HABITAÇÃO E TRANSPORTE COLETIVO: NÃO INTEGRAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS REFORÇANDO DESIGUALDADES SOCIAIS

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Transcrição:

HABITAÇÃO E TRANSPORTE COLETIVO: NÃO INTEGRAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS REFORÇANDO DESIGUALDADES SOCIAIS Simaia do Socorro Sales das Mercês Universidade Federal do Pará / Núcleo de Altos Estudos Amazônicos simrcs@yahoo.com.br Rodrigo Saraiva da Silva Universidade Federal do Pará / Faculdade de Geografia e Cartografia rodrigosaraivaufpa@gmail.com Introdução Acessibilidade e mobilidade são fundamentais à reprodução social dos grupos e classes sociais em áreas urbanas, em vista da divisão social e técnica do espaço. Assim, as condições de deslocamento refletem conflitos de classe e definem a efetiva integração à cidade. Com vistas, entre outros objetivos, ao atendimento das necessidades da classe trabalhadora e dos grupos menos favorecidos economicamente, os modos coletivos e públicos de deslocamento devem ser fortalecidos em relação aos modos individuais e privados. No entanto, no Brasil, ao mesmo tempo em que se observou enorme crescimento das áreas urbanas a partir do final dos anos 1950, com a ocupação de extensas periferias pelos segmentos mais pobres da população e aprofundamento das desigualdades sociais, implantouse o "padrão automobilístico-rodoviário" (Braga e Agune, 1979). Essa opção tem tido fortes impactos negativos, dos quais destacam-se, para os fins deste trabalho, aqueles observados na organização do espaço urbano, na segregação socioespacial, na mobilidade e na qualidade dos deslocamentos, especialmente os efetuados pelas camadas da sociedade com menores rendimentos. Desde longa data, o planejamento de transporte preconiza a integração das políticas nesse setor com ações no uso e ocupação do solo, mas essa integração tem sido problemática nas cidades brasileiras. Neste momento, com a implementação do Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV, a principal ação dos governos no setor habitação popular a partir de 2009, assiste-se mais uma vez o desenvolvimento de política habitacional não integrada a políticas que objetivem garantir acessibilidade e mobilidade satisfatórias. Referida integração compõe o rol de ações fundamentais para buscar minimizar os efeitos da localização periférica da maioria dos empreendimentos produzidos no âmbito do programa, que tem sido apontada na literatura. Página 1 de 13

Apesar da forte correlação, acessibilidade e mobilidade precárias não são intrinsecamente decorrentes de localizações periféricas no espaço urbano-metropolitano, como mostram análises sobre a mobilidade de grupos sociais que habitam áreas distantes das centralidades urbanas e utilizam principalmente automóvel nos seus deslocamentos. Por outro lado, boas localizações nem sempre garantem níveis satisfatórios de acessibilidade e mobilidade através do transporte público coletivo. Neste último caso, encontram-se empreendimentos produzidos pelo PMCMV na Região Metropolitana de Belém - RMB. Pesquisa apontou que, nessa região, fatores conjunturais propiciaram localizações relativamente boas aos empreendimentos contratados na primeira etapa do programa, porém a percepção dos beneficiários é que a acessibilidade a serviços e equipamentos urbanos não é satisfatória devido a deficiências do sistema de transporte por ônibus (MERCÊS, 2012, 2013). Este trabalho tem por objetivo analisar a acessibilidade propiciada por transporte público coletivo a beneficiários de programa habitacional e comparar os resultados da política segundo categorias de seus beneficiários. Os dados empíricos são referidos aos empreendimentos contratados na primeira etapa do PMCMV na RMB e ao sistema de transporte por ônibus gerenciado pela Superintendência Executiva de Mobilidade Urbana de Belém - SEMOB. Esse sistema envolve a totalidade das linhas metropolitanas que circulam na maior parte dos municípios componentes da região. No desenvolvimento do estudo foram utilizados indicadores de micro e de macroacessibilidade baseados nas variáveis: 1. distância entre empreendimento habitacional e rede de transporte; e 2. cobertura espacial das linhas em relação à área metropolitana. Os indicadores foram calculados de duas formas: isoladamente e agrupados segundo a faixa de renda dos beneficiários a que se destinam os empreendimentos. Além da abordagem quantitativa, também foi analisada a configuração da cobertura espacial das linhas em relação às características da estrutura do espaço urbano-metropolitano. O estudo apontou que é restrita a acessibilidade propiciada pela rede de transporte por ônibus a grande parte dos empreendimentos contratados na primeira etapa do Programa Minha Casa, Minha Vida e, destaca-se, que os destinados à população com menor renda tem piores indicadores de acessibilidade do que os voltados às faixas de renda superiores. Isso se mostra ainda mais perverso ao se observar que os impactos negativos na mobilidade e na integração à cidade são mais graves para as faixas menos favorecidas economicamente, dado que são mais dependentes do transporte público, enquanto que as classes medias têm o atendimento a suas necessidades de reprodução baseado no uso do veículo particular. Essas considerações Página 2 de 13

