RELATOR : DESEMBARGADOR FEDERAL GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA PARTE AUTORA : ASSOCIAÇÃO DE TURISMO DE ARRAIAL DO CABO ADVOGADO : JULIO CESAR DA SILVA PARTE RÉ : UNIÃO FEDERAL REMETENTE : JUÍZO FEDERAL DA 1A VARA DE SAO PEDRO DA ALDEIA-RJ ORIGEM : VARA ÚNICA DE SÃO PEDRO DA ALDEIA (200051080007336) R E L A T Ó R I O 1. Trata-se de remessa necessária determinada na r.sentença, originária do Juízo da 1ª Vara Federal de São Pedro da Aldeia da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, nos autos do mandado de segurança impetrado pela Associação de Turismo de Arraial do Cabo contra ato do administrador da RESEX do Ibama em Arraial do Cabo, que concede a ordem e, assim, determinou que a autoridade impetrada se abstenha de exigir que os associados da impetrante efetuem o recolhimento de taxa de visitação de seus clientes (visitantes da Reserva Extrativista de Arraial do Cabo) em favor do IBAMA. Na petição inicial, a impetrante narrou que representa os interesses de diversos segmentos econômicos da localidade, com inúmeros dependentes como operadoras de mergulho, pousadas, restaurantes, por exemplo. Em janeiro de 1997, o governo federal criou a Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo de modo a implementar política de proteção ambiental. Para a elaboração e administração do plano de utilização foi constituída uma associação (AREMAC) e, em seguida, criou-se um plano de manejo. Em março de 2000, a autoridade impetrada intimou as operadoras de mergulho para que assumissem a cobrança da taxa fixada para embarque de cada turista sob pena de proibição da saída de barcos. A Portaria n 62/00, do IBAMA, prevê uma tabela de valores sem especificar qualquer plano de uso que teria sido delegado à associação. O pedido foi no sentido de determinar a abstenção 1
da autoridade impetrada de aplicar qualquer sanção aos filiados da impetrante, desobrigando-os de cobrar em nome do IBAMA. Após regular processamento do feito, sobreveio a sentença em que houve a concessão da ordem. 2. Não houve recurso voluntário. 3. O Ministério Público Federal, em parecer, se manifestou no sentido do improvimento do recurso (fls. 183/186). Os autos haviam sido redistribuídos para uma das turmas especializadas em matéria tributária, tendo o Exm. Desembargador Federal Alberto Nogueira determinado a redistribuição do feito (fl. 188). É o relatório. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA Relator V O T O 1. O tema em discussão na remessa necessária diz respeito à suposta ilegalidade ou abuso do ato da autoridade impetrada no sentido de determinar que os associados da impetrante promovessem a cobrança da taxa de visitação da reserva ecológica dos turistas que por ali transitassem, conforme previsão contida na Portaria n 62/00. 2. Ao proferir a sentença, o juiz federal concedeu a ordem, desobrigando os filiados da impetrante quanto à atividade de cobrança dos valores em favor do IBAMA. Destaco, a respeito, trecho da sentença (fls. 164/172): "A questão a ser dirimida na presente demanda diz respeito apenas à obrigatoriedade ou não das operadoras de mergulho e empresas de turismo de recolher dos clientes que visitam a Reserva Extrativista de Arrail do Cabo a taxa devida ao IBAMA. 2
Ou seja, não se questiona a cobrança da taxa aos visitantes da Reserva, mas tão somente a exigência que vem sendo feita a tais empresas no sentido de que recolham, em favor do IBAMA, tal tributo, repassando-o a tal Autarquia através de depósito em boleto bancário. Ressalte-se ainda que a taxa cuja forma de cobrança enseja a presente demanda é a devida apenas pelos turistas que visitam a Reserva, e não pelas empresas que os transportam, conforme se constata não só pelas notificações emitidas pelo Impetrado, mas também pela nota de esclarecimento emitida pelo mesmo (fls. 35), em que se distingue nitidamente a taxa cobrada ao turista pela visita daquela cobrada das embarcações pela permanência na Reserva, que aliás, segundo tal documento, sequer seria cobrada das embarcações locais. Após uma análise cuidadosa dos aspectos jurídicos que envolvem a questão, entendo que deva prosperar a pretensão da Associação Impetrante. Os atos que ensejaram todo o questionamento foram as notificações expedidas pela Autoridade apontada como coatora em face das associadas da Impetrante para que cumpram a Ordem de Serviço n 06/2000 do Chefe do Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais, um órgão do IBAMA. Esta norma regulamentar dispõe sobre a forma de cobrança da taxa de visitação à Reserva de Arraial do Cabo (fls. 129), taxa esta fixada na Portaria n 62/2000 do Ministério do Meio Ambiente (fls. 17/18). Pelo procedimento previsto por tal Ordem de Serviço, as operadoras de mergulho e proprietários de embarcações de turismo deveriam embutir no preço cobrado a cada cliente (por mergulho ou passeio na área da reserva) o valor correspondente à taxa, para posterior recolhimento, através da rede bancária, em favor do IBAMA. 3
