Abreviação do jejum: aspectos clínicos perioperatórios de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca

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Artigo Original Abreviação do jejum em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca Abreviação do jejum: aspectos clínicos perioperatórios de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca Reduced preoperative fasting time: the perioperative clinical aspects related to cardiac surgical patients Monalisa Marcarini 1 Sara Cardoso da Rosa 2 Flávia Porto Wieck 3 Andresa Heemann Betti 4 Unitermos: Cirurgia Cardíaca. Jejum. Metabolismo. Keywords: Cardiac Surgery. Fasting. Metabolism. Endereço para correspondência: Monalisa Marcarini Avenida Veneza, 142 Bairro Medianeira Farroupilha, RS, Brasil CEP: 95180-000. E-mail: marc.mona@hotmail.com Submissão: 2 de abril de 2017 Aceito para publicação: 14 de junho de 2017 RESUMO Introdução: A cirurgia cardíaca é realizada quando a probabilidade de uma vida útil de um paciente é maior com o tratamento cirúrgico do que com o clínico. Na cirurgia ocorre a resposta metabólica ao trauma, que é potencializada pelo jejum pré-operatório prolongado. O objetivo deste estudo foi analisar o comportamento dos pacientes submetidos à cirurgia cardíaca com abreviação do jejum pré-operatório a partir da administração de suplemento nutricional oral com carboidratos e proteínas. Método: Realizada uma pesquisa do tipo estudo de caso na Unidade de Terapia Intensiva Adulta de um Hospital Público da região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Os casos analisados foram de pacientes que realizaram abreviação de jejum pré-operatório de cirurgia cardíaca, no período de outubro a novembro de 2015. Resultados: Avaliados três pacientes, do sexo masculino, com idade entre 47 e 73 anos, que realizaram cirurgia cardíaca com abreviação do jejum pré-operatório três horas antes da cirurgia com suplemento nutricional com carboidrato e proteína, isento de lipídeos e fibras. Dois pacientes apresentaram complicações pós-operatórias, não relacionadas à abreviação do jejum. A média da glicemia capilar pós-operatória foi de 112 mg/dl. Não houve casos de broncoaspiração, náuseas ou vômitos. O tempo médio de internação hospitalar foi de 7,8 dias. Conclusão: A abreviação do jejum pré-operatório em cirurgia cardíaca é relevante para melhorar o desfecho do paciente cirúrgico, em função da melhoria do perfil glicêmico, redução da resposta metabólica ao trauma, maior satisfação do paciente, menor tempo de internação hospitalar e consequente redução dos custos. ABSTRACT Introduction: Cardiac surgery is performed when the likelihood of life span of a patient is higher with surgery than with medical treatment. During surgery, the metabolic response to trauma takes place, which is enhanced by prolonged preoperative fasting. The objective of this study was to analyze the behavior of patients undergoing cardiac surgery with abbreviation of preoperative fasting from oral nutritional supplement administration with carbohydrates and protein. Methods: We conducted a case study research at the Adult Intensive Care Unit (ICU) of a public hospital located in the metropolitan area of Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil. We analyzed cases from patients undergoing reduced preoperative fasting time prior to cardiac surgery during the months of October and November 2015. Results: We evaluated three male patients, aged 47 to 73 years old. Three hours prior to surgery they were given a carbohydrate and protein enriched nutritional supplement, which was lipid and fiber free. Two of the patients had postoperative complications unrelated to the reduced fasting time. The average postoperative blood glucose was 112 mg/dl. There were no cases of pulmonary aspiration, nausea, or vomiting. The average hospital stay was 7.8 days. Conclusion: The reduction of preoperative fasting time in cardiac surgery appears to improve the outcome of surgical patients. This is shown here by the improved glucose profiles; reduced metabolic response to trauma; patient satisfaction; shorter hospital stay; and cost reduction observed. 1. Nutricionista com especialização em Urgência e Trauma pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade Feevale. Mestranda em Ciências Médicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Novo Hamburgo, RS, Brasil. 2. Nutricionista com especialização em Urgência e Trauma pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade Feevale. Mestranda em Ciências Médicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Novo Hamburgo, RS, Brasil. 3. Nutricionista, especialista em Nutrição Clínica pela Universidade do Vale dos Sinos, Mestre em Gerontologia Biomédica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Novo Hamburgo, RS, Brasil. 4. PhD em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da Universidade Feevale, atuando na Graduação, extensão, Residência Multiprofissional em Saúde e Mestrado Acadêmico em Toxicologia e Análises Toxicológicas, Novo Hamburgo, RS, Brasil. 375

