Osso muito duro de roer



Documentos relacionados
Rogério Medeiros

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

PL 8035/2010 UMA POLÍTICA DE ESTADO. Plano Nacional de Educação 2011/2020. Maria de Fátima Bezerra. Deputada Federal PT/RN

Mobilização e Participação Social no

FOME ZERO. O papel do Brasil na luta global contra a fome e a pobreza

Um país menos desigual: pobreza extrema cai a 2,8% da população Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) foram divulgados pelo IBGE

XXV ENCONTRO NACIONAL DA UNCME

Redução da Fome, da Pobreza e da Desigualdade. Taquara/RS 16/10/2015

SECRETARIA DE ESTADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL - SEAS

INSTITUTOS SUPERIORES DE ENSINO DO CENSA PROGRAMA INSTITUCIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA PROVIC PROGRAMA VOLUNTÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA

SEMINÁRIOS TEMÁTICOS. Mesa 1: Produção Habitacional : programas de financiamento da habitação de interesse social

Relatório Estadual de Acompanhamento Relatório Estadual de Acompanhamento 2008 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

Discurso de Luiz Inácio Lula da Silva Seminário do Prêmio Global de Alimentação Des Moines, Estados Unidos 14 de outubro de 2011

Crescimento Econômico Brasileiro e o temor da Inflação

O EIXO DE GARANTIA DE RENDA NO PLANO BRASIL SEM MISÉRIA

Plano Brasil sem Miséria e a Educação para redução da pobreza e das desigualdades UNDIME 15/06/2015

Plano Decenal SUAS e o Plano Decenal : Como fazer a análise do SUAS que temos como projetar o SUAS que queremos

SUAS e Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional SISAN: Desafios e Perspectivas para a Intersetorialiade

Oficina O Uso dos Sistemas de Informação como Ferramentas de Gestão Local do SUAS

Texto para Coluna do NRE-POLI na Revista Construção e Mercado Pini Julho 2009

Segurança Alimentar e Nutricional

Texto para Coluna do NRE-POLI na Revista Construção e Mercado Pini Abril 2012

A ponte que atravessa o rio

ÍNDICE. Introdução. Os 7 Segredos. Como ser um milionário? Porque eu não sou milionário? Conclusão. \\ 07 Segredos Milionários

Propostas de luta para tornar nossa. vida melhor. Maio de 2003

Desenvolvimento Rural Sustentável na Abordagem Territorial. Alexandre da Silva Santos Consultor da SDT/MDA Balneário Camboriu, Novembro de 2011

Discurso da ministra do Planejamento, Miriam Belchior, no seminário Planejamento e Desenvolvimento: Experiências Internacionais e o Caso do Brasil

ipea políticas sociais acompanhamento e análise 7 ago GASTOS SOCIAIS: FOCALIZAR VERSUS UNIVERSALIZAR José Márcio Camargo*

O Programa Bolsa Família

Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

Gestão Municipal do Cadastro Único. Programa Bolsa Família

Município: JOÃO PESSOA / PB

2A educação é o principal catalisador para

A economia brasileira em transição: política macroeconômica, trabalho e desigualdade

Índice de Gini e IDH. Prof. Antonio Carlos Assumpção

REF: As pautas das crianças e adolescentes nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Dúvidas sobre ampliação do Mais Médicos e incorporação do Provab

Inclusão bancária: bancos públicos efetivam seu papel social

Governo planeja ações com base em dados e tenta aprimorar combate à exploração incentivando envolvimento da sociedade civil em fóruns e conselhos

Princípios, valores e iniciativas de mobilização comunitária. Território do Bem - Vitória/ES

PNAE: 50 ANOS DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR POLÍTICAS DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL

Gestão da Demanda de Água Através de Convênios e Parcerias com o Governo do Estado de São Paulo e Prefeitura da Cidade de São Paulo SABESP

TRADUÇÃO NÃO OFICIAL

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MDS Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional SESAN

