nas dependências da escola, alguns serviços/atendimentos especiais são disponibilizados, como alimentação (varias refeições durante o dia), lavanderia, atendimento médico e odontológico, setor de esporte e lazer (com quadras, campos de futebol, salão de jogos) e seguro contra acidentes pessoais. Assim, com relação a esse modo de residência onde os quartos são conhecidos como alojamentos em nossas conversas pela escola e, até mesmo em sala de aula, ouvi dos alunos alguns relatos sobre as trocas que realizam, sinais das redes de solidariedade que se tecem e também da mistura de seus hábitos, muitas vezes aprendidos em suas famílias e que se diferenciam bastante, o que causa certos desencantos entre os habitantes de um mesmo quarto. Vale lembrar que os alunos moram em grupos de até seis, nos quartos masculinos e em número de quatro, nos femininos, como eles mesmos contam. Interessa, de modo especial, nesse contexto, as redes de suas histórias de vida que se misturam, modos de constituição de suas subjetividades, de processos de subjetivação constantes, tendo os espaçostempos do cotidiano escolar como lugares de encontro. Interessa, os deslocamentos que realizam constantemente para estarem em suas cidades de origem, quase sempre realizados pelas caronas que conseguem usando o uniforme da escola 8.Interessa, ainda, as relações que são tecidas na formação que se deseja ou não alcançar num curso profissionalizante. Por isso, o empenho em apreender um pouco daquilo que se passa nessas redes de relações, entre esses sujeitos praticantes nos cotidianos. O que se potencializa nesses encontros? A escola consegue perceber na diferença colocada entre esses jovens a potência para a produção de sentidos, de outros modos de ser? Até que ponto a imposição de regras disciplinares, por exemplo, impede as trocas e invenções entre esses sujeitos? Quais burlas ao sistema disciplinar são criadas pelos alunos? É importante destacar ainda que os alunos estão inseridos no modelo Escola-Fazenda 8 Alguns alunos me contaram que o uso do uniforme garante a carona e que chegam a viajar, em muitos casos, até 600 km, fazendo todo o percurso dessa forma.
13 (instituído pelo Governo na década de 70), organizado em Unidades Educativas de Produção (UEP s) que se destinam à simulação e execução de práticas voltadas ao ensino agropecuário e sendo avaliados sob a perspectiva da aquisição de competências. Assim, o aluno que conclui o ensino profissional de nível médio organizado nas modalidades integrado, concomitante ou subsequente 9 recebe a certificação de Técnico em Agropecuária com Habilitação em Agropecuária, Agricultura, Agroindústria ou Zootecnia, de acordo com a opção feita no processo de seleção. A organização curricular do curso de formação técnica nas modalidades subsequente e concomitante é feita por disciplinas, cursadas em períodos semestrais, separadas da matriz do curso médio; enquanto que o curso integrado se estrutura por disciplinas, em bimestres e durante todo o ano letivo. A partir dessas e de outras implicações vividas no IFES Campus Santa Teresa, aponto, portanto, meu interesse acerca da investigação realizada e, vivendo os movimentos cotidianos das redes produzidas que me movem nesta pesquisa, preciso ainda pensar na importância do fortalecimento de práticas pedagógicas que resistam às tendências de mecanização e controle, qualificando as produções culturais e as ações de negociação realizadas pelos sujeitos, problematizando os modos de organização das atividades curriculares, como aquelas vivenciadas nas salas de aula e nos ambientes/espaços de produção. Confio, portanto, na criação de outros e novos movimentos que apontem para os currículos trajetórias, viagens, percursos (SILVA, 2004, p. 150) como um campo de negociação, instituindo na escola da pesquisa a sua realização como mecanismo de discussão dos saberesfazeres dos sujeitos individuaiscoletivos (FERRAÇO, 2004) que ali se encontram, com suas reais condições de inventividade e considerando as marcas que, a seu modo, deixam nos processos vividos. 9 De acordo com a LDB (Lei nº 9394/96 Seção IV A), Artigo 36-B, A educação profissional técnica de nível médio será desenvolvida nas seguintes formas: I articulada com o ensino médio; II subseqüente, em cursos destinados a quem já tenha concluído o ensino médio [...] e Artigo 36-C, A educação profissional técnica de nível médio articulada, prevista no inciso I do caput do art. 36-A desta Lei, será desenvolvida de forma: I integrada, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino fundamental [...] efetuando-se matrícula única para cada aluno; II concomitante, oferecida a quem ingresse no ensino médio ou já o esteja cursando, efetuando-se matrículas distintas para cada curso.
14 5. REFERÊNCIAS 1. ALMEIDA, Maria da Conceição. Por uma ciência que sonha. In: GALEANO, A.; CASTRO G.; SILVA J. C. (orgs.). Complexidade à flor da pele: ensaios sobre ciência, cultura e comunicação. São Paulo: Cortez, ALVES, N. (org.). Criar currículo no cotidiano. São Paulo: Cortez, BHABHA, H. K. O local da cultura. BH: UFMG, O terceiro espaço Entrevista concedida a Jonathan Rutherford. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 24, 1996, p CANCLINI, Néstor García. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, CARVALHO, Janete Magalhães. O cotidiano escolar como comunidade de afetos. RJ: DP et Alii; Brasília, DF: CNPq, Pensando o currículo escolar a partir do outro que está em mim. In: FERRAÇO, Carlos Eduardo (org.). Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez, 2005 (Série cultura, memória e currículo, v. 6). 8. CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. RJ: Vozes, CORAZZA, Sandra M. Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos. In: COSTA, Marisa V. (org.). Caminhos Investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, EIZIRIK, M. F. Michel Foucault: um pensador do presente. Ijuí: Ed. Unijuí, FERRAÇO, C. E. Ensaio de uma metodologia efêmera. In: OLIVEIRA, I. B. de; ALVES, N. (orgs.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas. RJ: DP&A, Os sujeitos praticantes dos cotidianos das escolas e a invenção dos currículos. In: MOREIRA, A. F. B.; PACHECO, J. A.; GARCIA, R. L. (orgs.). Currículo: pensar, sentir e diferir. RJ: DP&A, (org.). Cotidiano escolar, formação de professores(as) e currículo. SP: Cortez, GALLO, Sílvio. Foucault. (Re)pensar a Educação. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.). Figuras de Foucault. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
15 16. GARCIA, Regina L. A difícil arte/ciência de pesquisar com o cotidiano. In:. (org.). Método; Métodos; Contramétodo. São Paulo: Cortez, LARROSA, J. Estudar = Estudiar. BH: Autêntica, LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro; Rocco, LOPES, A. C.; MACEDO, E. (orgs.). Currículo: debates contemporâneos. SP: Cortez, MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. 3ª ed. Porto Alegre: Sulina, OLIVEIRA, I. B. de. Boaventura e a Educação. BH: Autêntica, Currículos Praticados: entre a regulação e a emancipação. Rio de Janeiro: DP&A, PASSOS, I. C. F. (org.). Poder, normalização e violência: incursões foucaultianas para a atualidade. BH: Autêntica, SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice. SP: Cortez, SILVA, T. T. da. Documentos de Identidade. BH: Autêntica, SOARES, Maria da Conceição Silva. O local da cultura: considerações acerca das idéias de Homi Bhabha. Mimeo, 1999.
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