AS ONGs NA RECONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NO BRASIL



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São Paulo 26-28 março 1998 AS ONGs NA RECONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NO BRASIL Ricardo Toledo Neder (*) Resumo - A reconstrução da sociedade civil no Brasil é também reinvenção de novos formas de interlocução e tensão entre diversos atores sociais. Diferentemente do passado, quando a esfera pública confundia-se com a governamental ou estatal, hoje é crucial fazer operar as distinções entre o que é público, mas não é estatal, e tampouco se confunde com os interesses privados no mercado. Este é o quebra-cabeças: refletir sobre uma esfera que não é governo, nem mercado, mas uma esfera pública não-estatal e nãomercantil, ocupada com a superação da exclusão social. Para tanto, são considerados os agentes sociais dinamizadores destes espaços públicos, focalizando em particular o perfil de interações das ONGs no Brasil. Discute-se em que medida há transparência nestas intereções, entendida como a qualidade que orienta aos atores na busca de uma das condições básicas do entendimento com outros agentes, que é ser visível quanto aos seus fins e propósitos, e comparecer em público para assumir isto como compromisso. I Ato Sociedade civil com recomposição da violência? O Forum Global das Organizações Não-Governamentais (ONGs) na ECO-92 foi parte de uma série de eventos que a mídia impressa e eletrônica no Brasil detectou quanto a capacidade de mobilização e articulação da sociedade civil no país. (Outro evento, iniciado no segundo sementre daquele ano levaria a deposição do Presidente da República). 1 Ao mesmo tempo que se dá o surgimento das ONGs e de vários outros sintomas da reconstrução da sociedade civil, assistimos bestificados aos sintomas de recomposição dos mecanismos de dominação e destruição de (*) Cientista político, professor-doutor no Instituto de Economia da UNICAMP. Agradecimento ao apoio da FAPESP para realização desse trabalho. Endereço eletrônico: officina@uol.com.br 1 A mídia brasileira, descobre as ONGs entre a Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro em 1992, e a fase pré-eleitoral de 1994. Exemplo disto é "O Brasil organizado funciona", matéria de capa da revista Veja com a seguinte chamada interna: "Numa lição de eficiência e cidadania, 5.000 organizações não governamentais mostram como fazer o país dar certo". (Veja de 9 de fevereiro de l994).

)2( segmentos expressivos das camadas populares no país - uma forma de burrice do demônio, como nos lembra Hélio Pellegrino, em epígrafe. Na hipótese de aumentar o hiato entre democracia política formal, e a crise social, a maior vítima desse fracassso será o pobre, já que na ausência de eficácia para sua mobilidade social e política como cidadãos, restaria a exclusão, e daí a morte social. Para evitar isto, segundo os engajados na hipótese contrária - ou seja, na redução desse hiato - o processo de re-invenção da sociedade civil no Brasil deve buscar novos modelos de regulação social e econômica de interesses e conflitos privados, guerra imposta pelas classes dominantes cujo resultado é a solidão do próximo. Sabemos que a indústria cultural disseminou a noção de esfera estatal, governamental e pública como termos sinônimos. Entretanto, isto está cada vez mais difícil de se sustentar. O problema da proteção do indivíduo pelo Estado é um ponto de partida obrigatório: o poder estatal protege os interesses (privados e públicos) de todos os cidadãos, conciliando-os quando estes entram em conflito entre si. Quando isto não ocorre, porém, a pretensão de soberania do estado é destituida de base social porque fracassam tanto o que Max Weber chamou de domínio organizado do território, quanto a relação das pessoas a nível subjetivo ou interno, inviabilizando o mínimo de sociabilidade política que supere o isolamento. Daí a nossa maior dificuldade no país: trabalhar na prática para que esta proteção se universalize, embora o caminho mais eficaz para isto já não seja exclusivamente pela via do fortalecimento da esfera estatal e governamental, mas pelo alargamento de esferas públicas não-governamentais cuja maior virtualidade é garantir a sociabilidade política das pessoas (no sentido de sua livre e criativa associação, encontro e reunião). Decorre disto a importância das possíveis distinções entre o que é público, mas não é estatal, e tampouco se confunde com os interesses privados (que estão longe de serem atomizados) no mercado. Este é o quebra-cabeças: refletir sobre uma esfera que não é governo, nem mercado, mas uma esfera pública não-estatal e não-mercantil. II Ato A reconstrução dos limites entre público e privado De maneira geral, isso que a imprensa passou a chamar de organizações não-governamentais seria parte de um fenômeno inciado nos anos 60, de diversificação de associações de cidadãos na sociedade brasileira. Este fenômeno foi chamado de infra-estrutura poliárquica (típica de sociedades onde opera a diversidade ou pluralidade dos centros de poder). No nosso caso, esta poliarquia estaria se constelando por intermédio da diversificação e ampliação da ação coletiva, movimentos de associações de utilidade pública (porque sem fins lucrativos) e organisações nãogovernamentais. O autor desta visão se apoia, entre outros dados, em levantamento de associações civis, registradas em cartórios, nas duas maiores cidades do país: elas cresceram de 996 em 1960, para 2.553, em 1980 em São Paulo. No Rio de Janeiro de 1.093 na década de 60, o número destas associações subiu para 2.498 nos anos 80. 2 2 Fonte: SANTOS, Wanderley G. dos. Razões da Desordem. Rio de Janeiro. Rocco. 1993. Cap. 3. Fronteiras do Estado Mínimo - indicações sobre o híbrído institucional brasileiro (p. 84). [Dados originais decenais agregados para o presente artigo. Conforme alerta do autor, estes números se referem a registro abertos ano-a-ano, não havendo baixa nos registros das entidades que encerraram suas atividades].

