Capítulo 5 Representação grande canônica 5.1 Introdução Distribuição de probabilidades Vimos no Capítulo 1 que um sistema constituído por partículas que interagem por meio de forças conservativas em contato com um reservatório térmico é descrito pela distribuição de probabilidades canônica. O número de partículas foi implicitamente tomado como sendo constante. Desejamos aqui determinar a distribuição de probabilidades de um sistema tal que o número de partículas seja flutuante. Para isso imaginamos que o sistema esteja em contato com um reservatório com o qual possa trocar partículas além de estar em contato com um reservatório térmico. O sistema encontrase em equilíbrio com os reservatórios o que significa que a energia e o número de partículas flutuam em torno de valores médios que permanecem constantes ao longo do tempo. Nessas condições admitimos como princípio fundamental que a probabilidade de encontrar o sistem no estado r com energia E r e n r partículas é dada por P r = 1 Ξ e βer+βµnr, (5.1) em que Ξ é uma constante de normalização. O parâmetro β é inversamente proporcional à temperatura T, como veremos mais adiante, e µ é um 87
88 5 Representação grande canônica parâmetro que denominamos potencial químico. A distribuição de probabilidades (5.1) é denominada distribuição grande canônica de Gibbs. Ela está escrita em termos de variáveis discretas mas pode ser estendida para o caso contínuo, como fizemos com a distribuição canônica. A partir da normalização obtém-se para Ξ a expressão P r = 1, (5.2) r Ξ = r e βer+βµnr (5.3) denominada função de partição grande canônica. A função de partição grande canônica pode ser escrita da seguinte maneira Ξ = e βer e βµn, (5.4) n r(n) em que a segunda somatória se estende somente aos estados r correspondentes a n partículas. Essa soma por outro lado se identifica com a função de partição canônica Z n correspondente a um sistema de n partículas e portanto Ξ = n Z n e βµn. (5.5) Entropia A entropia S de um sistema descrito pela representação grande canônica é definida de forma análoga aquela que fizemos no caso da representação canônica. Ela é definida por S = k B P r ln P r. (5.6) A partir dela devemos mostrar a seguinte relação termodinâmica r (U µn) = T, (5.7) S
5.1 Introdução 89 em que T é a temperatura do sistema, U é a energia interna e N é o número de partículas, entendidos como valores médios. Para isso, começamos por escrever a expressão para energia média U = E r = r E r P r (5.8) e para o número médio de partículas N = n r = r n r P r. (5.9) Derivando a expressão de S em relação a β, obtemos S β = k Bβ r (E r µn r ) P r β (5.10) em que utilizamos a equação (5.1) e levamos em conta que P r está normalizado. Como as derivadas das expressões de U e N em relação a β são dadas por concluímos que Desse resultado obtemos U β = β r N β = β r E r P r β, (5.11) n r P r β, (5.12) S β = k Bβ (U µn). (5.13) β 1 (U µn) = S k B β (5.14) da qual segue a relação (5.7) desde que β = 1/k B T, isto é, desde que o parâmetro β seja inversamente proporcional à temperatura. Vale notar que U µn pode ser obtido diretamente da função de partição grande canonica Ξ. Derivando ambos os lados de (5.3) relativamente a β, obtemos Ξ β = r ( E r + µn r )e βer+βµnr (5.15)
