ÀS MARGENS DA CIDADE: EXPERIÊNCIAS E COTIDIANO NAS PERIFERIAS DE CHAPECÓ (SC)



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Transcrição:

ÀS MARGENS DA CIDADE: EXPERIÊNCIAS E COTIDIANO NAS PERIFERIAS DE CHAPECÓ (SC) Camila Sissa Antunes Professora, mestre em Antropologia Social (UFSC) Doutoranda em Antropologia Social (UFSC) Bolsista do CNPq camilasissa@unochapeco.edu.br Resumo: Considerada uma cidade média, Chapecó é pólo econômico de uma região com aproximadamente um milhão de habitantes, é a Capital do Oeste Catarinense. Atualmente a cidade apresenta evidentes desigualdades sociais e espaciais. Nos bairros centrais se localizam os grupos de alta renda, ao mesmo tempo em que ocorre a expansão das periferias, onde há concentração de pobreza e ausência de investimentos públicos. A proposta do trabalho é refletir sobre este processo a partir dos atores que habitam a periferia, suas experiências e percepções com relação ao espaço em que vivem e com relação à cidade, como experienciam os espaços públicos e de habitação, através da realização de uma etnografia multi-situada. Nesta perspectiva, possibilita rever criticamente categorias clássicas, como a dicotomia centro-periferia, e pensar, a partir de um estudo de caso, os processos de periferização nas cidades médias brasileiras e suas peculiaridades. Palavras-chave: Antropologia Urbana. Cidade. Periferia. Pobreza. Chapecó. 1. Introdução Esta proposta de pesquisa 1 se insere no contexto do processo de periferização do município de Chapecó, por meio do qual se identificam locais caracterizados como destino de moradia da população urbana mais pobre. Basear-se-á na etnografia de lugares da cidade consolidados como regiões subalternas (devido às condições de vida de seus moradores, bem como estigmas sociais que acompanham estes locais). De um modo geral, nas bordas da cidade podemos encontrar várias localidades que apresentam indicadores sociais e econômicos tais como: alto índice de desemprego ou subemprego, baixa renda familiar, adensamento populacional, ocupação em áreas irregulares, infraestrutura urbana precária, entre outros aspectos. Uma das tarefas desta pesquisa é mapear estas localidades em Chapecó, que neste trabalho denomino como periferias 2, realizando um levantamento detalhado, em termos históricos, espaciais e principalmente sociais, caracterizando os lugares a partir das concepções e experiências de seus moradores. Chapecó é considerada uma cidade de porte médio 3, está localizada há 642 quilômetros da capital, na região Oeste do Estado de Santa Catarina. É o principal centro econômico da região que concentra aproximadamente um milhão de habitantes, sendo reconhecida como a capital do oeste. Em Chapecó se encontram as sedes das principais empresas processadoras e exportadoras de suínos, aves e derivados do Brasil. A região oeste de Santa Catarina caracteriza-se por sua vocação agrícola, assentada principalmente

na lógica da agricultura familiar. Outra característica marcante da região é a presença do maior complexo agroindustrial na área de alimentos do sul do país. Segundo o Relatório Municipal (2009) na última pesquisa do Sistema FIRJAN (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro), que mostra o índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM) referente ao ano de 2005, e apresenta dados das três principais áreas de desenvolvimento humano: emprego e renda, educação e saúde, Chapecó está acima da média estadual e nacional. Ocupando a 15ª colocação entre os 293 municípios catarinenses, com um índice de 0,8160. Contudo, o desenvolvimento presente na região não atingiu a todos da mesma maneira, nem garantiu qualidade de vida e renda suficiente a todas as famílias residentes na cidade. Apesar do crescimento econômico, exaltado pelos agentes da cidade, atualmente esta apresenta evidentes desigualdades sociais e espaciais. Nos bairros centrais se localizam os grupos de alta renda, ao mesmo tempo em que ocorre a expansão das periferias, onde há concentração de pobreza e ineficiência de investimentos públicos. Além disso, nas áreas centrais, percebe-se a contínua presença de processos de revitalização dos espaços urbanos, e especulação imobiliária, que em maior ou menor grau, terminam afastando as pessoas de baixa renda para loteamentos distantes do centro da cidade, constituindo, em alguns casos, o que se denominam ocupações irregulares. Até os dias atuais, os agentes públicos da cidade que recebe o título de cidade das rosas, poda e oculta seus espinhos, fazendo com que não apareçam os pobres da cidade. A cidade foi projetada seguindo o modelo das cidades modernas do mundo ocidental, foi concebida para ser higiênica, organizada, bonita e progressista. Desde o início da urbanização de Chapecó, as ruas de um modo geral foram organizadas de forma espaçosa, pensando no migrante e excluindo os moradores locais (indígenas Kaingangs e Guaranis e caboclos): um traçado que induzia no migrante que chegava a ideia de progresso, imbuída de um significado de uma terra de gente de trabalho e enriquecimento, conforme queriam as forças políticas e econômicas do lugar (ALBA, 2002, p. 135). A cidade foi sendo historicamente construída com base no crescimento agroindustrial, e ficou marcada por uma intensificação das desigualdades sociais quando, desde sua origem, volta-se para a satisfação das necessidades das elites, deixando os pobres, indígenas e caboclos à parte do seu progresso e desenvolvimento (ALBA, 2002). Segundo Delgado (1999, 2007) a cidade não seria consequência de um processo de planejamento imposto a uma população passiva que se molda tanto aos administradores e planejadores. Para além de planos e maquetes, a urbanidade é, sobretudo, a sociedade que os cidadãos produzem e as maneiras com que essa forma urbana é consumida pelos seus usuários: Se proclama que existe uma forma urbana, resultado do planejamento 2

