O TER E O FAZER: A PSICOPATOLOGIA DA OBESIDADE INFANTIL. Carolina Mendes Cruz Ferreira. Me. Fernanda Kimie Tavares Mishima



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Transcrição:

O TER E O FAZER: A PSICOPATOLOGIA DA OBESIDADE INFANTIL Carolina Mendes Cruz Ferreira Me. Fernanda Kimie Tavares Mishima Profa. Dra. Valéria Barbieri INTRODUÇÃO A obesidade infantil é considerada uma patologia grave, cuja incidência tem aumentado consideravelmente, acarretando graves problemas de saúde pública (Coutinho, 1999; Oliveira; Cerqueira; Oliveira, 2003; Fisberg, 2005). Ela atinge cerca de 155 milhões de crianças com excesso de peso e de 30 a 45 milhões de obesas ao redor do mundo (Fisberg; Cintra; Oliveira, 2005). Dentre estas, há 18 milhões de crianças obesas abaixo dos cinco anos, segundo informações da Organização Mundial de Saúde (2000 apud Busse, 2004). Apesar de ser uma doença causada por múltiplos fatores, seu aspecto emocional é negligenciado, sendo comumente reconhecido nas consequências psíquicas geradas pela patologia (Fisberg, 2005). Um dos principais aspectos emocionais envolvidos na etiologia da obesidade diz respeito ao vínculo mãe e filho, pois é a figura materna a primeira fonte de alimentação da criança (Spada, 2005). Nesta relação Abadi (1998) ressalta duas possíveis formas de prejuízo para o desenvolvimento emocional infantil: a mãe e a criança permanecem em um vínculo simbiótico, ou a mãe realiza uma ruptura precoce (intrusão). De qualquer maneira, a criança sofrerá danos emocionais, podendo permanecer no vínculo simbiótico, ou ainda se ligar patologicamente a um único objeto substitutivo da mãe (cronificação patológica do objeto transicional ou fetichização do objeto). Nestes casos o processo simbólico fica prejudicado, pois a ausência da mãe é substituída pela presença de um objeto concreto (alimento), dificultando o contato com o mundo interno e a fantasia. Sendo assim, as únicas formas de relação com o mundo externo passam a ser o fazer e o ter (como comprar, consumir e comer)

na tentativa de preencher o vazio angustiante, o sentimento de solidão e acalmar a sensação de ansiedade intolerável. Winnicott (2000) ressalta que para que o processo de simbolização aconteça é importante que a criança vivencie a passagem pela transicionalidade, que favorece seu viver criativo, seu estilo de ser pessoal e sua espontaneidade. Os fenômenos transicionais estão associados ao brincar (play), uma vez que através dessa experiência a criança pode estabelecer uma ponte entre o mundo interno e externo. Nesse contexto, o autor destaca dois extremos do brincar, aquele empreendido como simples e prazerosa dramatização da vida do mundo interno, e seu oposto, caracterizado pela negação desse mundo e realizado de modo compulsivo. Neste caso, a criança é movida pela excitação e impulsionada por uma intensa ansiedade, tendo como foco de interesse a exploração de sensações do ambiente, não conseguindo atingir uma atitude espontânea frente a suas vivências. A exploração sensorial pode ser realizada na busca por comida; a necessidade de se alimentar passa a ter finalidade de abrandar a ansiedade sentida, o que afeta diretamente os relacionamentos interpessoais. A criança busca o alimento para preencher o vazio quando houve a experiência de privação anterior, ou seja, a mãe não foi capaz de transmitir ao filho seu estado emocional, dificultando os sinais de como está a fonte de alimento. Assim, a criança passa a tentar adivinhar o que acontece com a mãe, não se sente segura quanto a provisão materna e pode chegar a sentir que está roubando o alimento. Em vista de tais considerações, este trabalho busca compreender a vertente emocional envolvida na obesidade infantil, considerando o psicodinamismo de uma criança obesa e suas relações familiares. Abordar componentes psicológicos de tal patologia permitirá uma compreensão mais integrada do fenômeno e maiores possibilidades de tratamento e prevenção.

CASO CLÍNICO Júlio tem 3 anos e 7 meses, é uma criança obesa, segundo filho de um casal de nível socioeconômico médio. Foi levado para atendimento psicológico na clínica-escola da Universidade de São Paulo devido à queixa de comportamento agressivo, indisciplina na escola e encoprese; tais aspectos apareceram de forma secundária no contato com a criança. Realizou-se um processo de triagem interventiva, com cinco sessões (entrevista, lúdica, familiar, devolutiva), que contou com a participação da criança e toda a família. Estas sessões foram analisadas por meio da livre inspeção (Trinca, 1984), segundo abordagem psicanalítica winnicottiana. No primeiro contato, a mãe relatou que a gravidez foi desejada, contudo, após o nascimento do filho, o casal se distanciou afetivamente, ela deixou de trabalhar fora e toda a atenção passou a ser dada para a criança. O distanciamento conjugal foi percebido principalmente pela dificuldade de diálogo entre o casal, que, com isso, acabava usando a criança como intermediador das conversas. Essa demanda exige do menino um grande dispêndio de energia, suscitando uma preocupação excessiva e responsabilidade por manter a união familiar. Consequentemente, há um prejuízo das relações interpessoais com pessoas fora do contexto da família, evidenciado no contato com a terapeuta. Logo na primeira sessão, Júlio tem uma dificuldade grande para se desprender da mãe e entrar na sala de atendimento, sendo necessário que ela o acompanhe e permaneça junto dele durante um tempo. Há uma ambivalência em relação a figura materna, ora Júlio exige a presença da mãe, ora quer ser autônomo. Contudo, o movimento no sentido de maior independência gera sentimento de culpa, como se o fato de se desvencilhar da mãe fosse sentido por ele como abandono. Quando distante da figura materna, Júlio muda sua postura, torna-se uma criança participativa, comunicativa, risonha e carinhosa; propõe brincadeiras que incluem a terapeuta. No brincar a criança se mostra ansiosa, agitada e um pouco impulsiva, fazendo uso de

