Sexualidade e relações de gênero: a formação docente em questão

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Transcrição:

Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 Sexualidade e relações de gênero: a formação docente em questão Ana Paula Costa; Paulo Rennes Marçal Ribeiro (UNESP/Araraquara) Sexualidade; Relações de gênero; Formação docente. ST 51 Gênero e sexualidade nas práticas escolares. Apresentação A literatura acadêmica que estuda, discute e reflete sobre a sexualidade tem mostrado o quanto questões sexuais estão presentes na escola, bem como a importância de trabalhá-las enquanto conteúdo na sala de aula com crianças e adolescentes (por exemplo, Ribeiro, 1990; Louro, 1997). Paralelamente, essa necessidade também é corroborada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), os quais elegem o termo Orientação Sexual 1 como um dos temas transversais que devem ser incorporados aos conteúdos ensinados na instituição escolar. Se aos poucos somos convencidos que a sexualidade deve ser trabalhada na sala de aula, devemos também considerar e, igualmente, conhecer qual o sujeito que no contexto escolar desempenhará o papel de orientador/a sexual, sendo estes/a, na maioria das vezes, o/a professor/a. Mas, para que um/a professor/a se torne orientador/a sexual, mais que uma formação teórica e prática, é necessário, primeiramente, reconhecer a existência de desejos sexuais neste sujeito. No entanto, se no século XX Sigmund Freud causou espanto ao afirmar que as crianças possuíam sexualidade, hoje, no século XXI, diante de relações pedagógicas cegas e mudas acerca do sexo [...] onde o corpo tem de ser anulado, tem que passar despercebido. (HOOKS, 2000, p. 115), o que talvez nos cause espanto é conceber que o/a professor que falará de sexualidade para um grupo de crianças ou adolescentes também tem sexualidade. É neste contexto que este trabalho tem como objeto a sexualidade das professoras e a sua relação com a formação docente. Em outras palavras, procuramos investigar, pela perspectiva do conceito de gênero, as concepções de sexualidade de um grupo de universitárias que já atuam na educação escolar como professoras, considerando as mediações e intervenções do curso de Pedagogia na idéia que fazem de sexualidade e como esse conceito adquire formato na sua prática educativa. Devemos ressaltar que a opção pelo conceito de gênero como instrumento para interpretar nosso objeto recai na formulação de Joan Scott (1995, p. 14) de que [...] o gênero é o primeiro modo de dar significado às relações de poder. Portanto, o gênero consistirá em lentes que nos permitirá melhor visualizar como essas professoras percebem e lidam com suas sexualidades, como

2 se vêem sendo mulheres e profissionais da educação e a posição do curso de Pedagogia que freqüentam diante de sua formação docente para o trabalho de sexualidade em sala de aula. Um pouco de sexualidade e gênero Por mais que o termo sexualidade tenha sido compilado no século XIX pela sexologia nascente, em meio às suas fundamentações biológicas e classificações de perversões (GERJ, 1995), é praticamente impossível manter um discurso essencialista 2 sobre a dinâmica que assume os desejos e prazeres. Tal fato pode ser observado nas diversas formas que a sexualidade assume em determinados tempos e espaços históricos. A não correspondência da maneira como nos enxergamos enquanto homens e mulheres com o sexo anatômico e a multiplicidade dos desejos sexuais, encontram respaldo na definição de caráter histórico de Jeffrey Weeks (2000, p. 40) sobre sexualidade, que é [...] na verdade, uma construção social, uma invenção histórica, a qual, naturalmente, tem base nas possibilidades do corpo: o sentido e o peso que lhe atribuímos são, entretanto, modelados em situações sociais concretas. A fundamentação teórica de sexualidade adotada por Weeks tem por base os escritos de Michel Foucault, autor que em sua obra História da Sexualidade, especificamente no volume I A vontade de saber, a nomeará como um dispositivo histórico (1988, p.100). O dispositivo, por sua vez, consiste em [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, de cisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre os elementos. (FOUCAULT, 1979, p. 244). Deste modo, longe de estar fixada à genitália e, algum momento, disparar rumo a um objeto de desejo fixo, a sexualidade se constitui mais como um elemento em transformação, cuja base, a cultura, a coloca em contato constante com instituições e discursos historicamente construídos. É neste contexto que a história, enquanto disciplina e ciência, se torna uma grande aliada, uma vez que vem nos mostrar nossas diversas e também desconhecidas maneiras de lidar com a sexualidade. Assim, o que dizer, por exemplo, da pederastia grega na Grécia antiga? Da relação de passividade e atividade na Antigüidade romana? Da idéia de sexualidade infantil que data do século XX com Freud? Da concepção de homossexualidade como patologia (século XIX) e sua retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) somente em 1992? Do hermafrodita Herculine Barbin, estudado e citado por Foucault (1982 apud Weeks, 2000), por não apresentar a ligação esperada entre o sexo corporal e a identidade de gênero? Esses exemplos, como outros mais, ilustram bem a historicidade das maneiras como nos comportamos sexualmente. Porém, há outro elemento importante que também pode nos ajudar a