politicamente determinado, mas em realidade se suspeita que o urbano, em si, não tem forma (DELGADO, 1999, p. 181 grifos do autor). Em outras palavras, somente a existência de um plano urbanístico não significa que este será seguido, pois muitas vezes são os próprios usuários da cidade os que criam seus próprios caminhos, atalhos e/ou desvios, reconfigurando de fato a dita forma urbana. Também, muitas áreas da cidade crescem autonomamente, sem passar pelas políticas públicas: é o caso, muitas vezes, das periferias, cuja ação estatal normalmente acontece após a ocupação do espaço. Ou, no caso das políticas habitacionais populares, nos quais há uma (re)invenção do espaço por parte de seus moradores (CASTELLS, 1987). Retomando Delgado e focando a cidade de Chapecó, observamos que o plano urbanístico idealizado e executado contemplou o sistema viário de circulação, a localização dos bairros, praças, canteiros, prédios religiosos e institucionais etc., em síntese, concebeu formas locais de sociabilidade, porém os chapecoenses foram também criando novas formas de uso, novas práticas e territorializações desse mesmo espaço que não foram e nem poderiam ser previstas nos planos e no traçado da cidade. Neste sentido parecem pertinentes as colocações de Abramo (2008), para quem a produção das cidades está ocorrendo de forma difusa e compacta. Nas áreas centrais o processo de adensamento e, nas periferias, a expansão de loteamentos tornam-se simultâneos e giram em torno do mercado formal e informal das terras. Em suas pesquisas, este autor conclui que no mercado informal a lógica da necessidade dita o rumo do acesso à moradia, há os submercados de loteamentos e o de assentamentos consolidados. Nos loteamentos ocorre a produção de uma cidade dispersa, surgindo da periferia a partir da divisão de uma gleba de terras, mais afastada possível do centro e, logicamente, mais barata. Este processo se visualiza claramente na cidade de Chapecó, cujos índices de pobreza informam sobre uma realidade preocupante, com a formação de comunidades com altos índices de violência e cuja realidade não vem sendo suficientemente estudada, podendo-se dizer que há um processo de ocultamento da pobreza da cidade. A este respeito, a historiadora Juçara Wollf (2008) relata que a partir da década de 70 com a implementação do II Plano Nacional de Desenvolvimento do Brasil, Chapecó passou a utilizar um urbanismo cujos princípios modernos de circulação, higiene e estética, promoveram uma redefinição do traçado da cidade, das socialidades e valores da população, por meio do Projeto Chapecoense de Desenvolvimento se promoveram ações de organização e reordenamento do espaço da cidade: (...) os contrastes entre o feio e o belo, o sujo e o limpo, o pobre e o rico, vão dar o tom entre a ordem e a desordem, a confusão e a funcionalidade. Caberá ao poder público intervir nesta lógica, que revela a diversidade e o progresso de um lado, e a miserabilidade e a destruição da identidade 3