)3( III Ato Os atores A literatura mais recente (década de 90) identifica três sujeitos, atores ou agentes, os quais poderíamos problematizar como possíveis candidatos a fundadores de um novo espaço público que possa superar a exclusão social no Brasil : (i) (ii) As associações laicas e religiosas, cujas relações com as classes populares no Brasil data dos tempos coloniais por meio de tessituras que se recompõem historicamente em torno dos regimes políticos, das ações de elites locais e nacionais e, sobretudo, das políticas do Estado. O segmento de fundações, institutos e empresas privadas cujas doações para projetos sociais, culturais, de promoção beneficiente e filantrópica provém, é claro, de fundos privados (o que se aplica tanto ao fundo privado empresarial, quanto pessoal). (iii) As organizações não-governamentais atuantes no País nos últimos 20 anos, até recentemente de costas para o Estado, envolvidas em tarefas de educação popular, cujas dotações provinham em parte substancial, de fundações internacionais, laicas e religiosas, não-governamentais. Esta separação é arbitrária: as linhas divisórias entre estes três sujeitos podem também ser traços de união: aquelas e estes são ditados pelas conjunturas históricas. Qualquer período histórico tem suas organizações não-governamentais, não sendo uma característica específica da atual reconstrução da sociedade civil. Estas organizações se mostram em geral, particularmente aptas a entrarem em tensão (conflito/cooperação) com os padrões dominantes de arregimentação de apoios nos sistemas oficiais (empresas/estado/partidos). Além disto, estes três agentes ou atores sociais possuem em comum o fato de atuarem em projetos comunitários, humanitários, filantrópicos, de defesa dos direitos humanos e sociais, articulados ou não a políticas públicas sociais (governamentais). A Tabela I a seguir identifica o número de associações sem fins lucrativos no Brasil, discriminando a participação de dois estados onde a sociedade civil encontrase mais diversificada e atuante (São Paulo e Rio de Janeiro):

)4( TABELA I -NÚMERO DE ASSOCIAÇÕES, FUNDAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS INCLUINDO SINDICATOS - (BRASIL, ESTADOS DE SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO) - 1991 Classe de Associação BRASIL SP RJ % total FUNDAÇÕES (Beneficiantes, 11.076 2.125 1.003 5, assistenciais, culturais, científicas e educacionais) ENTIDADES RELIGIOSAS (Igrejas) 29.473 8.818 4.849 13,4 ASSOCIAÇÕES (Assistenciais e 169.260 41.688 14.444 77, beneficiantes, cult./científicas/educac.; desesportivas, de empregados, de empregadores, profissionais autônomos e liberais) SINDICATOS (Empregados e 7.674 1.321 578 3,7 empregadores; autônomos e liberais) FEDERAÇÕES (Religiosas, 1.451 253 188 0,6 culturais/científ./educacionais; desportivas, empregadores e de empregados, profissionais autônomos e liberais, outras) CONFEDERAÇÕES (campos similares 425 61 101 0,3 aos das federações) TOTAL 219.559 54.266 [25%] 21.163 [10%] 100, Fonte primária: Receita Federal. Ministério da Fazenda. março de 1991. Apud: LANDIM, Leilah (1993 a ) Para Além do Mercado e do Estado? Filantropia e Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro. Núcleo de Pesquisa. Instituto de Estudos da Religião. Série Textos de Pesquisa. junho 1993. (Dados condensados para o presente artigo). IV Ato O campo de interlocução das ONGs Os campos de interesses acima descritos integram o perfil herdado de fases históricas no Brasil. A partir dos anos 70/80, o espectro das milhares de organizações sem fins lucrativos tornou-se ainda mais complexo. Ele foi marcado no período autoritário por duas clivagens intervenientes. A primeira deu-se com a formação dos chamados movimentos sociais que se constituem no país em torno de demandas e reivindicações por políticas sociais ou de consumo coletivo (água, esgoto, moradia, saúde, educação) face ao Estado. A segunda clivagem foi estruturada pelas