3 compreender ainda melhor a sexualidade, sendo este o gênero, conceito que ao agir como categoria de análise, como assinala Scott (1995), é capaz de revelar as relações de poder entre os sujeitos. Não há como falar de gênero e não recorrermos ao feminismo, posto que foi no interior deste movimento que o conceito adquiriu visibilidade, como também punho teórico. Scott (1995, p.14) chega a afirmar que foi através do gênero que [...] as feministas não somente começaram a encontrar uma voz teórica própria; elas também encontram aliados científicos e políticos. É dentro deste espaço que nós devemos articular o gênero como categoria de análise. O gênero, enquanto aliado científico e político, não foi engendrado já no início do movimento feminista. Guacira Lopes Louro (1997) ao apresentar as facetas do feminismo do século XX no ocidente, corrobora que sua primeira onda pode ser caracterizada pela necessidade de reconhecimento dos direitos às mulheres, como exemplo, o voto. Por volta de 1960, Louro fala da segunda onda, momento em que as feministas começam a problematizar e discorrer teoricamente sobre as situações que observavam no cotidiano das mulheres. No entanto, esta mesma autora afirma que, ao mesmo tempo em que esses estudos tornaram o sujeito feminino visível, também pecaram no que concerne [ao] argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que a relação entre ambos decorre dessa distinção, que é complementar e na qual um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por ter o caráter de argumento final, irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma linguagem científica, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual serve para compreender e justificar a desigualdade social. (LOURO, 1997, p. 20-21). Segundo Louro, o gênero emerge no feminismo como um conceito que assinala as construções sociais, sendo estas de caráter plural e não universal, de homens e mulheres. A pluralidade está justamente no fato do gênero, manter, como enfatiza a autora, relações com outras categorias, como exemplo, a raça, a nacionalidade, a etnia, a classe, a sexualidade etc. Portanto, serão justamente as relações existentes entre essas categorias que darão certas peculiaridades aos sujeitos, tornando-os parte de grupos sociais que se constituirão de maneira diferente um dos outros. Além disso, não podemos deixar de assinalar, como lembra Louro, que as diversas instituições, como a escola, a família, a política, a mídia etc, também constroem os sujeitos nas suas particularidades, do mesmo modo que, igualmente, são compostas por estes. A apresentação da historicidade dos conceitos de sexualidade e gênero, além de exibir uma gama de possibilidades destoantes da norma heterossexual assinala o cruzamento dessas duas categorias, já que [...] são interdependentes, ou seja, afetam umas às outras. (LOURO, 1997, p.49).

Vai ser justamente diante desses pressupostos, que se ligam e se modificam simultaneamente, que os sujeitos deste trabalho irão aparecer. 4 O caminho metodológico: em busca do curso de Pedagogia e do grupo de alunas já professoras A opção pelo estudo da graduação em Pedagogia e por seus/as alunos/as, composta majoritariamente por mulheres 3, está no fato de que esse curso forma profissionais diretamente envolvidos/as na esfera que engloba a escola e os processos de ensino e aprendizagem. Além disso, a Pedagogia promove o contato direto e cotidiano entre o/a educador/a e do/a educando/a já que é [...] um campo de valores com os meios de colocá-los em ação, ou um campo de práticas ordenadas para determinados fins (CHARLOT, 2006, p. 12). Neste contexto, postulamos que esses valores não se encontram somente no âmbito dos conteúdos a serem ensinados na escola, mas também no que tange as concepções que os/as professores/as carregam ao longo de suas vidas. Como estamos focando as concepções de sexualidade, pela perspectiva do conceito de gênero, de um grupo de professoras ainda em formação, torna-se viável conhecermos o que pensam sobre sexualidade justamente porque participam do processo educativo de crianças e adolescentes. E mais, não podemos deixar de mencionar que suas concepções de sexualidade também irão revelar a maneira como se posicionam enquanto mulheres, o que, de certa forma, não deixa de representar modelos para aqueles/as que educam. Assim, [...] as formas adequadas de fazer, de meninos e meninas, homens e mulheres ajustados/as aos padrões das comunidades pressupõem uma atenção redobrada sobre aqueles e aquelas que serão seus formadores e formadoras. (LOURO, 1997, p. 106). O contexto em que se desenvolvem nossos questionamentos é o curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara, instituição em que encontramos os sujeitos desta pesquisa 4. Este curso tem sua origem em 1959 e desta época até nossos dias atuais passou por diversas reestruturações curriculares. No entanto, nos deteremos no currículo, mais especificamente a descrição dos programas das disciplinas, das alunas que estavam no quarto ano em 2007 5. Devemos ressaltar que optamos pelas alunas de Pedagogia do quarto ano, pois partimos do pressuposto de que estas já estão mais maduras em relação ao curso, uma vez que já passaram pela maior parte deste. Além disso, são justamente as alunas dos últimos anos que se encontram empregadas, requisito que estipulamos para selecionar os sujeitos. Após obtermos os programas das disciplinas para conhecermos os princípios, objetivos e estrutura do curso de Pedagogia, partimos para o mapeamento no intuito de detectar quantas alunas,