social do outro; sobretudo porque Chapecó, considerada a cidade do povo ordeiro e trabalhador, vê-se ameaçada pelo êxodo rural e pela falta de trabalho, que fluía em face da consolidação da mecanização da agricultura e do processo industrial (WOLLF, 2008, p. 173). Este elevado fluxo migratório 4 acarreta em um intenso processo de desordenação na ocupação do solo urbano, especialmente com a ocupação de áreas irregulares. Este excedente causava preocupação à ordem pública e aos setores da sociedade que visavam converter a visão de cidade de forasteiros para a cidade das rosas, moderna, limpa e civilizada (Wollf, 2008). A autora ainda destaca, a partir de alguns discursos locais retirados de jornais da época, diante do aumento da multidão eram necessárias medidas de controle dessa população através de instituições. Entre as ações está a construção da Penitenciária Agrícola e a criação do Bairro São Pedro, oriundo da remoção de famílias que ocupavam a região central da cidade 5. De fato, verifica-se que desde sua origem foram criadas medidas de exclusão social na cidade que excluem os mais pobres de seu cenário. O projeto colonizador da região, por exemplo, tratava os índios e caboclos como intrusos. Para estes, expropriados de suas terras, o trabalho assalariado nas madeireiras (e mais tarde nos frigoríficos) passou a ser a alternativa. Essas pessoas passaram a se estabelecer no perímetro urbano, formando cinturões de barracos, ou bolsões de pobreza como denominados por alguns estudiosos. Na época, a alternativa encontrada pela Empresa Bertaso, apoiada pelas elites econômicas e políticas, foi a criação de um loteamento popular para os expropriados da cidade. Com a criação deste loteamento onde atualmente está localizado o bairro São Pedro consolidase uma reorganização do espaço urbano, quando através da distribuição e ocupação do espaço impõe-se uma política de inclusão e exclusão social (HASS et al, 2008, p. 212). Deste modo, a vila criada no final da década de 60, resultado da limpeza urbana permanece sendo, nos dias atuais, uma das regiões mais desprovidas de infraestrutura urbana e com presença significativa de moradias precárias (região que será um dos locais em que será realizada a pesquisa de campo). Uma das áreas foco de análise localiza-se na região leste da cidade, mais especificamente, trata-se da região de influência dos bairros São Pedro e Bom Pastor. Nesta região grande boa parte da população está ligada à reciclagem de resíduos sólidos e há várias ocupações de vazios urbanos. Como citado anteriormente, a ocupação inicial desta região foi fruto de políticas públicas de destinação dos mais pobres da cidade, surgindo como tentativa de atender às demandas por moradia. Assim, teve seu crescimento marcado pela desigualdade de tratamento e desvalorização urbana, sendo vista como área delimitada para fins habitacionais de uma população de baixo poder aquisitivo, nasce, 4

portanto, como o espaço da diferença. Com o passar do tempo, desencadeou-se um processo de segregação e marginalização do espaço e das pessoas que ali passaram a habitar. O bairro São Pedro ficara cunhado como o espaço dos excluídos (VIEIRA, 2005). Atualmente, a ocupação das imediações do bairro continua sendo consolidada em virtude da realocação de famílias vindas de outras áreas entre elas os moradores do antigo lixão da cidade, criação de programas sociais como o assentamento Vila Betinho e também pelo valor acessível dos lotes nos bairros. Desta maneira, a região caracteriza-se por complexas relações sociais de exclusão, perceptíveis tanto material quanto simbolicamente (VIEIRA, 2005). Este processo de exclusão social será analisado em pormenores durante a pesquisa de doutorado que buscará compreender o processo de periferização na cidade de Chapecó no intuito de identificar seus aspectos históricos e sociais, a partir das narrativas dos atores envolvidos. Este processo aconteceu de diversos modos, no caso da região do Distrito Marechal Bormann, região afastada do centro onde se concentram famílias muito pobres que tem como opção o trabalho nos latifúndios da região; ou o caso do Bairro Efapi, maior da cidade em extensão e população, situa-se na zona oeste e concentra grande número de loteamentos populares, áreas de área com ocupação irregular. Além disso, o bairro é sede de agroindústrias, e principalmente por este motivo foi local de destino de muito imigrantes que vieram (e vem) em busca de trabalho nos frigoríficos 6. A proposta da pesquisa é refletir sobre este processo de constituição de bairros, loteamentos e vilas periféricos a partir dos atores que os habitam, suas experiências, usos e percepções com relação ao espaço em que vivem e com relação à cidade. A proposta é realizar uma etnografia atenta às trajetórias das famílias, procurando identificar caminhos percorridos, estratégias de vida, alianças e redes criadas, procurando compreender como os sujeitos experienciam e (re)significam os espaços públicos da cidade e os espaços de suas residências. Nesta perspectiva, o trabalho possibilita rever criticamente categorias clássicas da antropologia urbana, como as dicotomias público-privado e centro-periferia, e pensar, a partir de um estudo de caso, e os processos de periferização nas cidades médias e suas peculiaridades. Conforme apresentado, historicamente têm-se, por um lado, a preocupação das autoridades em dar visibilidade à Chapecó como um centro de desenvolvimento político e econômico do Oeste Catarinense, implementam-se políticas públicas que visam disciplinar a sociedade, limpar a cidade, acabar com os cortiços e esconder os intrusos. Tratados como espinhos indesejados na cidade das rosas, os pobres foram colocados no Bairro São Pedro, na Linha Baronesa da Limeira, e muitos outros se dispersaram por outras partes 5