diversos brinquedos disponíveis na caixa lúdica, porém, não consegue permanecer durante muito tempo envolvido em uma mesma brincadeira. Há indícios do processo de simbolização, que parece não ser realizada de maneira plena por receio de suas próprias fantasias e desconhecimento do mundo interno, geradores de intensa angústia. Como a impulsividade e excitação pela ansiedade marcam a brincadeira, esta passa a ser associada à pura exploração sensorial do ambiente em busca da gratificação imediata. Quando não tem seus desejos atendidos, emergem sentimentos de solidão e intolerância a frustrações e à imposição de regras e limites (vivenciada no setting analítico), que, quando colocados, desencadeiam comportamentos agressivos (fazer birra, dar socos nos pais, bater a cabeça na parede). Durante a sessão familiar foi possível corroborar tais aspectos, a criança se sentia responsável pela manutenção do vínculo familiar, funcionando como elo de ligação entre os pais e a figura central da dinâmica da família. Para tanto, foi-lhe retirado o lugar de criança que precisa de cuidados, obrigando-o a ocupar um espaço de adulto, para atender as expectativas dos pais, não frustrá-los e, assim, não perder seu amor. Concomitante a essa função, ele, como figura de autoridade da família, não pode ser frustrado, o que dificulta a discriminação entre mundo interno e externo e a aquisição de limites. A falta de conhecimento do mundo intrapsíquico faz com que a criança tenha dificuldades em reconhecer as suas necessidades reais, uma vez que elas acabam por se confundir com as necessidades da família. Nesse sentido, é preciso buscar algo concreto do mundo externo que preencha o vazio afetivo decorrente da ausência de cuidados emocionais. Ter algo concreto, o alimento, passa a ser a única maneira de se relacionar com o meio, ao invés de sentir, pensar e elaborar as suas vivências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS No caso clínico descrito neste estudo foi possível notar falhas intensas no fornecimento de holding, caracterizando o ambiente familiar como insuficientemente bom. Houve dificuldade na vivência do processo de ilusão-desilusão, presente no estágio de dependência absoluta, no qual a mãe supre todas as necessidades da criança, emocionais e físicas. A mãe de Júlio parece ter conseguido prover suas necessidades concretas (alimento) em detrimento das afetivas, não permitindo que a criança sentisse segurança suficiente para a vivência da transicionalidade. Assim, a criança apresenta prejuízos na discriminação da realidade interna e externa, o que impede o uso pessoal dos objetos que lhe são apresentados, de maneira a conseguir simbolizar e brincar espontaneamente. O contato com o mundo externo fica comprometido e Júlio busca uma maneira concreta de se relacionar, usando o alimento, como forma de compensar o vazio gerado pelo prejuízo da doação afetiva. A busca constante em se ter algo concreto parece não ser suficiente, pois não atende às suas reais necessidades, fazendo com que não se sinta amado nem seguro para ter e manter relacionamentos interpessoais. Há presença de sentimentos de angústia e vazio nas relações baseadas na concretude, no ter e fazer, impossibilitando a atitude espontânea e criativa frente ao lúdico, o ser pessoal. É possível pensar na afirmação de Mac Dougall (1996), que considera a adicção como uma tentativa psicossomática de superar a dor mental, com uso de substâncias externas que tranquilizam o espírito e suprimem, mesmo provisoriamente, o conflito psíquico. Neste caso clínico, o alimento é usado para amenizar a ansiedade e como maneira de interagir com o mundo compartilhado, na tentativa de suprir lacunas deixadas pela privação afetiva decorrente da ausência da introjeção do bom objeto materno. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABADI, S. Transições: o modelo terapêutico de D. W. Winnicott. Tradução Laila Yazigi de Massuh. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. 233p. BUSSE, S. R. (Org.). Anorexia, bulimia e obesidade. São Paulo: Manole, 2004. 380p. COUTINHO, W. Consenso Latino-Americano de obesidade. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabologia, v. 43, n. 1, p. 21-67, 1999. FISBERG, M. Primeiras palavras: uma introdução ao problema do peso excessivo. In:. (Org.). Atualização em obesidade na infância e adolescência. São Paulo: Editora Atheneu, 2005. p. 1-10. FISBERG, M.; CINTRA, I. P.; OLIVEIRA, C. L. de. Epidemiologia e diagnóstico da obesidade: abordagem inicial. In: FISBERG, M. (Org.) Atualização em obesidade na infância e adolescência. São Paulo: Editora Atheneu, 2005. p. 11-16. MAC DOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 194p. OLIVEIRA, A. M. A. de; CERQUEIRA, E. M. M.; OLIVEIRA, A. C. de. Prevalência de sobrepeso e obesidade infantil na cidade de Feira de Santana-BA: detecção na família x diagnóstico clínico. Journal of Pediatric, v. 74, n. 4, p. 325-328, 2003. SPADA, P. V. Obesidade infantil: aspectos emocionais e vínculo mãe/filho. Rio de Janeiro: Revinter, 2005. 39p. TRINCA, W. Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU, 1984. 124p. WINNICOTT, D. W. Da pediatria à psicanálise. Tradução Davy Bogolometz. Rio de Janeiro: Imago, 2000. 455p.