Tre esse seu percng do camnho que eu quero passar com a mnha dor por Iura Breyner F o t o : A n v ä n d a r e : Z e l n a ( W k m e d a Commons) Hoje, não por acaso, escute a canção Percng de Zeca Balero, uma reflexão profunda sobre a vda contemporânea e seus contrastes. A letra começa assm: Quando o homem nventou a roda, logo Deus nventou o freo. Um da, um feo nventou a moda e toda a roda amou o feo. uma provável alusão à ntelgênca humana, a uma amplação sempre crescente dos lmtes de sua lberdade e a conseqüente mprevsbldade que, por assm dzer, obrga Deus a pôr freo, como forma ndreta de controle, ou moderação. Na contnuação, faz referênca a um feo ndvíduo ou grupo humano fora do padrão, que, por sua vez despadronza por contágo a outros ndvíduos e ambentes que em algum momento e por razões dversas ncorporam ou padronzam o que antes era consderado contra-padrão. Lembre-me por um nstante de como alguns movmentos sóco-polítcos de caráter contestatóro como o Hppe e o Punk [1], surgdos nos EUA e Europa entre os anos 70 e
80, foram rapdamente absorvdos pelas mídas dos grandes centros urbanos dos cnco Contnentes, transformando-se em modas febrs e passageras que desfguraram total ou parcalmente a mensagem-mãe daqueles movmentos. Pense mesmo nas mas mportantes nvenções e descobertas do homem, como por exemplo, a roda e o domíno do fogo com seu efeto-domnó, cuja últma peça não seja outra que não aquela em que O Própro Deus resolva pôr quando quera o Seu Dvno Dedo. Pergunto-me se a questão sera mesmo a da ncontrolável ntelgênca humana e não a da sua nata lberdade, pela qual cada geração e cada ndvíduo tem o poder e a responsabldade de delberar seu rumo hstórco. Neste caso, de modo algum tera sdo Deus a nventar o freo, mas o própro Homem, sujeto atvo e passvo de seu lvre arbítro, como únco ser na natureza com capacdade de domíno e controle sobre os demas seres e os de sua própra espéce. Voltemos à letra da músca; desta vez ao refrão que a nttula: tre o seu percng do camnho, que eu quero passar, quero passar com a mnha dor!. Demos um salto na hstóra e nos contextualzamos na chamada pós-moderndade; o período cultural urbano do pós-guerra, ou da guerra e da morte nsttuconalzadas nas culturas urbanas do nosso mundo. A letra faz referênca à velha canção de Nelson Cavaqunho Tre o seu sorrso do camnho, que eu quero passar com a mnha dor a referênca na letra é sublnhada pela melódca; uma espéce de colagem muscal em que uma voz chorada e abafada canta ao fundo a segunda parte do trecho orgnal como resposta à provocação recrada da prmera. Agora já não é mas o sorrso ferno da amada, alheo e até talvez sarcástco ante a dor do poeta desprezado, mas o percng sgno da provocação punk à socedade cuja característca mas marcante é o horror à dor manfestado na hpervalorzação do conforto e do prazer e na hpócrta negação da própra realdade com suas mperfeções e ccatrzes ndsfarçáves. Sgno desgastado e esvazado de sgnfcação pelo uso excessvo, repettvo e ndscrmnado por esta mesma socedade que o ncorpora, como no evento ncalmente descrto, transformando-o em moda vaza. O percng, deslocado de seu contexto ncal e esvazado de sentdo numa socedade fast food dexa de apontar-lhe roncamente o dedo ndcador para trazê-la cudadosamente no anelar esquerdo. Sm; casou-se com ela e de agora em dante a representa em lugar de acusá-la. É precsamente a este percng trador, representante de uma colorda e atraente bolha de plástco à vácuo que o poeta Zeca Balero mpetra que lhe seja trado da frente para que sga adante com a sua dor. E o que é precsamente, esta dor do poeta? Voltemos à letra: Pra elevar mnhas déas não precso de ncenso