periféricas da cidade, distantes dos olhos daqueles que desejavam (e desejam) uma cidade desenvolvida. Durante a realização da etnografia, esses locais na cidade serão mapeados, realizando um resgate histórico de sua constituição, mas principalmente analisando seus processos e experiências cotidianas. Embora ainda incipiente, a pesquisa por ora apresentada, demonstra sua importância por se tratar de um processo histórico de exclusão social na cidade de Chapecó, cujas narrativas constituidoras foram silenciadas pela voz do progresso e permanecem até hoje às margens da cidade. Apresento em seguida conceitos, teorias e pressupostos teóricos que poderão auxiliar na elaboração desta pesquisa. 2. Materiais e métodos: discutindo conceitos e apresentando a metodologia Chapecó pode ser considerada uma cidade média 7 cujo interesse acadêmico vem crescendo nos últimos anos, mas desde a década de 1970 essas cidades têm desempenhado um papel importante na dinâmica espacial e econômica do país. Aponta-se que o crescimento populacional e econômico destes centros urbanos vem sendo superior àqueles apresentados pelas regiões metropolitanas 8, resultado de um processo de desconcentração espacial das atividades econômicas e da população (Andrade e Serra, 2001). Estudiosos de várias áreas vêm buscando analisar a especificidade dos fenômenos de crescimento, dinâmicas de urbanização e desenvolvimento das cidades médias, que vem ganhando importância na trajetória recente da urbanização brasileira. Em grande parte estes estudos visam analisar o papel da economia (negócios fundiários e imobiliários) nas dinâmicas de produção do espaço urbano. Apesar disso, não há uma ideia consensual sobre as cidades médias, sendo que tendo em vista sua simplicidade e comodidade, o critério de classificação baseado no tamanho populacional tem sido o mais utilizado para identificá-las, no entanto, o critério demográfico é insuficiente. Segundo Filho e Serra (2001) outras características deveriam ser também levadas em consideração na definição dessas cidades, não podendo ser desprezado o fato de que alguns aspectos, como tamanho demográfico, relações externas, estrutura interna e problemas sociais das cidades médias, podem variar bastante de região para região. A antropologia, juntamente com outras ciências humanas, tem se dedicado especialmente a partir das décadas de 1970 e 1980 ao estudo das periferias urbanas e processos de desigualdades sociais e espaciais na metrópole. Deste contexto destacam-se as pesquisas antropológicas, que diferentemente dos estudos que enfocavam sobre processos estruturais e econômicos, dedicavam-se às análises micro sociais, considerando 6

em primeiro plano os atores, modos de vida, cotidiano, formas de lazer, mobilizações coletivas, entre outros 9. Atualmente, se coloca a necessidade de revisão crítica das categorias analíticas forjadas nos últimos trinta anos sobre a produção do espaço urbano, bem como o padrão socioespacial centro-periferia dele resultante. Tomando como parâmetro de análise esta dicotomia, pressupunha-se certa homogeneidade com relação às condições geográficas e de vida nas periferias, em oposição às regiões centrais que teriam satisfatórios equipamentos urbanos e melhores condições de vida (MARQUES e BICHIR, 2001; FRÚGOLI JR., 2005). A este respeito Magnani (2006), ao analisar o caso da região metropolitana paulista, afirma que naquele contexto a oposição espacial centro-periferia possuía relevância social e acadêmica, pois, historicamente, houve certa continuidade entre segregação espacial e de direitos, fazendo com que morar e ser da periferia significasse ao mesmo tempo ausência do Estado e de equipamentos urbanos. Deste modo, o termo periferia se constitui em oposição ao centro, e apesar do contexto atual de sucessivas centralidades persistiu uma ideia do espaço periférico como seu contrário (MAGNANI, 2006). O interesse pela moradia dos pobres na cidade ganha maior visibilidade a partir dos anos 1960, principalmente com o desenvolvimento do interesse pelas favelas cariocas e pelas periferias que surgiam nas regiões metropolitanas, especialmente São Paulo (VALLADARES, 1983; TORRES et al., 2003). As primeiras abordagens de cunho acadêmico das favelas cariocas se fizeram no contexto do debate sobre a articulação entre a teoria da marginalidade social e a ideia de uma cultura da pobreza, a partir da qual esses espaços foram interpretados como a mais típica manifestação da não-integração de amplos segmentos da sociedade urbana (VEKEMANS e VENEGAS, 1966 apud VALLADARES, 2005, p.128). Segundo Torres et al (2003) os primeiros estudos acadêmicos sobre as periferias paulistanas representariam uma superação desse referencial, promovendo reflexões sobre a relação entre Estado, habitação e condições de reprodução da força de trabalho e encarando as periferias como espaços urbanos que, ocupados por trabalhadores pobres, seriam socialmente homogêneos, esquecidos pelas políticas estatais e localizados tipicamente nas extremidades da área metropolitana (p. 98). Estes estudos sociais terminam por consolidar os termos favela e periferia como categorias de análise para pensar a pobreza urbana. Ambos os conceitos trariam, em sua origem, uma abordagem dualista da cidade, manifesta inicialmente nas oposições cidade/favela e centro/periferia - dualidades estas perpassadas, em grande medida, pela questão das ilegalidades e irregularidades 7

