A clínica da toxicomania: uma intoxicação transferencial. Amanda Teixeira Rizzo



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Transcrição:

A clínica da toxicomania: uma intoxicação transferencial. Amanda Teixeira Rizzo Desde um recorte clínico grupal a pacientes internados em uma instituição hospitalar psiquiátrica para tratamento de dependência de drogas e álcool pretendemos compartilhar a vivência clínica a partir do lugar do clínico e suas repercussões no contato com a toxicomania. Antes de iniciarmos a discussão referente a relação transferencial nesta clínica se faz necessário discorrer o que pensamos sobre a mesma e a relação desses sujeitos e seus objetos intoxicantes. A toxicomania pode ser confundida ou até mesmo ser tratada como uma estrutura clínica específica e separada de outras organizações psíquicas propostas pela psicanálise. Porém, é importante ressaltar que esse tipo de manifestação clínica está inserida em todas as organizações psíquicas de diferentes formas e intensidades. Com frequência observamos as demandas de intervenção específica para sua possível cura, na qual o que deve ser tratado é o objeto droga e os meios de afastar o indivíduo de seus efeitos destrutivos. No entanto, a partir desse ponto de vista, deixamos de levar em conta a singularidade do corpo do qual estamos falando. Gurfinkel nos chama atenção para as diferentes formas de uso das substâncias lícitas e ilícitas e a intensidade de seus consumos. Assim, um primeiro passo para nos aproximarmosnos da questão da toxicomania é ter em conta esta diversidade de usos de drogas, tanto no plano histórico quanto no cotidiano de nossa sociedade. 1 Nesse sentido podemos citar o popularmente conhecido uso social, uso ligado às situações de crise (morte de um parente, perda do emprego, etc.), durante a adolescência como fase da iniciação e de curiosidade, entre outros. Até mesmo o uso frequente realizado por alguns sujeitos que conseguem manter certa relação de afastamento com a substância, sem a mesma influenciar em suas rotinas e responsabilidades diárias. Sugerimos aqui diferenciar corpos que buscam a ação momentânea dessas substâncias para vivenciar efeitos prazerosos de relaxamento, de corpos que buscam tratamento psiquiátrico e psicológico, por apresentar uma incapacidade de se distanciarem do objeto que proporcionam efeitos para aplacar uma dor, supostamente, intolerável. Destes últimos podemos observar um imperativo de tratamento do organismo por um tóxico, os quais as problemáticas do sujeito, e somente através dele, encontram apaziguamento frente às forças do eu e a realidade. Estamos falando de sujeitos que descobrem na droga ou álcool a suspensão dos conflitos psíquicos através da supressão egóica, atingindo assim, sob efeito dessas substâncias psicoativas, um distanciamento com a realidade que os frustra evitando os enfrentamentos e posicionamentos frente à vida. Podemos usar a proposta de Kaufmann, a qual sugere que: A montagem da toxicomania constitui, nessas condições, uma verdadeira suplência narcísica. De maneira mais geral, revela-se que esses dispositivos de 1 Gurfinkel, Decio. A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. P. 33. 1