)5( organizações civis que emergem com o perfil de organizações não-governamentais. As ONGs se subdividiram, inicialmente, entre dois campos: as de desenvolvimento social, cidadania, defesa dos direitos humanos, e as ambientalistas ocupadas com questões relacionadas com a degradação/preservação ambiental e ecológica no meio urbano e rural. (Mais recentemente nos anos 90, a pauta de atuação destas últimas vem se integrando às anteriores). Na sua origem, a ação pública das ONGs ganhou visibilidade e transparência ao dar apoio aos movimentos e associações comunitárias sob as mais diversas áreas de ação (defesa dos direitos humanos, direitos sociais, superação da desigualdade social; formação/educação de agentes de transformação social e prestação de serviços a comunidade, ambientalismo). Neste período, elas ampliaram sua credibilidade junto a agências internacionais nãogovernamentais e governamentais de fomento a este tipo de atividade. Nos anos 70 e 80, podemos afirmar que foi justamente este segmento o que mais avançou na profissionalização de seus dirigentes, na medida em que passaram a operar - diferentemente do universo das 219,5 mil entidades tradicionais, com base na metodologia de trabalho definida em torno de projetos desenvolvidos junto a movimentos e associações civis. À margem das relações com o Estado brasileiro, suas relações com os orgãos oficiais ficaram restritas ao mínimo, ou nem existiram, para a grande maioria. Os recursos que captaram, segundo pesquisa realizada em 1991 entre 102 ONGs brasileiras, ainda que modestos, provêm em sua maioria de fontes nãogovernamentais, religiosas e organismos multilaterais, em sua maioria de cooperação internacional, conforme resumido na Tabela II, a seguir. Tabela II - Peso de cada tipo de agente financiador na composição da receita das ONGs filiadas a Associação Brasileira de ONGs - 1991 (%) * Agências Grande Médio Pequeno Não recebe Não-governamentais 54,00 11,00 7,00 11,00 Ecumênicas/evangélicas 25,00 22,00 21,00 52,00 Católicas 23,00 14,00 15,00 21,00 Fundações Privadas 9,00 10,00 19,00 23,00 Multilaterais 3,00 8,00 11,00 35,00 desta fonte Governamentais 3,00 15,00 14,00 33,00 Fonte: ONGs Anos 90 - A opinião dos dirigentes brasileiros. (Pesquisa ISER, 1990; Fernandes & Carneiro, 1991: 12). (Dados percentuais arreendondados a partir do original). * Foram admitidas respostas múltiplas. As dotações recebidas - para 78% das ONGs - situavam-se na faixa de valores inferiores a 500 mil dólares. Na avaliação dos autores da pesquisa, estes números revelam que os financiamentos representam bem pouco, já que ali estavam quase todas as ONGs mais significativas do país. É nada se compararmos com os valores que correm a nível do Estado ou das empresas privadas. (...) Tantas agências e tantos países, tanta retórica e tanto voluntariado, tanto projeto e tanto relatório, para investir em todo o país pouco mais do que vinte e oito milhões? Por outro lado, o

)6 argumento no sentido inverso também tem seu peso: o dinheiro é pouco mas como rende! Dez mil no bolso do executivo voam no percurso de uma viagem. Os mesmos dez aplicados num micro por um ano inteiro. A experiência destas entidades, como se pode depreender, só pode ser qualificada quando vistas em relação a outros atores significativos, em torno disto que vimos chamando reconstrução da públicas e privadas - é multifacetado e flexível, apontando para dois tipos de interações bem quadro-sínteses abaixo, permitem uma qualificação dessas trocas: QUADRO A ONGs brasileiras em relações a parcerias e interações. 1990 Movimentos Sociais das funções sociais pelos dirigentes das movimentos sociais (77% dentre 102 entidades) e ajudar a construção da se desloca para o campo mais amplo da sociedade civil quando se trata das ONGs brasileiras. Entretanto, a distinção entre os dois ONGs (ib. 1991:20). A marcada temas-chaves: ecologia (47%) democratização (43%) diversidade cultural (20%). 69% dos dirigentes apontam o trabalho das diferentes correntes religiosas euquanto 7% relação que as apontaram colaboração eventual em espaços atividades de reflexão social, e 27,50% admitiram articulação entre igrejas e Partidos de esquerda ONGs admitem valor positivo para a atuação deste político-partidário. 13% avaliam como sem importância, ao passo que ONGs. 3 FERNANDES, Rubem César & PIQUET, Leandro Carneiro (1991) "ONGs. Anos 90- A opinião dos dirigentes brasileiros" Rio de Janeiro. (Pesquisa) ISER. 1991..