urbanas que acompanhariam a inserção das camadas pobres da população no espaço urbano (VALLADARES, 2005; ZALUAR e ALVITO, 2003; TORRES et al, 2003). Durante as décadas de 1970 e 1980 foram desenvolvidos muitos estudos sobre os espaços periféricos das metrópoles, que os consideravam destino da população operária, inserida precariamente na estrutura de renda e ocupações, cujas casas eram fruto da autoconstrução em terrenos ou loteamentos irregulares, em um contexto de precários serviços públicos e muito tempo despendido em locomoção até o local de trabalho. Este contexto condicionaria a precária condição de vida daquela população. O diagnóstico dessa situação culminou com o desenvolvimento de uma ampla e diversificada literatura que enfocou, desde a construção das identidades sociais dos bairros de baixa renda e suas formas de organização e ação coletiva, até estudos de cunho mais analítico que tentaram determinar as formas características de produção das metrópoles brasileiras e suas periferias 10. Estudos sobre periferia, favelas e pobreza urbana das grandes cidades brasileiras são inúmeros. Procurarei mostrar que estudos desta temática em cidades médias, podem ser tão relevantes quanto aqueles realizados em metrópoles. O discurso midiático, institucional e até mesmo estatístico, vem colocando as cidades não-metropolitanas como locais de grande desenvolvimento, baixos índices de violência e prósperos. Suas qualidades são equacionadas pela negatividade: não há trânsito, não há violência, não há pobreza. No entanto, observando processos internos de segregação urbana, identificam-se também nas cidades médias, sérios problemas sociais e habitacionais. Segundo Vieira (2009) os espaços banais (periferias) nas cidades médias, se concretizam como espaços de produção e reprodução das desigualdades, um espaço desigual e excludente formatado conjuntamente pelo poder público municipal e pelo mercado imobiliário. O primeiro exerce sua força por meio da elaboração de políticas habitacionais e definição da localização dos loteamentos populares e/ou conjuntos habitacionais, geralmente nas periferias pobres da cidade; o segundo se beneficia da valorização de determinadas áreas da cidade promovida pela política habitacional. Deste modo, a separação entre ricos e pobres no espaço da cidade se torna banalizado e naturalizado, se dando por meio do poder de compra. A segregação em seus aspectos geográficos (que podem ser identificados a partir de dados estatísticos, de renda, de situação domiciliar, entre outros aspectos) pode identificar os critérios por meio dos quais os habitantes se distribuem na cidade. A segregação sociológica, no entanto, somente é perceptível a partir de um olhar próximo aos sujeitos, que busque compreender como experienciam sua situação, como são suas interações cotidianas (Simmel, Goffman), quais são suas práticas espaciais, suas 8