90 5 Representação grande canônica Dividindo por Ξ e utilizando (5.1) alcançamos o resultado ou seja β ln Ξ = E r + µ n r (5.16) U µn = ln Ξ, (5.17) β que também permite obter U a partir de Ξ uma vez que se conheça N. Utilizando o resultado ln P r = βe r + βµn r ln Ξ, (5.18) obtido de (5.1), na definição de entropia (5.6), obtemos do qual segue-se que S = k B (β E r βµ n r + ln Ξ (5.19) k B T ln Ξ = U µn T S. (5.20) Tendo em vista que o grande potencial termodinâmico Φ coincide com o lado direito dessa equação, isto é, Φ = U µn T S, obtemos a seguinte relação entre o potencial termodinâmico Φ e função de partição grande canônica Φ = k B T ln Ξ. (5.21) A partir de Φ, podemos obter S e N por meio de S = Φ T, N = Φ µ. (5.22) A primeira se demonstra derivando (5.21) em relação a T e utilizando os resultados (5.17) e (5.20). Para demonstrar a segunda, basta derivar (5.21) em relação a µ e utilizar (5.3) e (5.12). 5.2 Distribuições quânticas Número de ocupação Examinamos aqui um sistema de partículas idênticas sob o ponto de vista da mecânica quântica. Consideramos n partículas do mesmo tipo fracamente
5.2 Distribuições quânticas 91 interagentes confinadas num recipiente de volume V. Cada partícula se encontra em um determinado orbital, Por orbital denominamos simplesmente os estados de uma única partícula, isto é, os estados que uma partícula pode assumir quando colocada isoladamente no recipiente. Os orbitais são considerados discretos e rotulados com os números inteiros 0, 1, 2,... Tendo em vista que as partículas são do mesmo tipo, os orbitais são os mesmos para todas as partículas. Denotamos por ε 0, ε 1, ε 2,..., as energias dos orbitais. Os números de partículas nos orbitais 0, 1, 2,..., ou números de ocupação, são denotados por n 0, n 1, n 2,... de modo que o número total de partículas n é dado por n = n 0 + n 1 + n 2 +... (5.23) Como as partículas são fracamente interagentes, a energia total E do sistema correspondente a essa partição vale E = ε 0 n 0 + ε 1 n 1 + ε 2 n 2 +... (5.24) A função de partição canônica se escreve Z n = e β (ε 0n 0 +ε 1 n 1 +ε 2 n 2 +...), (5.25) n 0,n 1,...{n 0 +n 1 +...=n} em que o somatório não é irrestrito, mas estende-se apenas sobre n 0, n 1,... tais que n 0 + n 1 +... = n. É conveniente em seguida usar um descrição do sistema tal que o número de partículas seja flutuante. De acordo com essa descrição as propriedades termodinâmicas são determinadas por meio da função de partição grande canônica, definida por (5.3) e equivalente a (5.5). Substituindo a expressão (5.25) para Z n em (5.5) e lembrando que n = n 0 + n 1 +..., obtemos Ξ = e β (ε 0n 0 +ε 1 n 1 +ε 2 n 2 +...) e βµ(n 0+n 1 +n 2 +...), (5.26) n 0,n 1,... em que a soma em n 0, n 1,..., agora torna-se irrestrita. Portanto, Ξ =... e β [(ε0 µ)n0+(ε1 µ)n1+(ε2 µ)n2+...], (5.27) n 0 n 1 ou ainda Ξ = s n s e β(εs µ)ns. (5.28)
92 5 Representação grande canônica A distribuição de probabilidades grande canônica P (n 0, n 1,...) é dada por P (n 0, n 1,...) = 1 e β(εs µ)ns (5.29) Ξ e é interpretada como a probabilidade de haver n 0 partículas no orbital 0, n 1 partículas no orbital 1, etc. A probabilidade de haver n s partículas no orbital s independentemente das outras ocupações é dada por s P s (n s ) = 1 ξ s e β(εs µ)ns, (5.30) em que ξ s = n s e β(εs µ)ns. (5.31) Os números de ocupação n s são portanto variáveis aleatórias independentes pois P (n 0, n 1,...) = P s (n s ). (5.32) s Notar que a função de partição grande canônica se fatoriza de acordo com Ξ = s ξ s. (5.33) Distribuições de Bose-Einstein e Fermi-Dirac As partículas são classificadas em dois tipos quanto ao número de ocupação de um orbital. Os férmions são as partículas que seguem o princípio de exclusão de Pauli segundo o qual um orbital pode ser ocupada por apenas uma partícula. Isso significa que o número de ocupação assume apenas os números 0 e 1, isto é, n s = 0, 1. Os bósons são partículas que podem ocupar um orbital com qualquer número, isto é, n s = 0, 1, 2,.... Utilizando o ensemble grande canônico, em que a temperatura T e o potecial químico µ são mantidos fixos, vimos que a probabilidade P s (n s ) de um orbital s estar ocupado por n s partículas é dada por (5.30). Portanto, o número médio de ocupação n s é dado por n s = n s P s (n s ) = 1 n s e β(εs µ)ns = 1 ξ n s β µ ln ξ s. (5.34) s n s