Em outras palavras, a mencionada Ordem de Serviço instituiu verdadeira obrigação tributária acessória (ou dever tributário instrumental) para as empresas turísticas que operam na área da reserva, inobstante não sejam estas as obrigadas ao pagamento do tributo, mas sim seus clientes, turistas e mergulhadores que frequentam a RESEX. (...) só a lei, em seu sentido formal, pode instituir uma obrigação acessória, limitando-se os atos regulamentares provenientes do Poder Executivo a tão somente explicitar a previsão contida no texto da lei. Esta conclusão está em harmonia com o entendimento dominante de que, com o advento da Constituição Federal de 1988, não podem mais ser editados em nosso sistema jurídico os chamados decretos autônomos, desvinculados de uma lei formal, mas apenas os decretos regulamentares, cuja utilização depende de prévia existência de lei. Entendimento contrário claramente violaria o princípio da legalidade, constitucionalmente consagrado pelo inciso II do art. 5 da CF: (...) No caso em tela, a Autoridade apontada como coatora pretende compelir os associados da Impetrante a realizar uma atividade tributária instrumental ou acessória (recolher taxa de seus clientes) prevista não em uma lei, mas em mera ordem de serviço editada pela administração do IBAMA. É óbvio que, conforme já exposto acima, nosso sistema jurídico não admite que um simples ato regulamentar, de origem administrativa, imponha ao particular uma obrigação de fazer, ainda que com a finalidade de auxiliar na arrecadação de um determinado tributo, conforme bem ressaltou o MPF em seu bem lançado parecer. 4
Certamente esta forma de cobrança, qu contaria com o auxílio das empresas envolvidas com a visitação da Reserva, seria talvez a mais adequada e efetiva, conforme ressaltou o Impetrado, informando que metodologia semelhante vem sendo observada no Parque Nacional Marinho de Abrolhos sem contestação por parte das empresas turísticas que efetuam a cobrança. Todavia, tal só poderia ocorrer na RESEX de Arraial do Cabo caso houvesse previsão legal para tanto ou, ao menos, existisse acordo com as empresas para que estas colaborassem espontaneamente com a administração do IBAMA, sendo ilegal coagi-las a realizar tal atividade. (...) 3. Nenhum reparo merece ser feito à sentença que, como visto, bem apreciou a questão litigiosa. Como ficou claro, não se discute no mandado de segurança a possibilidade de o Poder Público impor aos turistas o pagamento de determinado valor a título de taxa de visitação da reserva de Arraial do Cabo, mas sim a transferência do ato de cobrar tal valor por parte das sociedades empresárias que atuam no ramo do turismo local. 4. O que é objeto de insurreição por parte da impetrante, na condição de associação que congrega as pessoas jurídicas e físicas que atuam no ramo do turismo local, é a transferência do ato de cobrança dos valores devidos ao IBAMA. Na realidade, tal medida representou a criação de autêntica obrigação tributária acessória (ou dever tributário instrumental) relativamente às pessoas jurídicas que operam na área da reserva da Arraial do Cabo, sem que tenha sido editada lei a esse respeito. Houve, portanto, não apenas violação à regra contida no art. 5, II, da Constituição Federal, como bem reconheceu o juiz, como também atentouse contra o disposto no art. 113, 2, do CTN, que estabelece que a obrigação acessória somente pode decorrer de legislação. 5
5. Revela-se inexigível a reversão para terceiro de obrigação tributária, mesmo na modalidade acessória, sem expressa previsão legal. Como expressamente mencionou o MPF neste tribunal, se é notória a indigência do número de servidores para fiscalização das ações ambientais, é, de igual, público que essas circunstâncias não se apresentam como justificativa para transformar particulares em agentes fiscais ad hoc, máxime quando ausente mandamento legal a confortar essa prática. Neste sentido é a jurisprudência dos tribunais: AC 1999.01.00.32761-2-MG, Resp 89.967-RJ, entre outros. Conclui-se, portanto, no sentido da confirmação da sentença, não sendo possível a transferência de obrigação de cobrar valores devidos ao IBAMA por parte de agentes econômicos privados a não ser por previsão legal. 6. Ante o exposto, nego provimento à remessa necessária, para o fim de manter a sentença. É como voto. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA Relator E M E N T A APELAÇÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO. IMPOSIÇÃO DO ATO DE COBRANÇA DE VALOR DEVIDO AO IBAMA. OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. ART. 113,, CTN. ART. 5, II, CF/88. IMPROVIMENTO. 1. O tema diz respeito à suposta ilegalidade ou abuso do ato da autoridade impetrada no sentido de determinar que os associados da impetrante promovessem a cobrança da taxa de visitação da reserva ecológica dos turistas que por ali transitassem, conforme previsão contida na Portaria n 62/00. 2. Não se discute no mandado de segurança a possibilidade de o Poder Público impor aos turistas o pagamento de determinado valor a título de taxa de 6
visitação da reserva de Arraial do Cabo, mas sim a transferência do ato de cobrar tal valor por parte das sociedades empresárias que atuam no ramo do turismo local. 3. O que é objeto de insurreição por parte da impetrante, na condição de associação que congrega as pessoas jurídicas e físicas que atuam no ramo do turismo local, é a transferência do ato de cobrança dos valores devidos ao IBAMA. Na realidade, tal medida representou a criação de autêntica obrigação tributária acessória (ou dever tributário instrumental) relativamente às pessoas jurídicas que operam na área da reserva da Arraial do Cabo, sem que tenha sido editada lei a esse respeito. 4. Revela-se inexigível a reversão para terceiro de obrigação tributária, mesmo na modalidade acessória, sem expressa previsão legal. 5. Remessa necessária conhecida e improvida. A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos os autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por unanimidade, negar provimento à remessa necessária, na forma do relatório e voto constantes dos autos, que passam a integrar o presente julgado. Rio de Janeiro, 09/12/2009 (data do julgamento). GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA Relator 7