autoconservação paradoxal podem vir se enxertar em organizações psíquicas bem diferentes. 2 Assim encontramos sujeitos que não podem existir de outra maneira a não ser sendo a representação de um objeto de satisfação de um outro e que só podem encontrar refúgio dessa operação se retirando. A liberdade é um tema muito discutido nos atendimentos a esses sujeitos, nos quais as altas hospitalares são tão esperadas quanto são temidas. Os muros do hospital servem de blindagem para organizações psíquicas tão frágeis a invasão do outro. O outro e seus olhares podem servir a uma recaída ao uso sem deixar rastros de sua influência sobre o sujeito. Os pacientes relatam o quanto o estigma os derruba e os aprisionam na condição de adictos, parecendo impossível construírem novas blindagens psíquicas para proteger um ego mais fortalecido desses olhares invasivos. Como proposto por Kaufmann: De fato, a adicção às drogas e o fechamento narcísico que elas promovem seriam, em muitos casos, tentativas de organizar um circuito autoerótico que arranque o corpo de uma dependência muito mais radical. De fato, o verdadeiro tóxico, nesse caso, não é a droga, mas antes um excesso que situa o corpo sob uma influencia. 3 No fracasso da saída do autoerotismo observamos o fenômeno da dependência onde a incapacidade de se sustentar sozinho se fixa na sustentação de um outro primitivo, a mãe se materializa em objeto. Nesse sentido podemos entender a toxicomania como um sintoma dos distúrbios da oralidade a qual a dietética, ou seja, o uso ponderado ou recreativo das substâncias psicoativas se torna impossível. Ingestão maníaca autoerótica, contemplando a suplência narcísica, observamos sujeitos fechados num trabalho que não é penoso e que se realiza em si mesmo, pois não há compartilhamento nem insatisfação. Há um contemplamento intenso sob efeito dessas substâncias, podendo fazer relação entre o virar dos olhos do bebê durante a amamentação e a virada dos olhos de alcoolistas e toxicômanos durante o êxtase da ingestão tóxica. Frente a essa energia sexual autoengendrada, correspondendo ao narcisismo dos pais, propomos que o trabalho analítico consiste em construir novos aprendizados para a boca que não serve só para beber, pitar, pipar ou fumar, mas também para falar. Este é um trabalho penoso que implica o sujeito no conhecimento de si e nas possíveis formas de entender a ligação tão intensa com o outro e também com as tais substâncias tóxicas. 2 Kaufmann, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. 1996. P 542. 3 Ibid. P. 543. 2

Para contextualizar nossa discussão estamos falando de pacientes toxicômanos e alcoolistas do sexo masculino internados em uma enfermaria em um Hospital Psiquiátrico. Estes chegam ao hospital encaminhados por outras instituições de saúde (a partir de uma avaliação psiquiátrica), por influência de familiares ou amigos, e/ou são autointernantes - pacientes sozinhos e muitas vezes sem contato com a família que solicitam um período de internação. São sujeitos que no estreito laço com a substância não conseguem mais sustentar o convívio social, já perderam empregos, estudos, a situação financeira está caótica ou nula, e principalmente encontram-se em condições físicas deploráveis. Necessitando de uma primeira intervenção nos cuidados básicos com o corpo esses pacientes são medicados e acompanhados pelas equipes de enfermagem e nutrição. Para tratar das questões sociais (emprego, moradia, contato com a família) são assistidos pela equipe de assistência social. No que diz respeito à intervenção terapêutica do paciente temos as equipes de psicologia, educação física, musicoterapia e terapia ocupacional, as quais juntas sustentam a proposta de tratamento multidisciplinar. Com relação à intervenção psicológica optamos por dois tipos de abordagens: a individual e a grupal. A primeira consiste em atendimentos individuais por um psicólogo ou psicanalista com frequência de uma ou duas vezes por semana. A segunda - trabalho de intervenção grupal - foi proposta não só para atender a grande demanda hospitalar, mas para proporcionar aos sujeitos internados oportunidades de repensarem os vínculos e o convívio sociais perdidos ou afastados em decorrência do abuso de substâncias. Ou seja, na cena grupal é possível reviver conflitos há muito tempo abandonados, encontros fraternos ou de desavenças, discussões a cerca do que é viver com o outro e suas dificuldades. Temos também como proposta construir coletivamente reflexões a respeito do uso compulsivo de drogas, seus prejuízos e conseqüências, e também para tratar de questões emergentes durante o período de internação. Optamos por sugerir uma intervenção diferenciada das propostas matriciais (como Alcoólicos Anônimos ou Narcóticos Anônimos), as quais se observa a indicação de apadrinhamento ex-usuários que se responsabilizam por novos integrantes no controle ao vício. Nesses encontros os sujeitos contarem suas histórias individuais, cada um no seu tempo, reforçando o estigma de usuários de drogas, sustentados por um lema de ser uma doença incurável, progressiva e mortal. Esta rede promove o afastamento do sujeito e do objeto droga, onde a fala o transforma em um agente policial de si mesmo. Para além dessa proposta pretendemos dar palavra a esses sujeitos, a partir de um contorno da fala maníaca sem sentido, para que possam se reaproximar ou até mesmo, pela primeira vez, aproximar de si mesmos. Em um grupo de reflexão (nome dado ao grupo terapêutico realizado pelo setor da psicologia) foi proposto pelos coordenadores a discussão sobre o tratamento durante a internação. Tema que foi sugerido para levantar questões que surgem durante a internação como afastamento e falta de confiança da família, o sentimento de solidão na recuperação e a impotência frente à demanda do corpo pela substância. 3