permitem inferir que a implementação de política habitacional desarticulada de ações no setor transporte coletivo contribui para o aprofundamento das desigualdades sociais. Referências teórico-metodológicas O modelo de crescimento econômico adotado e o processo de urbanização no Brasil resultaram na produção de cidades caracterizadas por fragmentação, periferização, segregação socioespacial, precariedade de infraestrutura, de equipamentos e de serviços urbanos, com grandes níveis de desigualdade social e impactos negativos na mobilidade, especialmente das classes e grupos sociais mais vulneráveis. Com o aumento da população nas cidades, os problemas mais recorrentes do modelo tradicional de planejamento urbano e de transporte estavam relacionados à circulação e à infraestrutura dos sistemas viários. Os planejamentos macroeconômico e urbano no Brasil priorizaram a escolha do modo individual e motorizado de transporte urbano e o aumento constante do uso do automóvel acabou por dispersar as atividades urbanas e multiplicou a necessidade de realização de um grande número de viagens, causando um maior nível de dependência do automóvel para os deslocamentos diários e para o desenvolvimento das atividades sociais (trabalho, lazer, saúde). Vasconcellos (1996, 2013) aponta que os grupos sociais com renda mais baixa acabam por ter um índice de mobilidade muito inferior ao dos grupos sociais com maior poder aquisitivo, inferindo diretamente ao custo do transporte, pois a necessidade de deslocamento para o desenvolvimento de suas atividades sociais pode ser maior devido às distâncias a serem percorridas por esses moradores que geralmente se localizam em áreas subequipadas, sem a oferta das condições básicas para sua reprodução social. Esse autor sintetiza a problemática construída em torno do tema da seguinte forma: As longas distâncias estão relacionadas ao processo de ocupação das periferias urbanas, ligadas à dissociação entre o custo da terra e da moradia, e a renda dos grupos sociais mais pobres. Estes sofrem, também, o impacto do crescimento urbano descontrolado, em que a oferta de empregos está totalmente dissociada dos locais de moradia da maioria das pessoas. Por outro lado, o tempo de percurso do transporte público é alto, porque há distâncias grandes a caminhar até o ponto de parada (muitas vezes em condições péssimas das calçadas), longos tempos de espera e longos tempos dentro do veículo, em virtude da precariedade do sistema viário ou ao congestionamento (VASCONCELLOS, 2013, p. 153). Este trabalho busca analisar a acessibilidade a partir de uma abordagem sociológica do transporte, conforme proposta por Vasconcellos (1996) com base em outros autores, segundo o qual esta seria uma alternativa para analisar as políticas públicas e os Página 3 de 13