5.2 Distribuições quânticas 93 Para férmions, de modo que ou seja ξ s = 1 e β(εs µ)ns = 1 + e β(εs µ), (5.35) n s=0 n s = e β(εs µ), (5.36) 1 + e β(εs µ) n s = que é a distribuição de Fermi-Dirac. Para bósons, 1 e β(εs µ) + 1, (5.37) ξ s = e β(εs µ)ns = n s=0 1, (5.38) 1 e β(εs µ) em que µ < ε para que a soma seja convergente. Portanto ou seja n s = e β(εs µ), (5.39) 1 e β(εs µ) n s = que é a distribuição de Bose-Einstein. Propriedades termodinâmicas 1 e β(εs µ) 1, (5.40) O grande potencial termodinâmico Φ correspondente a um sistema de partículas indistinguíveis confinadas num recipiente de volume V, em equilíbrio com um reservatório térmico à temperatura T e um reservatório de partículas com potencial químico µ, é obtido a partir da função de partição grande canônica Ξ, por meio de Φ = k B T ln Ξ (5.41) ou, utilizando (5.33), Φ = k B T s ln ξ s. (5.42)
94 5 Representação grande canônica Vamos mostrar em seguida que o grande potencial termodinâmico e as propriedades termodinâmicas podem ser determinadas a partir da ocupação média n s. Para isso determinamos inicialmente a relação entre ξ s e n s. Para férmions, as relações (5.35) e (5.37) nos conduzem ao resultado ξ s = (1 n s ) 1 (5.43) e para bósons, as relações (5.38) e (5.40) nos conduzem ao resultado Ambos os resultados podem ser escritos como ξ s = 1 + n s. (5.44) ξ s = (1 ± n s ) ±1, (5.45) com a convenção de que para bósons vale o sinal superior e para férmions o sinal inferior. Substituindo esse resultado em (5.42), obtemos a seguinte expressão para o grande potencial termodinâmico em termos do número de ocupação médio, Φ = k B T ln(1 ± n s ). (5.46) s Com a mesma convenção, o número médio de ocupação pode ser escrito como 1 n s = e β(εs µ) 1. (5.47) O número total médio de partículas N = n e a energia total média U = E podem ser obtidos por meio das fórmulas (5.22) e (5.17). Equivalentemente, essas grandezas podem ser obtidas tomando a média de ambos os lados das equações (5.23) e (5.24), isto é, N = s n s, (5.48) U = s ε s n s. (5.49) A entropia pode ser determinada a partir de S = Φ/ T. Entretanto, preferimos utilizar a definição (5.6) que, para o presente caso, se escreve como S = k B P s (n s ) ln P s (n s ) = k B {β(ε µ) n s + ln ξ s }. (5.50) n s s
5.3 Limite clássico 95 Utilizando os resultados (5.45) e (5.47), obtemos a seguinte expressão para a entropia em termos do número médio de ocupação S = k B {( n s ± 1) ln(1 ± n s ) n s ln n s }, (5.51) s com a convenção de que o sinal superior é válido para bósons e o sinal inferior para férmions. 5.3 Limite clássico Número de ocupação O limite clássico é obtido quando o número de ocupação médio é muito pequeno comparado com a unidade. As distribuições de Bose-Einstein e Fermi-Dirac se reduzem à mesma expressão, a partir da qual obtemos n s = e β(εs µ), (5.52) ln ξ s = n s = e β(εs µ) (5.53) e portanto ln Ξ = e βµ s e βεs (5.54) Mas o somatório é a função de partição correspondente a uma partícula ζ = s e βεs (5.55) e alcançamos a expressão Desse resultado, vemos que Ξ = exp{ζe βµ } = ln Ξ = ζe βµ. (5.56) n=0 ζ n n! eβµn, (5.57) que, quando comparado com (5.5), nos leva a concluir que a função de partição canônica é dada por Z n = 1 n! ζn. (5.58)