De modo surpreendente, como se não houvesse sido proposta a idéia de aprofundamento das questões acima, os participantes do grupo começaram a discorrer sobre as deficiências físicas e organizacionais do hospital. O grupo, usado como ouvidoria, tornou-se depositário de muitas reclamações sobre a frequência das atividades realizadas por todas as equipes técnicas, alegando que o hospital oferece muito tempo ocioso aos pacientes. Sugeriram que fossem realizadas atividades diárias de lazer, esporte e cultura (como exibição de filmes, instalação de TV a cabo, atividades físicas diárias, aumento da frequência semanal do grupo terapêutico, abertura do ateliê da terapia ocupacional em período integral mesmo sem a presença da terapeuta responsável, entre outras muitas solicitações). A demanda que mais nos chama a atenção é o pedido de realização de palestras sobre drogas, seus efeitos, danos físicos e como lidar com o vício. Solicitação pedagógica com o intuito informativo fica para nós uma curiosidade de como esses pacientes parecem desconhecer as substâncias de abuso, suas consequências e efeitos no corpo. Sendo que no momento da internação alegam até sentir cansaço de tanto tempo utilizar a droga. Esses pacientes ocuparam todo o espaço e tempo do grupo para fazer essas reclamações e solicitações sem tocar em um momento sobre o tratamento de si mesmo. Foi impossível desviar o assunto para outra elaboração, como os motivos que os levam a serem tão demandantes ao outro e de suas incapacidades para lidar com suas questões sem responsabilizar o outro por seus próprios infortúnios. Precisam dos outros para lhes dar as coordenadas sobre a vida e o afastamento do objeto droga. Esperam do outro conhecimento referente às substâncias que estão completamente cansados (e acostumados) a usar, e se debruçam no hospital (instituição mãe) para os tirar do vício. Pouca responsabilidade pela escolha de objeto como se a biqueira e o boteco fossem os maiores culpados de suas condições. Após a realização de alguns grupos com os pacientes em questão - próximo ao exemplo relatado acima - foram notados certos efeitos no corpo do clínico como: estupor, fadiga, falta de apetite, irritação e dificuldade de se concentrar nas atividades subsequentes fora do ambiente hospitalar. Todos estes sintomas acompanhados da sensação de não sermos ouvidos. Num primeiro momento era possível apenas pensar que essas sensações eram reflexos de uma rotina puxada e de grande demanda emergencial de um trabalho em um hospital. Porém, após uma análise mais cuidadosa em supervisão e análise pessoal foi possível fazer um contorno significativo a essas sensações a partir das reconstruções e reflexões a cerca dos momentos grupais com os pacientes em questão. Foi notável observar o quanto os restos dos atendimentos e as demandas de tais pacientes foram transferidos para o clínico durante o encontro grupal. O analista se sentia impotente frente a tantas solicitações e falas em estado maníacos. 4