problemas de transporte e trânsito, considerando as disputas, as contradições, as relações de poder e o papel desempenhado pelos diferentes agentes sociais. O foco central dessa abordagem partiria do entendimento da concepção social e política dos problemas de transporte e trânsito, evidenciando-se as condições de mobilidade dos grupos sociais envolvidos, o que possibilitaria análises mais ricas ao abandonar estudos de cunho quantitativo, realizados por planejadores tradicionais. A abordagem sociológica tem como objetivo a analise dos padrões de viagem e seus condicionantes históricos, políticos e sociais, como as políticas públicas atuam nos processos decisórios e quais seus impactos nas classes sociais (VASCONCELLOS, 1996, 2013). Na avaliação das condições de transporte e trânsito, segundo a abordagem sociológica do transporte, têm importância os conceitos de macroacessibilidade e microacessibilidade. A macroacessibilidade referir-se-ia a: facilidade relativa de atravessar o espaço e atingir as construções e equipamentos urbanos desejados. Ela reflete a variedade de destinos que podem ser alcançados e, consequentemente, o arco de possibilidades de relações sociais, econômicas, políticas e culturais dos habitantes do local. A macroacessibilidade tem relação direta com a abrangência espacial do sistema viário e dos sistemas de transporte, estando ligada às ações empreendidas no nível do planejamento de transportes, que define a constituição básica destes sistemas. Na prática, a macroacessibilidade também pode ser alterada no nível do planejamento da circulação, por meio das vias de mão únicas ou pela conexão de vias antes desconectadas, o que aumenta muito as possibilidades de interligação e penetração do espaço. (VASCONCELLOS, 1996, p. 91). A microacessibilidade, por sua vez, referir-se-ia "à facilidade relativa de ter acesso direto aos veículos ou destinos desejados (VASCONCELLOS, 1996, p. 91). No caso do transporte público, a Microacessibilidade pode ser representada pelo tempo de acesso ao ponto de ônibus/trem/metrô, ou pelo tempo de acesso ao destino final, após deixar o último veículo de transporte público. No primeiro caso, o tempo pode ser dividido entre o tempo andando e o tempo esperando, que podem ser obtidos nos estudos de origem-destino. No entanto, quando eles não estão disponíveis, o tempo médio de acesso pode ser estimado em função da área média de captação dos pontos de transporte público e da velocidade média de caminhada. (VASCONCELLOS, 1996, pp. 141, 142). Ao se tratar da articulação de pontos no espaço, o estudo da acessibilidade remete também à incorporação da estrutura urbana como elemento da análise. Aqui se sobressaem as centralidades como áreas que concentram as atividades em uma cidade. As centralidades podem ser de vários tipos, destacando-se neste trabalho as áreas centrais e os subcentros. Para Corrêa, na área central " concentram-se as principais atividades comerciais, de serviços, da gestão pública e privada, e os terminais de transporte inter-regionais e intra-urbanos. Ela se destaca na paisagem da cidade pela sua verticalização" (CORRÊA, 1999, p 38). O subcentro Página 4 de 13

regional "constituir-se-ia em uma gama complexa de tipos de lojas e de serviços, incluindo uma enorme variedade de tipos, marcas e preços de produtos. Muitas são filiais de firmas da área central, e, à semelhança desta, porém em menor escala, o subcentro regional constitui-se em importante foco de linhas de transporte intra-urbano (CORRÊA, 1999, p 51). Nem todas essas características correspondem às centralidades conforme observado atualmente nas cidades brasileiras, porém as definições indicam o que se considera fundamental: a concentração de atividades em determinadas áreas das cidades. As centralidades, então, seriam áreas de grande interesse para as viagens urbanas. Porém, o acesso a outros pontos da cidade pode ser de interesse e o sistema de transporte deve também atender a essas necessidades. Outro pólo de suma importância na análise da acessibilidade e mobilidade são os locais de residência. Atualmente, a política de provisão habitacional para as camadas populares está fortemente ancorada no PMCMV. Esse programa foi criado em 2009, através da Medida Provisória nº 459/2009, convertida na Lei Federal nº 11.977/2009, com objetivos de intervir na crise econômica e de produzir habitação para famílias com renda até 3, entre 3 e 6 e entre 6 e 10 SMs. O programa foi alterado em 2011, inaugurando uma nova etapa na sua implementação 1. Impactos negativos do PMCMV tem sido apontados por analistas, sendo a localização dos empreendimentos uma dimensão recorrentemente criticada. Além disso, destacam-se aqui os resultados do estudo que, referindo-se aos empreendimentos do PMCMV contratados no Rio de Janeiro e considerando que não houve alocação da produção habitacional de forma adequada na cidade, conclui que o programa acaba por reproduzir o modelo tradicional de planejamento urbano, encontrando-se dissociado de qualquer política de uso do solo e transporte e não obedecendo preceitos para o desenvolvimento de uma cidade sustentável (BARANDIER, 2012). Na RMB, uma conjuntura específica permitiu que alguns empreendimentos tivessem localização próxima a centralidades, o que poderia configurar facilidade de acesso a locais de interesse para reprodução social (MERCÊS, 2012). Segundo os beneficiários desses empreendimentos, contudo, as condições para integração urbana são prejudicadas pelas deficiências do sistema de transporte público, em especial no que concerne à quantidade de linhas que circulam na área e aos seus itinerários (MERCÊS, 2013). Interessa, então, analisar a acessibilidade propiciada pelo sistema de transporte público por ônibus aos empreendimentos contratados no âmbito do Programa. Essa análise, como se verá adiante, evidencia os problemas gerados pela desarticulação entre as políticas de habitação e as ações Página 5 de 13