PESQUISA DE OPINIÃO PÚBLICA SOBRE ASSUNTOS POLÍTICOS/ ADMINISTRATIVOS

FINANCIAMENTO NO PNE E OS DESAFIOS DOS MUNICÍPIOS. LUIZ ARAÚJO Doutor em Educação Professor da Universidade de Brasília Diretor da FINEDUCA

Objetivos Consolidar uma política garantidora de direitos Reduzir ainda mais a desigualdade social

NOTA DE REPÚDIO ou sob o regime de tempo parcial, a partir de quatorze anos

BAIXO ARAGUAIA PORTAL DA AMAZÔNIA BAIXADA CUIABANA NOROESTE

BRASIL EXCLUDENTE E CONCENTRADOR. Colégio Anglo de Sete Lagoas Prof.: Ronaldo Tel.: (31)

Estratégia de Desenvolvimento no Brasil e o Programa Bolsa Família. Junho 2014

Shopping Iguatemi Campinas Reciclagem

COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE CIDADANIA REDAÇÃO FINAL PROJETO DE LEI Nº D, DE O CONGRESSO NACIONAL decreta:

P.42 Programa de Educação Ambiental - PEA. Direitos e Deveres do Cidadão

9. o ANO FUNDAMENTAL PROF. ª ANDREZA XAVIER PROF. WALACE VINENTE

CECAD Consulta Extração Seleção de Informações do CADÚNICO. Caio Nakashima Março 2012

PARTIDO DOS TRABALHADORES DIRETÓRIO ESTADUAL DO CEARÁ

Projeto Alvorada: ação onde o Brasil é mais pobre

DISCURSO SOBRE LEVANTAMENTO DA PASTORAL DO MIGRANTE FEITO NO ESTADO DO AMAZONAS REVELANDO QUE OS MIGRANTES PROCURAM O ESTADO DO AMAZONAS EM BUSCA DE

Iniciativa global Out of School Children Pelas Crianças Fora da Escola.

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA

Metas e estratégias equalizadoras ao PNE II Educação de Jovens e Adultos EJA Analise da Silva Coordenação Nacional dos Fóruns de EJA do Brasil

Texto para Coluna do NRE-POLI na Revista Construção e Mercado Pini Fevereiro 2012

Pequenas e Médias Empresas no Canadá. Pequenos Negócios Conceito e Principais instituições de Apoio aos Pequenos Negócios

SAÚDE COMO UM DIREITO DE CIDADANIA

Resultados da 112ª Pesquisa CNT de Opinião

IV Seminário Nacional do Programa Nacional de Crédito Fundiário Crédito Fundiário no Combate a Pobreza Rural Sustentabilidade e Qualidade de Vida


FGTS 45 ANOS DE DESENVOLVIMENTO O BRASIL E PROMOVENDO A CIDADANIA

Plano Nacional de Educação. Programa Bolsa Família e MDS

Reforma Agrária e Assentamentos Rurais: caminhos para erradicação da pobreza e para a Segurança Alimentar

Excelentíssima Presidenta do Brasil, Dilma Rousseff

Com inflação e juros em alta, hora de fazer 'ajuste fiscal' em casa

MINISTÉRIO DA SAÚDE FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE Coordenação Regional de santa Catarina ATENÇÃO

Pobreza multidimensional: questões conceituais e metodológicas para seu dimensionamento. SAGI/MDS Agosto de 2015

ipea A EFETIVIDADE DO SALÁRIO MÍNIMO COMO UM INSTRUMENTO PARA REDUZIR A POBREZA NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO 2 METODOLOGIA 2.1 Natureza das simulações

Resposabilidade Social Corporativa investindo em Desenvolvimento Humano

PARA ONDE VAMOS? Uma reflexão sobre o destino das Ongs na Região Sul do Brasil

Força de Trabalho em Saúde

SANEAMENTO É SAÚDE João José da Silva

Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos Secretaria Executiva de Desenvolvimento e Assistência Social Gerência de Planejamento,

O Brasil Sem Miséria é um Plano de metas para viabilizar o compromisso ético ousado do Governo da presidenta

Ações de Educação Alimentar e Nutricional

Boas Práticas. Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Adolescente Trabalhador

Ana Fonseca Secretária Extraordinária de Superação da Extrema Pobreza (SESEP/MDS) Reunião do SASF 2 de agosto de 2011 Brasília

Região Metropolitana de Belo Horizonte e Norte de Minas receberão novos investimentos em abastecimento de água

DIREITOS HUMANOS DE CRIANÇAS AS E ADOLESCENTES NO BRASIL.