classificações e imaginários. Também se torna de fundamental importância compreender as maneiras com que os sujeitos que habitam as periferias, lugares segregados espacial e socialmente das cidades, refletem e vivenciam sua relação com os demais moradores e com a cidade em si, além de seus espaços de convivência cotidiana, seu espaço social (Bourdieu, 2002). O que neste trabalho estou denominando periferia refere-se a vários locais diferentes, cujos processos de surgimento e características são diversificados, mas que, no entanto, compartilham várias situações como: estigma social, deficiente infraestrutura básica, ocupação de áreas irregulares, entre outros. Essas diferentes formas de assentamento urbano tiveram sua ocupação inicial por meio iniciativa de origem estatal ou privada, ou ocupação espontânea, ou ainda, na maioria dos casos, constituída por um mosaico de todas estas situações. Segundo Ferreira et al. (2007), esta multiplicidade, em grande parte, é resultado da falta ou ineficiência de ações públicas habitacionais: (...)as diversas soluções habitacionais precárias das quais a população de baixa renda com frequência lança mão pela baixa oferta de programas públicos e por não dispor dos recursos necessários para acessar soluções via mercado" ( p.2). A situação social generalizada no Brasil, em que pessoas habitam locais inapropriados e com condições de vida precárias é um fato histórico. Segundo Maricato (1997), o fato de a terra ser inacessível às populações mais pobres remonta ao nosso passado mais longínquo, à época da abolição da escravatura, quando a propriedade da terra foi regulamentada pela Lei de Terras. Na região da cidade de Chapecó, os moradores autóctones, indígenas e caboclos, foram expropriados de suas terras, lhes foram retiradas as possibilidade de manutenção do modo de vida tradicional, e o que lhes restou foi ocupar as margens da cidade, onde passaram a morar por falta de opções ou compulsoriamente. São principalmente os descendentes desses sujeitos caboclos e indígenas expropriados das terras e migrantes oriundos do processo de êxodo rural que ocupam as periferias chapecoenses. Os argumentos colocados acima buscam desmistificar a homogeneização da periferia como território da pobreza, enfatizando que é um lugar de heterogeneidade social revelando um contexto de situações distintas de pobreza urbana nas periferias. Além disso, a diversificação de grupos sociais presentes nessas áreas aponta para uma distribuição espacial muito mais complexa de pobres e ricos na cidade, nas últimas décadas: os trabalhos destacam, nesse sentido, tanto a implantação de condomínios de alta renda nas periferias, como a difusão da pobreza urbana por diversos espaços da cidade, para além da sua concentração nas periferias urbanas (Caldeira, 2000). Neste sentido expressa Telles (2006), 9

Descobre-se que a cidade é muito mais heterogênea do que se supunha, que seus espaços são atravessados por enormes diferenciações internas, que pobreza e riqueza se distribuem de formas descontínuas, que os novos empreendimentos imobiliários e equipamentos de consumo alteram as escalas de proximidade e distância entre pobres e ricos, que os investimentos públicos realizados nos últimos anos desenham um espaço que já não corresponde ao continuum centro-periferia enfatizado pelos estudos urbanos dos anos 80 e que, enfim, somando tudo, se as desigualdades e diferenças existem e aumentaram nos últimos anos, elas se cristalizam em um espaço fragmentado que não cabe nas dualidades supostas nos estudos anteriores (Telles, 2006, p.60-61). O desafio colocado para os estudos que se voltam para as periferias urbanas, segundo Frúgoli Jr. (2005) passa pela compreensão das transformações conceituais e contextuais, diante da complexa diversidade urbanística e de fenômenos. Assim, procuro utilizar o termo periferia de modo operacional e relacional, evitando sua equiparação a processos de segregação espacial, social ou econômica. A perspectiva teórica é pensar não somente a produção socioespacial da periferia, como também processos internos que envolvem elaborações estéticas e simbólicas que dizem da representação nativa ou de dentro destes lugares (Frúgoli Jr. 2005), neste aspecto, compartilha-se a ideia de que ser da periferia significa participar de certo ethos que inclui tanto a capacidade para enfrentar as duras condições de vida, quanto pertencer a redes de sociabilidade, a compartilhar certos gostos e valores (Magnani, 2006, p. 39). As trilhas teóricas que serão percorridas pela pesquisa e que foram esboçadas acima, certamente serão imprescindíveis para compreender os processos de construção da periferia, bem como sua transformação em objeto de estudo, em conceito e designações genéricas levando em conta que traz consigo uma visão dicotômica da cidade. Apesar do fenômeno da periferização ser generalizado na sociedade brasileira, e perpassado por processos de segregação social, cada caso singular atribui complexidade e diferentes interpretações ao fenômeno, através de um conjunto de práticas e relações contextuais. Desde modo, considero que estudos de caso, ainda mais em se tratando de um caso não metropolitano, podem terminar questionando algumas generalizações usualmente utilizadas. Por outro lado, conforme Rosa (2009), a perspectiva local e situada não deveria implicar uma autonomização ou tipificação do objeto estudado, deve buscar-se, ao contrário, apreender o processo de produção do espaço em estudo por meio das relações, dos jogos de mediações que simultaneamente atualizam e transcendem o seu caráter local. Considerações: da relevância da pesquisa (ou) assinalando possíveis contribuições A escolha do tema desta pesquisa está intimamente relacionada à necessidade de desenvolvimento de pesquisas antropológicas (e de outras áreas do conhecimento) sobre as 10