)7( Grupos marginais Os grupos marginais constituem - dentre os atores com os quais as ONGs têm interações fortes - os sujeitos sociais privilegiados: indagados sobre a agenda de trabalho com estes grupos, 92% apontam o trabalho de educação prioritário no sentido de uma formação que possibilite a passagem da marginalidade para a cidadania. Complementar a isto, 70% colocaram na agenda a questão do trabalho, atividades produtivas e economicamente rentáveis. Outras direções também comparecem nesta agenda: 34% apontaram o resgate da religiosidade popular, enquanto 50% mencionam a necessidade de uma afirmação positiva de valores da marginalidade (Pesquisa ISER As ONGs entre si Organizações sem fins lucrativos, privadas e não-governamentais, as ONGs operam de forma individual (com projetos, orçamento e agendas de trabalho) até certo ponto competitivas entre si, na medida em que buscam a especialização em campos de trabalho distintos. Porém, a pesquisa ISER (1990) aponta que os campos de colaboração mútua são expressivos: 56% dos dirigentes entrevistados exercem atividades em outra ONG, além da sua. Em geral esta presença se faz pelas redes de ONGs com agendas comuns, porém específicas, de trabalho. A partir de 1992, como resultado de inúmeros encontros preparatórios, foi fundada a Associação Brasileira de ONGs (ABONG). Neste sentido, 66% dos dirigentes mostraram-se favoráveis a uma regulamentação específica do estatuto legal das ONGs no Brasil. No tocante às interações fracas ou medianas, o quadro a seguir resume os principais atores envolvidos: QUADRO B Experiências das ONGs brasileiras em relações a parcerias e interações. 1990 = Interações fracas = Empresas Baixa ou nula interação com o setor empresarial no país até início dos anos 90. A sondagem identificou, porém, que as tendências de cooperação para a década de 90 apontavam aumento (para 23,5% dos dirigentes) do papel das fundações privadas no Brasil. Na cooperação internacional, as fundações privadas são relevantes para 23,5% das ONGs. Fundações privadas e públicas aparecem como prioridade 1 e 2 para captação de recursos entre 17,6% e 21,6% respectivamente dos dirigentes. Estado Não tiveram relações no passado, já que nasceram e cresceram de costas para os governos até meados dos anos 80. Foi baixa (3%) a entrada de recursos governamentais na composição da receita destas entidades em 1990. Entretanto, 43% dos dirigentes afirmaram que estabeleceram colaboração com diferentes níveis de governo. Indagados sobre captação de recursos junto a fontes governamentais, 14% admitiram que isto deverá ser fomentado no futuro.

) ( Universidades modalidades - todas com indicadores de baixa e média frequência: a) realização por intermédio de seminários (21,60%) e participação em convênios (17%). Na avaliação dos autores são das imagens correntes (Ib. 1991:11) Final Em conclusão: não basta saber que há ONGs segundo diversos assuntos ou temas substantivos. Também é insuficiente assimilar à uma infra-estrutura poliárquica, tudo o que se relaciona ao campo do sem fins lucrativos, e não-governamentais a partir dos registros formais de seus estatutos em cartórios, pois em ambos os casos perdemos de vista como se movem estes agentes. Ao se moverem, qual o grau de transparência de suas ações face a outros agentes? 4 Qual a dinâmica de ação destes agentes no tocante a operaram a partir desta transparência? Sabemos que, em geral, a possibilidade desta transparência se define em torno de motivos particulares e interesses de grupos. Quando esses interesses extrapolam os fins lucrativos, os governamentais, gera-se um campo de sociabilidade política cujo caráter público expressa um potencial espaço público. Um autêntico espaço público, contudo, não é automaticamente assegurado senão com base em alguns pre-requisitos. Dentre eles, o de constituir a vontade de um grupo em fundar algo novo, um ato político fundador cuja transparência é assumida como condição prévia de sucesso dos interesses envolvidos. Desta forma não é por ser coletivo que se define exclusivamente o espaço público. Tal ação é pública, de forma complementar e necessária, pela qualidade da ação política do grupo, e dos interesses envolvidos. 5 Dessa forma, a constituição de tais espaços públicos no Brasil é inseparável da idéia de (re)construção da sociedade civil, entendida esta como a expressão historicizada de particulares e esferas privadas que superam o isolamento (ou a burrice do demônio ) e se articulam em torno de esferas públicas de interesse. 4 "Transparência" entendida como a qualidade que orienta aos atores na busca de uma das condições básicas do entendimento com outros agentes, que é ser visível quanto aos seus fins e propósitos, e comparecer em público para assumir isto como compromisso. 5. Acerca da noção de espaço público vide Hannah Arendt, "A Condição Humana" Rio de Janeiro, Forense- Universitária, 1972.