no setor transporte, aprofundando a desigualdade social, inclusive entre as categorias de beneficiários do PMCMV. Procedimentos metodológicos Os dados sobre os empreendimentos da primeira fase do PMCMV, obtidos junto à Caixa Econômica Federal, foram sistematizados, agrupados segundo as faixas de renda de 0 3 SMs e de 3 10 SMs e organizados em SIG, especificamente no ArcMap. Os itinerários das linhas de transporte público por ônibus foram digitalizados a partir dos dados fornecidos pela SEMOB. Em seguida, foram identificadas as linhas de transporte por ônibus que atendem aos empreendimentos em estudo, considerando, com base na literatura disponível, um indicador de adequada microacessibilidade, ou seja, foi admitida a distância máxima de 600 metros, em linha reta, entre os empreendimentos habitacionais e o itinerário da linha de transporte por ônibus. Ainda tomando como referência o indicador de microaccessibilidade adequada, foram mapeadas e calculadas as coberturas espaciais das linhas de transporte por ônibus, delimitando-se polígonos definidos pela distância de 600m para cada lado a partir do eixo das vias nas quais as linhas circulam. A cobertura espacial corresponde à área possível de ser alcançada pelos usuários do transporte público, residentes nos empreendimentos, sem a necessidade de transbordo (troca de linha de transporte coletivo). A opção de não admitir transbordo decorre do fato de que na RMB não há integração das linhas de transporte coletivo, nem é utilizado o sistema de bilhete único. A necessidade de transbordo de linhas na realização de viagens impõe, portanto, um custo adicional pelo pagamento de mais de uma tarifa. A cobertura espacial assim delimitada permitiu analisar a macroacessibilidade propiciada pelo sistema de transporte público por ônibus aos empreendimentos do PMCMV. A análise da macroacessibilidade foi realizada de duas formas: a) quantitativamente e b) qualitativamente. A análise quantitativa tomou em consideração as áreas de cobertura espacial do sistema de transporte em relação à somatória das áreas dos municípios selecionados no estudo. A análise qualitativa reportou-se apenas aos empreendimentos da faixa de renda de 0 3 SMs e buscou observar os destinos potencialmente alcançados pela cobertura espacial do sistema de transporte, especificamente as centralidades do espaço urbano estudado. A opção de limitar a análise qualitativa aos empreendimentos da faixa de menor renda se justifica pela maior dependência que essa população tem do transporte coletivo. Página 6 de 13

A área da RMB selecionada para este estudo envolve os municípios atendidos pelo sistema de transporte por ônibus gerenciado pela SEMOB e totaliza pouco mais de 1.800 km 2 (Tabela 1). Tabela 1 - Área selecionada para estudo Área Município (km 2 ) Ananindeua 190,50 Belém 1.059,41 Benevides 187,83 Marituba 103,34 Santa Bárbara do Pará 278,15 Total 1.819,23 Acessibilidade propiciada aos beneficiários do Programa Minha Casa, Minha Vida na Região Metropolitana de Belém Do total de unidades habitacionais contratadas no âmbito da primeira etapa do PMCMV na RMB e destinadas à faixa de renda entre 0 e 3 SMs 2, 32% não possui índices adequados de microacessibilidade, ou seja, as unidades habitacionais estão localizadas a uma distância superior a 600 metros da rede de transporte por ônibus (Tabela 2). As demais unidades habitacionais encontram-se em condições adequadas de microacessibilidade, mas a macroacessibilidade mostra-se deficiente, uma vez que o sistema de transporte coletivo tem pequena cobertura espacial: para 25% das unidades habitacionais, a área que pode ser alcançada sem a necessidade de transbordo corresponde a menos de 2,5% da área dos municípios considerados neste trabalho, índice que consideramos muito insatisfatório; para 36% das unidades habitacionais, a cobertura espacial é um pouco maior, mas sem ultrapassar 10% da área metropolitana selecionada, o que pode ser considerado razoável; e para apenas 7% das unidades habitacionais o índice de cobertura espacial é superior a 10% da área em estudo. Assim, a maioria dos residentes nos empreendimentos do PMCMV destinados à população com renda entre 0 e 3 SMs, na 1ª etapa do programa, sendo altamente dependentes do transporte público por ônibus, sofre os impactos de uma mobilidade excludente. Página 7 de 13