96 5 Representação grande canônica que justifica a introdução do fator 1/n! na função de partição (2.13). Em seguida mostramos que no limite clássico a função de partição molecular ζ, relativa aos graus de translação, se reduz a integral (2.9). Para isso, consideramos uma particula livre confinada num recipiente cúbico de volume L 3 = V e condições periódicas de contorno. Ela possui apenas energia cinética, de modo que a equação de Schrödinger independente do tempo para a função de onda ψ é dada por 2 2m 2 ψ = εψ, (5.59) em que m é a massa da partícula, = h/2π sendo h a constante de Planck e ε é o autovalor da energia do elétron. As autofunções são dadas por e os autovalores por ψ(x, y, z) = 1 V e i(kxx+kyy+kzz) (5.60) ε k = 2 k 2 2m. (5.61) Os possíveis valores do vetor de onda k = (k x, k y, k z ) são determinados pelas condições de contorno que adotamos como sendo periódicas. Para satisfazer essas condições devemos impor que ψ(x + L, y, z) = ψ(x, y, z), ψ(x, y + L, z) = ψ(x, y, z) e ψ(x, y, z + L) = ψ(x, y, z), que resulta em e ikxl = 1, e ikyl = 1, e ikzl = 1, (5.62) que são satisfeitas se os componentes cartesianos k forem da forma com n 1, n 2, n 3 = 0, ±1, ±2,.... Substituindo em (5.55), k x = 2π L n 1, k y = 2π L n 2, k z = 2π L n 3, (5.63) ζ = k e β 2 k 2 /2m (5.64) em que a soma em k significa a soma em n 1, n 2 e n 3. Para V suficientemente grande podemos a soma se torna uma integral em ζ = V e β 2 k 2 /2m dk 1dk 2 dk 3 (2π) 3 (5.65)
5.3 Limite clássico 97 Fazendo a transformação de variáveis de integração, p = k = h k/2π, obtemos ζ = V e βp2 /2m dp 1dp 2 dp 3 h 3 (5.66) o que justifica a introdução da constante de Planck na função de partição clássica (2.9). Gás ideal clássico A partir do resultado (5.56), vemos que o grande potendial thermodinâmico Φ = k B T ln Ξ é dado por Φ = k B T ζe βµ. (5.67) a partir do qual obtemo o número médio de moléculas N = Φ/ µ, N = ζe βµ. (5.68) A energia interna U é obtida a partir de (5.17). Usando essa equação e o resultado (5.68), obtemos a seguinte expressão para a energia interna Usando novamente o resultado (5.68), obtemos βµ ζ U = e β. (5.69) U = N ln ζ, (5.70) β que é idêntica à fórmula para a obtenção da energia de acordo com a representação canônica. Vimos no capítulo 2 que a função de partição molecular ζ é dada por ζ = ζ trans ζ int, (5.71) em que ζ trans é a função de partição relativa aos graus de liberdade de translação, dado por (5.42), e que vale ζ trans = V λ 3, (5.72)
98 5 Representação grande canônica em que Assim, podemos escrever λ = ( h 2 ) 1/2 β. (5.73) 2πm ζ = V λ 3 ζ int, (5.74) em que λ e ζ int dependem apenas da temperatura. Usando esse resultado em (5.67), alcançamos o grande potencial Φ = V k BT λ 3 ζ inte βµ (5.75) a partir do qual obtemos o número médio de partículas, e a pressão, N = V λ 3 ζ inte βµ, (5.76) p = k BT λ 3 ζ inte βµ. (5.77) Dessas dois resultados obtemos a equação de estado de um gás ideal clássico pv = Nk B T. Os resultados acima devem ser entedidos como sendo válidos para de um gás de moléculas confinadas num recipiente de volume V, à temperatura T, em que apenas a parte da hamiltoniana relativa aos graus de liberdade de translação foram tratados classicamente. A função de partição ζ int pode ser tratada do ponto de vista clássico ou quântico, como fizemos anteriormente no capítulo 2.