Eu exsto porque penso tenso, por sso exsto São sete as chagas de crsto São mutos os meus pecados Satanás condecorado na tv tem um programa Nunca mas a velha chama Nunca mas o céu do lado Dsneylânda eldorado Vamos nós dançar na lama Bye bye adeus Gene Kelly Como santo me revele como snto como passo Carne vva atrás da pele aqu vve-se à míngua Não tenho papas na língua Não trago padres na alma Mnha pátra é mnha íngua Me conheço como a palma da platéa calorosa Eu v o calo na rosa eu v a ferda aberta Eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar Mas a mnha mente boquaberta Precsa mesmo deserta Aprender aprender a soletrar Tre o seu percng do camnho, Que eu quero passar, quero passar com a mnha dor Em que pode consstr a dor de um poeta? A sua dor é a dor da vda; a dor do mundo que grande parte do mundo não sente; a dor de um homem com o pé na terra e o desejo no nfnto; um homem nteramente soznho no sentr e sorver o paradoxo e o mstéro da própra exstênca. A mutos outros homens, a máquna do pans et crcencs mundal consegue acalmar com suas belas promessas de fogos de artfíco, mas não a uma alma de poeta. Ela passa por entre as mesas e os espetáculos que aos demas delca ela mesma tantas vezes pão e crco entre outros, para os outros almentando-se apenas das mgalhas pobres do prazer alheo, qual peregrno no deserto em busca do Paraíso perddo. A alma de um poeta passa, vê, aponta e va-se embora mambembe. Pode até fcar no mesmo
lugar anos a fo, mas não permanecem os mesmos, nem o poeta, nem os que por ele passam, nem o terreno à volta de seu passo. Adentrando as nósptas terras de s mesmo, ele faz andar o mundo que o cerca. Neste passar por entre outros, a alma de um poeta dexa rastros de s mesma, de sua nsatsfação com este mundo e também da dreção para a qual seu camnhar mesmo que ncerto aponta: a do Absoluto. Por sso o passo de um poeta nunca passa despercebdo e na maora das vezes ncomoda e muto. Os pesados homens do não pense atram-se sobre ele; tentam comprá-lo, moldá-lo ou anulá-lo a todo custo: a moderndade é uma matlha de cães ravosos e assustados dz a letra; e é assm mesmo. Uma alma de poeta conhece o vale por onde passa; sabe seus pergos e encantos, mas não se detém a consderar estes ou aqueles; leva em conta apenas a necessdade mperosa do segur em frente até a morte cortna dvsóra entre o faz de conta e o real. A alma do poeta não teme a morte quase a deseja mas teme sm o tornar-se zumb um morto-vvo em seu própro mundo. A alma de um poeta deseja atravessar as notes com os olhos, os ouvdos e a boca abertos; deseja olhar, ouvr e dzer. Despreza a palavra maca e falsfcada o falso belo dos homens polítcos e da mída comum ; ama toda palavra, fonte de comuncação entre os homens de bem. Dexo Balero cantar: Não me dga que me ama Não me quera não me afague Sentmento pegue e pague emoção compre em tablete Mastgue como chclete jogue fora na sarjeta Compre um lote do futuro cheque para trnta das Nosso plano de seguro cobre a sua carênca Eu perd o paraíso mas ganhe ntelgênca Demênca, felcdade, propredade prvada Não se prve não se prove Dont t tell me peace and love Tome logo um engov pra curar sua ressaca Da moderndade essa armadlha Matlha de cães ravosos e assustados& O presente não devolve o troco do passado Sofrmento não é amargura
Trsteza não é pecado Lugar de ser felz não é supermercado Tre o seu percng do camnho O que é a felcdade? pergunta o autor Em que consste o ser felz neste mundo? No conforto? Na ausênca de dor? Na posse de uma sére de buggangas que dão status a quem as exbe? Quem sabe num certo grau de demênca que faz o homem materal e socalmente bem colocado no seu mundo gnorar quase por completo as sub-humanas condções em que vvem outros homens, tão dgnos de felcdade quanto ele? Quem sabe, talvez então, não estara a felcdade na supressão tecnológca e comportamental de toda prvação ou provação, na construção artfcal de uma espéce de socedade perfeta na qual palavras como sofrmento, amargura e trsteza sejam defntvamente bandas como legas, moras ou engordatvas? Entretanto, se não é possível extrpar da socedade tas termos, por conta de uns tantos extra-terrestres humanódes que parecem vndos a este mundo só para ncomodar com suas defcêncas, pobreza e sofrmento, ao menos se pode empurrá-los para o mas longe possível da nossa convvênca; seja jogando-os para as perferas de nossas cdades, seja pela construção de muralhas como meos de dstnção e segurança para as nossas confortáves e belas moradas. O nferno é escuro não tem água encanada Não tem porta não tem muro Não tem portero na entrada E o céu será dvno confortável condomíno Com anjos cantando hosanas nas alturas nas alturas Onde tudo é nobre e tudo tem nome Onde os cães só latem Pra enxotar a fome Todo mundo quer quer Quer subr na vda Se subr ladera espere a descda Se na hora h o elevador parar No vgésmo qunto andar e der aquele enguço Sempre va haver uma escada de servço