Na busca de soluções imediatas assim como são os efeitos dos tóxicos para a compulsão e a relação com o uso de psicoativos, observamos sujeitos infantilizados, pouco ou nada responsáveis por suas escolhas e que esperam das instituições, quando em tratamento, respostas para a grande incógnita que os cercam: o desconhecimento de si. O analista, nesse sentido, é usado pelo toxicômano, ou seja, tem-se a sensação de um esgotamento após sermos bebidos, pipados ou cheirados para aplacar a ansiedade do corpo em abstinência. O clínico, substituído pela substância, se torna um refém sem palavras nas mãos de pacientes que não conhecem outro laço com o outro, senão o de consumi-lo. Pensamos que, a partir deste fenômeno transferencial observado nos encontros grupais, ocorre uma repetição deste modo de existir, reflexo do que vivenciam quando estão sob os efeitos das substâncias tóxicas onde não existe continente para a fala. No grupo há, então, um transbordamento para o alívio da dor, agora transportada para a bebedeira transferencial. Para compreender melhor esta situação grupal nos pautamos no fenômeno da transferência. Segundo Roudinesco e Plon a transferência é: [...] um processo constitutivo do tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a objetos externos passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos objetos. 4 Observando este fenômeno da transferência podemos notar as diferentes intensidades e polaridades da mesma no contato com esses pacientes em questão. Pois ao mesmo tempo em que demonstram sentimentos afetivos e de gratidão com a organização hospitalar também a acusam de não ajudá-los como o esperado depositando sentimentos negativos e hostis a ela. Tratando da transferência negativa apontada neste artigo, Freud aponta como um fenômeno comum às organizações de saúde mental. Assim que um paciente cai sob o domínio da transferência negativa, ele deixa a instituição em estado inalterado ou agravado. A transferência erótica não possui efeito inibidor nas instituições, visto que nestas, tal como acontece na vida comum, ela é encoberta ao invés de revelada. Mas se manifesta muito claramente como resistência ao restabelecimento, não, é verdade, por levar o paciente a sair da instituição - pelo contrário, retém-no aí mas por mantê-lo a certa distância da vida. 5 Podemos entender a partir desta colocação que quando não tratamos da ansiedade ou das inibições nas instituições, construímos uma maneira de se manter longe da realidade. A projeção 4 Roudinesco, Elisabeth; Plon, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. 1998. P.766. 5 Freud, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol.XII). Rio de Janeiro, RJ: Imago Standard Brasileira. 1996. P.117. 5

desses sentimentos à instituição hospitalar mantém o sujeito longe de se responsabilizar pelas escolhas de objetos e os segura em uma consequente dependência dos mesmos para se livrar de seus conflitos. Assim, o papel do analista volta-se para o conflito de aproximação, para a formação de laço e o afastamento, dinâmica necessária para não ficar engolfado, como o paciente, sob o efeito da transferência. Pensamos ser necessário beber junto, mas sair antes de ficarmos bêbados para mantermos a palavra em circulação. Única saída possível de descolamento entre sujeito e objeto é a circulação da palavra. Podemos entrar com uma possível proposta de análise. Antes da distância com o objeto droga não há sujeito, há um fechamento narcísico que o protege de entrar em contato com a questão engolfante da demanda do Outro. Segundo Kaufmann, Em lugar de tentar curar a toxicomania, somos levados, portanto, a fazer surgir novas formações que figuram as questões fundamentais do sujeito. 6 Desse mesmo modo acreditamos que o trabalho terapêutico durante uma internação hospitalar, seja criar sintoma a partir do distanciamento do sujeito e droga, que não seja a droga em si. Esse momento é uma oportunidade de colocar a palavra em circulação para assim no trabalho penoso da livre associação possam surgir novas identificações, no lugar da identificação com a droga. Um tempo curto de internação a favor do vínculo terapêutico, direcionada para o inicio de uma demanda de análise que não somente promova o afastamento do objeto, mas que também crie oportunidade de abordar esse sujeito de cara limpa. Quanto à cura, não podemos nos iludir, mas o inicio de um exercício de pensamento sobre si já alimenta o trabalho terapêutico e o próprio paciente que estava somente acostumado a uma dieta tóxica. 6 Ibid. P. 546. 6

Referências Bibliográficas FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol.XII). Rio de Janeiro, RJ: Imago Standard Brasileira. 1996. GURFINKEL, Decio. A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. 1996. ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. 1998. 7