5 do diurno e do noturno, já trabalhavam na educação escolar. Essas alunas foram encontradas no período noturno e compunham um grupo de sete mulheres, as quais duas lecionavam na educação infantil e cinco no ensino fundamental. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, utilizamos a entrevista semi-estruturada, na qual o roteiro é mais flexível, permitindo ao/à pesquisador/a intervir na conversa, como maneira de esclarecer os pontos que deseja (LUDKE; ANDRÉ, 1986). Eis então algumas evidências. As primeiras evidências e um breve comentário para além destas O contato com os sujeitos através das entrevistas foi fundamental para o conhecimento dessas professoras ainda em formação. Devemos destacar que todas foram solicitas em nos ceder a entrevista, conversas que tiveram momentos de risos, choros, desabafos, timidez, segredos, indignações, sonhos, incertezas, recordações do passado, magoas, reflexões etc. Por meio da entrevista, pudemos retificar que a faixa etária dessas mulheres gira em torno dos vinte aos trinta anos, sendo que uma tem quarenta e quatro anos. Possuem pouca experiência profissional e lecionam tanto na rede pública, como na municipal e particular de Araraquara e região. As alunas transitam entre as classes sociais média e média baixa e cursaram tanto escolas públicas, como particulares. Assumem que gostam de estudar e a opção pelo magistério carrega fortes influências, seja da mãe, de uma tia, de uma professora ou de uma amiga. No entanto, sabem das dificuldades de ministrar aulas e deixam bem claro que a função de uma professora é ensinar, fazer com os/as alunos/as aprendam, e não desempenhar o papel de segunda mãe, embora em alguns momentos assumam a posição materna, como por exemplo, no cuidado de crianças pequenas. As professoras contam suas histórias de vida, destacando que apesar de tirarem dúvidas sexuais com a mãe, irmãs, primas, o sexo continuava sendo um assunto pouco discutido e, ao mesmo tempo, velado dentro de suas casas. O casamento dos pais é visto por cinco delas como uma união perfeita e modelo a seguir, enquanto que para duas, a separação destes causou muito sofrimento e afastamento, principalmente, do pai. Porém, a maior parte do grupo, exceto uma que já foi casada, almeja o casamento e o nascimento de filhos/as. Como a sexualidade foi pouco discutida em suas famílias e no período em que freqüentavam a escola, essas mulheres afirmam ter buscado informações sobre sexo fora da instituição familiar e escolar, ou seja, com amigas e também com namorados. Admitem que o tema sexualidade aparece em suas salas de aula, mas sentem dificuldades em trabalhá-lo. Algumas relatam que quando as crianças perguntam sobre sexo tentam mudar de assunto, em outros casos chamam um profissional,