Tre o seu percng do camnho Que eu quero passar, Quero passar com a mnha dor Haverá uma ponte possível entre estes dos unversos paralelos da pobreza e da rqueza? O que se entende hoje por cardade? Dar presentes, roupas, ou comda ao pobre? Onde poríamos a lnha que dstngue estes dos termos cardade e justça? Bento XVI afrmava magstralmente em sua Encíclca Spe Salv, que a Cardade chega onde a Justça não alcança. Não que a Justça não possa ser perfetamente cumprda neste mundo, o que em sentdo estrto é bem verdade, mas não por sso. Anda que uma socedade possa alcançar um avançado grau de justça legal e moral neste nosso mundo contemporâneo, havera sempre nele a carênca desta outra vrtude, a da Cardade, que não consste propramente em dar o que nos sobra quando não o que nos estorva mesmo mas sm em dar-nos a nós mesmos até a últma gota do coração com toda a sua capacdade de amar, de querer, de desculpar, perdoar e compreender. A Cardade o Amor Fraterno stua-se num nível lgeramente superor ao da Justça; anda lado a lado com ela e não a prescnde, mas stua-se em outro patamar moral, o da lberaldade. Em tal patamar, não busca o homem tal vrtude por s mesmo, mas para chegar ao outro. A Justça consste em dar a cada um o que lhe é devdo. A Cardade consste num abrr-se total e lmtadamente ao outro, porque descobre nele a dversdade de dons e valores, ao mesmo tempo que a smlardade da espéce, que nos faz todos guas em termos de valor e dgndade. A Justça, como a Cardade e todas as demas vrtudes, como tas, consstem em hábtos; predsposções da pessoa para o bem através da repetção de atos moras bons. A vrtude, enquanto hábto adqurdo e/ou por se adqurr, custa trabalho e persstênca. Todo mundo sabe tudo todo mundo fala, dz a letra fácl é falar Mas a língua do mudo nnguém quer estudá-la! : uma claríssma referênca à pouca ou nenhuma dsposção natural das pessoas a moverem-se no sentdo de verdaderamente escutar; nteressar-se sncera e retamente pelos outros. Pergunto-me a respeto deste verso, o quão dsposta estara eu estaríamos nós a dar espaço ao outro no meu pensamento e na mnha vontade, de forma que o eu se ponha voluntaramente em segundo plano em favor do outro. Sm, é precso estar dsposta e trenar daramente: Quem não quer suar camsa não carrega mala; revólver que nnguém usa não dspara bala. Tenho que aprender a me enxergar e enxergar o outro, pensando que a fraqueza dele é também a mnha. Tenho que entender que todos somos passíves de engano e erro. Tenho que sar da mnha zona de conforto e aprender a me comuncar com aqueles que não são da mnha rua ou que não pensam como eu. Tenho que acetar ser uma estranha para o outro e sentar-me formalmente em sua sala de vstas para chegar à ntmdade de seu quarto, onde só ele, além de Deus, sabe das dores e alegras de se ser o que mas íntma e verdaderamente se é.
Pra chegar na mnha cama tem que passar pela sala Quem não sabe dá bandera quem sabe; sabá cala Lga aí; porta-bandera não é mestre-sala E não se fala mas nsso! Mas nsso não se fala! E não se fala mas nsso Mas nsso não se fala Tre este seu percng do camnho que eu quero passar, Quero passar com a mnha dor! NOTAS: [1] O Movmento hppe surgu nos EUA nos anos 70, questonando a utlzação de homens jovens como bucha de canhão pelo Estado em seus jogos de guerra, bem como a hpervalorzação das regras moras da socedade, não na sua essênca, mas apenas no seu aspecto formal, e o segundo a exaltação da frvoldade e do luxo da socedade de consumo ocdental captalsta dos anos 80, especalmente pelas mídas televsvas e cnema amercano desta época. Por Iura Breyner Botelho, especalsta em Hstóra da Arte e Crítca de Arte.