O BRASIL SEM MISÉRIA APRESENTAÇÃO

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Você conhece a Medicina de Família e Comunidade?

Desenvolvimento e Subdesenvolvimento: O que é preciso saber para começar entender?

Por uma Niterói mais sustentável

introdução Trecho final da Carta da Terra 1. O projeto contou com a colaboração da Rede Nossa São Paulo e Instituto de Fomento à Tecnologia do

TERMO DE REFERÊNCIA Contrato por Produto Nacional Projeto BRA/12/015. Revista sobre as práticas e projetos vencedores do Prêmio ODM Minas 1ª edição.

As Compras Públicas da Agricultura Familiar para Programas Sociais

Desigualdades em saúde - Mortalidade infantil. Palavras-chave: mortalidade infantil; qualidade de vida; desigualdade.

Qual o futuro do Bolsa Família? Celia Lessa Kerstenetzky CEDE e DCP-UFF

Como motivar Millennials. Gerencie seus benefícios! Faça um teste em convenia.com.br/free

Simpósio Estadual Saneamento Básico e Resíduos Sólidos: Avanços Necessários MPRS

Os fundos de pensão precisam de mais...fundos

Transcrição:

São Paulo, sábado, 01 de janeiro de 2011 TENDÊNCIAS/DEBATES O governo Dilma conseguirá erradicar a pobreza no Brasil? NÃO Osso muito duro de roer JOSÉ ELI DA VEIGA A pobreza não será erradicada em poucos anos, por pior que seja definida mediante ínfimas "linhas" ou "patamares" de insuficiência de renda monetária. Como se faz nos Estados Unidos, onde o número de pobres tem oscilado entre 13% e 17% da população. Ao longo de um decênio, 40% das pessoas caem, em algum momento, abaixo da linha de pobreza. Mais: 58,5% serão pobres por ao menos um ano entre seus 25 e 75 anos. Na Europa, prefere-se uma abordagem mais flexível: pobre é quem ganha menos de 60% da renda mediana nacional. (Atenção, "mediana", e não "média", como andam sugerindo por aqui). Apesar de melhor, não passa de outra versão da mesmíssima crença: de que para delimitar a pobreza basta que se convencione o valor da renda monetária divisória. Todavia, como pobreza é privação de capacidades básicas, jamais deveria ser medida apenas com estatísticas de insuficiência de renda.

É pobre mesmo quem tiver boa renda monetária caso esteja impedido de convertêla em vida decente. Por falta de saúde, de educação e de muitas outras carências. Essa afirmação resulta de imensa quantidade de minuciosas pesquisas feitas por equipes de primeira linha junto às populações mais desvalidas do mundo. Foram sintetizadas no livro Desenvolvimento como liberdade, do prêmio Nobel Amartya Sen (Companhia de Letras, 2000). Principalmente no quarto capítulo, intitulado "Pobreza como privação de capacidades". É leitura recomendável a quem acredite que só menos de um terço da população brasileira continue pobre porque em 2008 já não passavam de 28,8% os condenados a se virar com menos de meio salário mínimo. Basta outro dado bem objetivo para perceber que mais de metade da população permanece pobre: o acesso à rede de esgotamento sanitário. Não usufruem desse direito básico 56% da população total do país. Falta de esgoto impacta a inteligência das pessoas por causa de infecções parasitárias na infância. Evidência consolidada por Cristopher Epping e colaboradores no periódico científico "Proceedings of the Royal Society" e relatada nesta Folha pelo médico Drauzio Varella em sua coluna de 11/09/2010 ("Inteligência e pobreza"). O cérebro é o órgão do corpo humano que mais consome energia: 87% no recém-nascido, 44% aos cinco anos, 34% aos dez. As infecções