questões urbanas, que enfoquem a expansão e adensamento de áreas habitacionais precárias, e o caráter de segregação socioespacial da população pobre em cidades médias. Há ainda uma grande escassez de conceitual nesta temática, e na maioria das vezes há uma homogeneização dos assentamentos urbanos populares, tanto com relação aos tipos de assentamento, quanto da própria população, tendência esta que consideramos ocultar a heterogeneidade desses lugares. Contribuindo, desta forma, para a (re)produção de estereótipos e a interpretação homogeneizante de fenômenos tão complexos e diversos quanto às favelas e periferias urbanas. Este processo de homogeneização de deve muito ao fato de que na maioria das vezes estes estudos são realizados apenas a partir de dados censitários e estatísticos, sendo raras as pesquisas de cunho etnográfico e qualitativo nestes locais. Esta simplificação é, na maioria das vezes, justificada pela carência de informações confiáveis e detalhadas sobre esses assentamentos (Ferreira et al., 2007, p. 3). O município de Chapecó, estatisticamente, apresenta boas taxas de alfabetização (92,9%), frequência escolar (97,1%) e renda per capta (R$ 341,64 / mês), acompanhando a média do Estado de Santa Catarina. Apesar dos índices indicarem boas taxas de alfabetização, frequência escolar e renda per capita em grande parte dos municípios catarinenses, havia em Santa Catarina, com base em dados de2000, o número de famílias sem renda suficiente para garantir sua alimentação era de 159.801 famílias, totalizando 10,7% de famílias do Estado 11. Destaca-se que as regiões localizadas no planalto catarinense e as localizadas no oeste, especialmente as próximas à fronteira com o estado do Paraná, são as que apresentam o maior percentual de pessoas com renda insuficiente. Segundo dados preliminares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acerca da pobreza 12, a cidade de Chapecó ocupa a terceira colocação no ranking (com relação ao número de domicílios com rendimento mensal inferior a R$ 70 por mês). Em Santa Catarina há 102,6 mil pessoas na linha da pobreza extrema, em nível nacional o nosso Estado obteve o menor índice de miséria do país. Em Chapecó, a maior concentração de pessoas na linha da extrema pobreza está na zona urbana, 181 domicílios de um total de 263. A média de rendimentos nominais mensais domiciliares é de R$ 44,22. Ainda não é possível acessar o número de famílias consideradas pobres no município, e outros dados relevantes, no entanto, será de suma importância para esta pesquisa o tratamento destes dados, que apesar de limitados, podem fornecer um importante panorama do município com relação ao tema da pesquisa. Esta pesquisa pode ser considerada como de relevância social, pois em maior ou menor medida, poderá contribuir junto às políticas públicas que visam reduzir o déficit habitacional da cidade, permitindo intervenções e ações mais eficazes, uma vez que a proposta é fornecer um conhecimento de forma detalhada da realidade chapecoense. Rosa 11

(2009) comenta sobre a importância de compreender a produção do espaço nas favelas e periferias para além dos circuitos metropolitanos, possibilitando um distanciamento das designações genéricas sobre as mesmas, quase sempre pautadas por modelos elaborados a partir das metrópoles paulistana e carioca. É necessário tomar cuidado para evitar reforçar estereótipos, que fixam certa homogeneidade entre os diversos espaços de moradia dos pobres na cidade, e certamente, trata-se de um campo heterogêneo cujas classificações, conceituações e terminologias não conseguem dar conta. Procuro utilizar aqui o termo periferia, relativizando seu lugar e seu sentido, utilizando o termo, pelo menos neste primeiro momento, como uma denominação, sendo um dos objetivos da pesquisa refletir sobre esta categoria analítica, refletindo sobre sua pertinência e significados a partir da experiência da pesquisa. O termo periferia conceitualmente não dá conta da complexidade e diversidade de realidades e processos que busca descrever, o que exige, no mínimo, a reflexão sobre seus usos, para que não se perca sua capacidade interpretativa (Rosa, 2009). Deste modo, para compreender estas espacialidades, torna-se imprescindível a compreensão de suas apropriações, importando, neste sentido, os sujeitos envolvidos diretamente nestes espaços, em uma multiplicidade de relações, sob condições e contextos diversos e através de práticas e experiências cotidianas permeadas por conflitos, negociações e invenções. Deste modo, encarar a periferia para além de um conceito, mas como um campo de práticas, estas entendidas conforme Certeau (1994), justaposições entre as dimensões qualitativamente heterogêneas de espaço e tempo. Importa, portanto, perceber a constituição da periferia como processo, como experiência, como tramas em constante transformação. 1 Refere-se ao meu projeto de tese em Antropologia Social (UFSC), o qual ainda passará por processo de qualificação. 2 Como será problematizado a seguir, utilizo este termo sob tensão, sendo inclusive um dos objetivos da pesquisa refletir sobre sua pertinência analítica. Por ora, não querendo generalizar e homogeneizar o fenômeno na cidade, utilizo o conceito no plural como estratégia para enfatizar a pluralidade e complexidade das experiências que busca descrever. 3 Segundo dados preliminares divulgados pelo IBGE do Censo Demográfico 2010, a população total de Chapecó é de 182.809, sendo que 91,61% desta população se concentram na área urbana. 4 As indústrias atraíam grande número de pessoas oriundas do campo, de cidades da região e também do Rio Grande do Sul e Paraná. Essas pessoas se deslocavam a Chapecó em busca de melhores condições de vida, de trabalho, e muitos outros trabalhadores frustrados com a falta de políticas do governo federal para a agricultura familiar começam a desistir do trabalho no campo, migrando para a cidade; já a imprensa local em conjunto com o poder público criou uma imagem de cidade que encontra-se em pleno desenvolvimento (Wollf, 2008, p. 183) 12