Tabela 2 - RMB: PMCMV / 0-3 SMs / 1ª Etapa e Cobertura Espacial do Transporte por Ônibus Município Empreendimento Quantidade de UHs Cobertura espacial (km2) Cobertura espacial em relação à área de estudo Marituba Residencial Jardim Albatroz II 142 0 0,00 Ananindeua Residencial Taguará 192 0 0,00 Santa Isabel do Pará Jardim das Garças 224 0 0,00 Marituba Residencial Jardim Albatroz I 240 0 0,00 Ananindeua Residencial Ananin 495 0 0,00 Ananindeua Residencial Jardim Campo Grande 420 36,51 2,01 Marituba Residencial Jardim dos Pardais 420 43,26 2,38 Santa Bárbara do Pará Jardim das Andorinhas 221 114,05 6,27 Benevides Residencial Jardim dos Jurutis II 352 134,57 7,40 Benevides Residencial Jardim dos Jurutis I 360 134,57 7,40 Marituba ResidencialJardim dos Eucaliptos 256 175,62 9,65 Ananindeua Residencial Paulo Fonteles II 224 195,87 10,77 Fonte: Autores, a partir de dados da CEF e SEMOB Todos os empreendimentos contratados pelo PMCMV na faixa destinada a atender o segmento da população com renda entre 3 e 10 SMs estão em um nível de microacessibilidade considerado adequado, mas os índices referentes à macroacessibilidade, ou seja, à cobertura espacial do sistema de transporte por ônibus, em geral, são baixos (Tabela 3): para 62% das unidades habitacionais, a cobertura espacial é insatisfatória, pois se encontra abaixo de 5% da área considerada no trabalho, tornando mais difícil a realização de deslocamentos sem a necessidade de transbordo; para 26% das unidades habitacionais, a cobertura espacial é maior que 5% e menor que 10% da área, o que pode ser considerado razoável; apenas 12% das unidades habitacionais dispõe de boa cobertura espacial pelo transporte por ônibus, com um índice superior a 10% da área considerada no estudo. Página 8 de 13

Tabela 3 - RMB: PMCMV / 3-10 SMs / 1ª Etapa e Cobertura Espacial do Transporte por Ônibus Município Empreendimento Quantidade de UHs Cobertura espacial (km 2 ) Cobertura espacial em relação à área de estudo Ananindeua Residencial Atlanta 48 22,41 1,23 Ananindeua Condomínio Alvorada 68 28,84 1,59 Ananindeua Residencial Safira Park 416 42,22 2,32 Ananindeua Residencial Viver Ananindeua 280 50,60 2,78 Ananindeua Residencial Ilhas do Atlântico II 160 55,55 3,05 Ananindeua Residencial Ilhas do Atlântico I 280 55,55 3,05 Belém Residencial Ilha Bela 196 62,15 3,42 Ananindeua Residencial Eco Independência 29 65,55 3,60 Belém Edifício Safira Eco 29 85,84 4,72 Belém Ecoville Residence 105 88,86 4,88 Ananindeua Residencial Solar do Coqueiro 400 88,86 4,88 Ananindeua Residencial Ilhas do Caribe 48 90,89 5,00 Ananindeua Residencial Parque dos Coqueiros 224 90,89 5,00 Belém Residencial Ilha Porchat 88 131,84 7,25 Marituba Bella Cittá Total Ville - Salinas II 160 134,88 7,41 Marituba Bella Cittá Total Ville - Salinas I 302 134,88 7,41 Marituba Bella Cittá Total Ville - Soure 384 134,88 7,41 Ananindeua Condomínio Lago da Lua 48 239,13 13,14 Ananindeua Residencial Viver Castanheira 256 239,13 13,14 Ananindeua Residencial Apoena 128 241,98 13,30 Fonte: Autores, a partir de dados da CEF e SEMOB Em termos comparativos, na 1ª etapa do PMCMV, encontrou-se maior percentual de unidades habitacionais destinadas à faixa de renda entre 3 e 10 SMs com baixa macroacessibilidade através do transporte por ônibus. Contudo, deve-se atentar para o fato de que tal sistema não é tão prioritário para esse segmento da população, já que neste se encontra amplamente difundida a ideologia e o uso do transporte individual privado (VASCONCELLOS, 1996), tornando o acesso ao transporte público menos necessário para esses grupos sociais. Por esse motivo, a análise qualitativa não foi realizada em relação aos empreendimentos dessa faixa de renda. A análise buscou observar os destinos potencialmente alcançados pelo sistema de transporte por ônibus, sem necessidade de transbordo, em especial, o acesso às principais Página 9 de 13