parasitárias desviam energia para ativar o sistema imunológico. Repetidas diarreias até os cinco anos roubam do cérebro as calorias necessárias a seu desenvolvimento, comprometendo a inteligência para sempre. É pura ilusão, portanto, supor que não sejam pobres pessoas que padeçam dessa catastrófica privação que é o permanente risco de contrair parasitoses, só porque tenham renda superior a "x" reais. Chega a soar como propaganda enganosa o uso desse tosco expediente para dizer que a pobreza está sendo erradicada. Esconde a inépcia dos governos em garantir saneamento. O número de moradias insalubres diminuiu dez pontos entre 1995 e 2002 (de 59,1% para 49,5%), e mais cinco entre 2003 e 2008 (de 48,3% para 43%). Mantidos tais níveis de desempenho, a universalização do esgoto com tratamento só ocorreria em 2060. Se o investimento dobrasse e a produtividade aumentasse um terço, essa meta poderia ser atingida em 2024. Com razoável aumento do quociente de inteligência (QI) médio, chamado de "efeito Flynn". Em suma: seriam necessários quatro governos bem melhores que os de Lula para que a pobreza fosse minimizada. JOSÉ ELI DA VEIGA, 62, é professor titular de economia da USP. Site: www.zeeli.pro.br.

SIM Estratégia para o fim da miséria FRANCISCO MENEZES A erradicação da miséria foi anunciada por Dilma Rousseff como prioridade social do seu governo. O problema atinge ainda milhões de brasileiros e apresenta as mais variadas faces. Famílias rurais sem condições produtivas, populações de rua nas grandes cidades, povos indígenas que perderam as terras, quilombolas carentes de serviços essenciais, idosos desassistidos, essas são apenas algumas das muitas caras da pobreza extrema. O fim da miséria exige respostas às diferentes formas do problema. A tarefa é difícil, mas possível. Para isso, o governo que começa hoje deve orientar a sua atuação por três eixos estratégicos: uma política clara e com recursos suficientes, a gestão articulada dessas ações e a participação da sociedade para garantir a aplicação das medidas. Nos dois mandatos do presidente Lula, a principal ação nessa área foi o Bolsa Família. O programa atacou o que é comum às distintas formas de pobreza, a insuficiência de renda, e retirou quase 10 milhões de pessoas dessa condição. Porém, para os cerca de 8 milhões restantes, a faixa mais pobre dos mais pobres, vai ser preciso mais. É indiscutível que será a educação universal de qualidade que romperá o ciclo intergeracional da pobreza, mas tal resultado só virá a longo prazo e se o Estado garantir agora as condições para isso. Assim, o Bolsa Família deve continuar e incorporar os que nele não ingressaram, e o valor transferido deve ser corrigido. A atual média de R$ 95 mensais por família está aquém do necessário para os que não possuem outra renda estável. O aprofundamento de outras iniciativas é indispensável. Habitação, saneamento básico, maior oferta e barateamento de transporte, o acesso à energia elétrica e iniciativas de inclusão produtiva são alguns dos itens de uma cesta básica para o resgate da miséria.

Ainda assim, não basta somar ações. Será decisiva a capacidade de potencializar os impactos dos programas, articulá-los numa perspectiva intersetorial, colocálos um a serviço do outro. Uma câmara social ativa, com ministros e secretários, sob a coordenação da Presidência da República, é crucial para a convergência e a otimização das iniciativas. Com os programas certos e integrados, falta o maior desafio: a disposição e a capacidade dos atores locais para aplicar as políticas nos territórios, e o acompanhamento público necessário para isso. O governo não pode mobilizar a sociedade, mas deve abrir os espaços públicos à participação. Investimento, gestão e participação social formam o tripé para a erradicação da miséria, para um processo inédito de constituição de cidadania no Brasil, cidadania que só existe de fato quando é para todos. FRANCISCO MENEZES é diretor do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, ONG fundada por Betinho). Foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).