5 Esta ocupação originou-se a partir da implantação do Projeto CURA (Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada) desenvolvido pelo BNH (Banco Nacional de Habitação), que culminou com o despejo dos intrusos que se encontravam no centro econômico da cidade (Wollf, 2008, p. 180). 6 O bairro Efapi será foco da pesquisa de campo por ser uma região que congrega várias áreas irregulares e loteamentos populares. Um destes é o loteamento Vila Esperança, cuja característica importante é que se trata de um loteamento popular com posterior ocupação irregular em área pública. Os moradores iniciais adquiriram os terrenos por meio de financiamento, do qual pagam o valor de vinte ou quarenta reais. Segundo dados do PAD (Programa Emergencial de Auxílio ao Desemprego) que fornece cestas básicas mensalmente aos moradores, cerca de 70% da população trabalha no serviço informal (principalmente na coleta de materiais recicláveis) e a ocupação de área irregular corresponde a 11% da localidade. Estas ocupações constituem, para os órgãos responsáveis, um sério problema do Loteamento, porque o local possui um lençol freático muito superficial, e devido à ineficiência sanitária, há contaminação das águas que são utilizadas para uso doméstico, acarretando sérios problemas de saúde (a água da CASAN é racionada das 07h00min até as 19h00min). 7 Neste trabalho, considera-se cidade média aqueles núcleos urbanos (não-metropolitanos e não-capitais estaduais) com população entre 100 mil e 500 mil habitantes. 8 Dados de uma pesquisa realizada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que as cidades médias brasileiras tiveram maior crescimento populacional, entre 2000 e 2007, e também maior aumento do PIB (Produto Interno Bruto), entre 2002 e 2005, que as demais cidades brasileiras. A pesquisa também aponta que houve entre essas cidades uma maior dinamismo econômico principalmente do setor industrial (crescimento de 2,23% ao ano), seguido pelo setor de serviços (1,25%). Devido a este crescimento das atividades urbanas, registrou-se uma menor participação das atividades relacionadas ao setor agropecuário (-2,06% ao ano). 9 Ver Caldeira (1984), Cardoso (1986) e Durham, (1986). 10 Parte desta publicação está em Kowarick (1979), Jacobi (1989), Santos e Bronstein (1978), Santos (1980) e Brasileiro (1976). 11 No Diagnóstico da Exclusão Social em Santa Catarina: Mapa da Fome, elaborado pelo Instituto Cepa em 2003, são consideradas pessoas e famílias com renda insuficiente para garantir a sua própria alimentação, todas aquelas que têm renda per capita menor ou igual a R$ 90,00 por mês. Estas são caracterizadas pertencentes à situação de indigência. As pessoas e famílias consideradas pobres são aquelas com renda per capita menor ou igual a R$ 180,00 mês, pertencentes a situação de pobreza. Neste documento a população com renda insuficiente no município de Chapecó em 2000 era de 4.885 famílias. 12 A divulgação destes dados possibilitou a divulgação do Perfil da Extrema Pobreza no Brasil com base nos dados preliminares do universo do Censo 2010, realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social, no qual afirma-se que estas informações são de grande importância no processo de formulação do Plano Brasil sem Miséria, sobre a responsabilidade do MDS em conjunto com outros Ministérios. Com lançamento previsto para breve, o Plano conta com três eixos coordenadores das ações: transferência de renda; acesso a serviços públicos e inclusão produtiva. A linha de extrema pobreza foi estabelecida em R$ 70,00 per capita considerando o rendimento nominal mensal domiciliar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBA, Rosa Salete. Espaço Urbano: os agentes da produção em Chapecó. Chapecó: Argos, 2002. 13

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