6 geralmente, da área da saúde, para sanar as dúvidas ou então trabalham o tema nas aulas de ciências e educação física. É unânime entre as professoras a aceitação da orientação sexual na escola, porém algumas reforçam que não é função só da instituição escolar auxiliar as crianças e adolescentes, cabendo aos pais também ajudá-los, sobretudo, em questões que envolvem decisões, como exemplo, o início da vida sexual. Além disso, afirmam que a orientação sexual poderia ajudar na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e a melhorar o comportamento de meninos e meninas, principalmente as meninas, a se comportarem em sala de aula. Segundo as professoras, as meninas são mais atrevidas sexualmente que os meninos, ou então, às vezes, se comportam como estes em relação à indisciplina, o que as professoras não vêem com bons olhos. Também devemos destacar que em algumas falas presenciamos o preconceito, que não admitem, de algumas professoras sobre a questão da homossexualidade. Tal juízo de valor pode ser encontrado em comentários do tipo são pessoas infelizes e não foi uma coisa que foi criada por Deus. A falta de instrução para trabalhar o tema sexualidade na escola recai na necessidade de preparar o/a professor/a para esta tarefa, o que é enfatizado pelas alunas, mas que não se encontra em seu currículo de Pedagogia. Pela descrição dos conteúdos das disciplinas obrigatórias, sejam estas referentes à Formação geral, ou nos eixos Formação de professores para as séries iniciais do ensino fundamental e Formação de professores em educação especial, não encontramos em suas ementas temas que contemplem a sexualidade e as relações de gênero na escola. Em algumas disciplinas observamos discussões acerca da família, da história das mulheres e da docência, dos PCNs, no entanto, nada que trate, especificamente, da sexualidade, teorias sobre esta e maneiras de trabalhá-la pedagogicamente em sala de aula. Diante dessas primeiras evidências, podemos constatar que a falta de preparo para que essas professoras possam trabalhar com a sexualidade em sala de aula as levam à insegurança de tratar do tema, bem como a equívocos quando se pronunciam a respeito deste. Tal prerrogativa concretiza-se quando, por exemplo, preferem fugir do assunto quando os/as alunos/as perguntam sobre sexualidade, dando a subtender que é um assunto proibido, ou quando optam por discutir as questões sexuais em aulas de educação física e ciências, o que remete à idéia de que a sexualidade é essencialmente biológica e está voltada para a prevenção de doenças sexuais e reprodução humana. Além disso, submersas em uma estrutura que atesta ao feminino uma posição passiva, essas professoras não conseguem aceitar os comportamentos de não passividade de suas alunas, julgandoas de maneira depreciativa diante da norma que atesta fragilidade às mulheres. Em contrapartida, os discursos dessas professoras revelam que comportamentos considerados ativos e até mesmo instintivos à sexualidade são considerados normais aos meninos.

7 Portanto, são diante dessas primeiras evidências que corroboramos a importância de inclusão de disciplinas referentes á sexualidade e relações de gênero já na formação inicial dos/as professores/as. Essa iniciativa consiste na recuperação da sexualidade, enquanto lócus de prazer e vida, desses indivíduos, como também uma maneira de lhes subsidiar teoricamente e pedagogicamente para o trabalho de sexualidade em sala de aula que vá para além da idéia de instância biológica e de prevenção de doenças e gravidez. Referências CHARLOT, B. A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e desafios: especificidades e desafios de uma área de saber. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.11, n.31, p. 07-18, jan./abr, 2006. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988. GERT, H. Uma história da sexologia: aspectos sociais e históricos da sexualidade. In: BREMMER, J. (org.). De Safo a Sade. Momentos na história da sexualidade. Tradução de Cid Knipel Moreira. Campinas: Papirus, 1995, p. 237-263. HOOKS, B. Eros, erotismo e o processo pedagógico. In: LOURO, G. L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 113-123. LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Rio de janeiro: Vozes, 1997. LUDKE. M; ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. RIBEIRO, P. R. M. Educação sexual além da informação. São Paulo: E.P.U., 1990. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n 2, p.05-19, jul./dez., 1995. WEEKS, J. O corpo e sexualidade. In: LOURO, G.L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 37-82. 1 O tema transversal Orientação Sexual encontra-se no Volume 10, juntamente com a Pluralidade Cultural, outro tema que também é enfatizado pelos PCNs. Ao utilizar o termo Orientação Sexual, estamos remetendo-nos, como afirma Ribeiro (1990, p.3-4) a [...] uma intervenção institucionalizada, sistemática, organizada e localizada, com a participação de profissionais treinados para este trabalho.. 2 Ao fazer uso da palavra essencialista, estamos nos referindo à abordagem que Jeffrey Weeks (2000, p. 43) denomina como essencialismo, ou seja, [...] é o ponto de vista que tenta explicar as propriedades de um todo complexo por referência a uma suposta verdade ou essência interior. Essa abordagem reduz a complexidade do mundo à suposta simplicidade imaginada de suas partes constituintes e procura os indivíduos como produtos automáticos de impulsos internos. 3 Essa afirmação, do grande número de mulheres no curso de pedagogia, encontra respaldo no dado que obtivemos pela Seção de Graduação da FCLAR, o qual evidencia a maciça presença das mulheres no 1º, 2º, 3º e 4º ano de pedagogia, entre os anos de 2001 a 2005. Além disso, a literatura acadêmica que trabalha com a história da docência sempre

8 atestou uma significativa parcela de mulheres no magistério. Sobre a presença das mulheres no magistério consultar ALMEIDA, J. S. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo: EDUNESP, 1998. 4 A escolha pelo curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara está no fato de que é nessa unidade da UNESP que desenvolvemos nosso estudo de sexualidade. Para informações sobre nosso grupo de pesquisa, o Núcleo de Estudos da Sexualidade (NUSEX), acessar: www.fclar.unesp.br/nucleos/nusex.php 5 Este currículo está inserido na reestruturação do curso de pedagogia da FCLAR que se encontra na ementa curricular do processo de número 342/09/1989 (Volume IX).