centralidades da área estudada, a partir apenas dos empreendimentos contratados na 1ª etapa do PMCMV e destinados à faixa de renda de 0-3SMs. O Jardim dos Pardais é o único empreendimento que não tem acesso à área central ou ao centro principal, circulando apenas por três subcentros locais. Ao Residencial Juruti I e Residencial Jardim Juruti II, Campo Grande e Jardim das Andorinhas há oferta de acesso á área central e a alguns subcentros. Os empreendimentos Paulo Fontelles II e Jardim dos Eucaliptos têm acesso à área central e a todos os subcentros (Figuras 1A e 1B). Figura 1A - RMB (parcial): Empreendimentos do PMCMV / 3-6 SMs / 1ª Etapa e Cobertura Espacial do Sistema de Transporte por Ônibus, Abr. 2014 Página 10 de 13

Figura 1B - RMB (parcial): Empreendimentos do PMCMV / 3-6 SMs / 1ª Etapa e Cobertura Espacial do Sistema de Transporte por Ônibus, Abr. 2014. Página 11 de 13

Considerações Finais A acessibilidade propiciada pelo transporte público coletivo é elemento fundamental na efetivação do direito à cidade para as camadas da população menos favorecidas economicamente. A baixa acessibilidade que caracteriza os assentamentos habitacionais desses segmentos aprofunda a desigualdade social, pela mediação da mobilidade restrita, que limita o acesso a oportunidades de integração e desenvolvimento social. Atualmente, a política de provisão de habitação popular no país, baseada principalmente no PMCMV, é implementada sem garantir o acesso à terra bem localizada nas áreas urbanas e de forma desarticulada de ações no setor transporte, tornando mais precária e restrita a mobilidade de seus beneficiários. A análise empreendida neste artigo mostra a necessidade de intervenção pública de forma a aumentar os níveis de acessibilidade aos empreendimentos do programa através do sistema de transporte por ônibus. Essa necessidade se evidenciou para todas as faixas de renda a que se destina o programa, mas principalmente para a compreendida entre 0 e 3 SMs, cujos índices de micro e macroacessibilidade encontrados são os mais baixos. Os elementos da estrutura urbana alcançados pelas linhas de ônibus disponíveis aos beneficiários com renda na faixa mais baixa são quase que unicamente as centralidades, os corredores metropolitanos principais e, para poucos, algumas vias arteriais, deixando assim inacessível parcela significativa da área metropolitana ou condicionando seu acesso à realização de transbordo, o que, para muitos, certamente representa restrição à mobilidade. Nas áreas desatendidas podem estar localizados importantes destinos desejados pelos moradores dos empreendimentos contratados. A diferença de acessibilidade por transporte público coletivo observada entre as categorias de empreendimentos habitacionais, com piores níveis aos que mais necessitam desse modo de deslocamento, confere uma natureza regressiva à política habitacional estudada e coloca-a, por mais esse motivo, na contramão dos objetivos de integração social preconizados pelos movimentos pelo direito à cidade. Referências BARANDIER JUNIOR, J. R. da G. Acessibilidade da População Alvo do Programa Habitacional para Baixa Renda na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado) - COPPE/UFRJ BRAGA, J. C. et AGUNE, A. C. 1979. Os transportes na política econômica 1956/79. São Paulo: FUNDAP, 1979 Página 12 de 13

CORRÊA, R. L. O espaço urbano. São Paulo: Editora Ática, 1999, 4ª edição. MERCÊS, S. S. das. LUZ, D. L. U. MERCÊS, J. A. S., SANTOS, L. V. Políticas de habitação popular: integração na cidade e impactos socioeconômicos na percepção dos beneficiários. Papers do NAEA (UFPA), v.323, p.1-25, 2013. Percursos do direito à cidade: provisão estatal e empresarial de moradia popular na região metropolitana de Belém. Revista Cadernos Metrópole v. 14, n. 28, 2012 VASCONCELLOS, E. de A. Políticas de Transporte no Brasil: a construção da mobilidade excludente. Barueri, SP: Manole, 2013. Transporte urbano, espaço e equidade: análise de políticas públicas. São Paulo: Editoras Unidas, 1996 1 Através da Medida Provisória nº 514/2010 convertida na Lei nº 12.424/2011. 2 Considerado o valor do salário mínimo no momento de instituição do PMCMV. Página 13 de 13