Marcarini M et al. INTRODUÇÃO A cirurgia cardíaca é realizada quando a probabilidade de uma vida útil de um determinado paciente é maior com o tratamento cirúrgico do que com o tratamento clínico. Existem três tipos de cirurgia cardíaca: as corretoras (fechamento de canal arterial, de defeito de septo atrial e ventricular), as reconstrutoras (revascularização do miocárdio, plastia de valva aórtica, mitral ou tricúspide) e as substitutivas (trocas valvares e transplantes) 1. Com o procedimento cirúrgico, ocorre alteração do metabolismo basal, que é medida por citocinas pró-inflamatórias, hormônios contrarreguladores, tais como glucagon, catecolaminas, cortisol, entre outros mediadores, chamada de resposta metabólica ao trauma cirúrgico 2. Esta resposta é potencializada pelo jejum pré-operatório prolongado. Após algumas horas de jejum, ocorre a diminuição dos níveis de insulina e, em contrapartida, há aumento dos níveis de glucagon, determinando uma utilização rápida da pequena reserva de glicogênio (cerca de 400g em um indivíduo adulto), que se encontra em maior parte no fígado; além de uma maior produção de mediadores inflamatórios. Em menos de 24 horas de jejum, o glicogênio hepático é totalmente consumido. Porém, a gliconeogênese é ativada e a proteína muscular passa a ser utilizada, provendo glicose para os tecidos que dependem exclusivamente dela como fonte de energia 3. No procedimento cirúrgico, o jejum noturno pré-operatório foi instituído quando técnicas anestésicas tinham o objetivo de garantir o esvaziamento do estômago e evitar broncoaspiração no momento da indução, prevenindo as complicações pulmonares associadas a aspirações do conteúdo gástrico 4. Atualmente, as recomendações para o jejum pré-operatório vêm sendo modificadas pelas principais sociedades de anestesia do mundo, que recomendam a ingestão de solução oral enriquecida com carboidratos (CHO), duas a três horas antes do procedimento cirúrgico 5-7. Esta técnica está sendo vista como um dos fatores benéficos para diminuir a resposta orgânica, a resistência insulínica, o estresse cirúrgico e, ainda, melhorar o bemestar do paciente 8, demonstrando ser segura e essencial para a recuperação mais rápida do trauma cirúrgico. Atualmente, existem projetos que foram implementados com o objetivo de diminuir as complicações cirúrgicas e melhorar as técnicas perioperatórias, minimizando o estresse imposto pela operação. O Enhanced Recovery After Surgery (ERAS) é um projeto multicêntrico que foi recentemente desenvolvido e implementado em países europeus, sendo criado com base em muitos estudos apoiados pela prática da medicina em evidências 9. No Brasil, em 2005, foi implantado um projeto inspirado nas condutas do ERAS, chamado de ACERTO, ou Aceleração da Recuperação Total Pós-Operatória. Consiste em um programa multidisciplinar que envolve os serviços de cirurgia geral, anestesia, nutrição, enfermagem e fisioterapia e que estabelece um conjunto de cuidados perioperatórios visando melhorar a recuperação do paciente cirúrgico. Dentre as principais condutas preconizadas pelo projeto ACERTO estão: avaliação e terapia nutricional perioperatórias, abreviação do jejum pré-operatório com oferta de líquidos contendo carboidratos, restrição de fluidos intravenosos, do uso de sondas e drenos, realimentação e mobilização precoce no pós-operatório 10. A partir das reflexões apresentadas este estudo teve como objetivo principal analisar o comportamento dos pacientes submetidos à cirurgia cardíaca com abreviação do jejum pré-operatório a partir da administração de suplemento nutricional oral com carboidratos e proteínas. MÉTODO Foi realizada uma pesquisa do tipo estudo de caso na Unidade de Terapia Intensiva Adulta de um Hospital Público da região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Os casos analisados consistiram nos pacientes acima de 18 anos e menores de 80 anos com indicação clínica de cirurgia cardíaca, que realizaram abreviação de jejum pré-operatório de cirurgia cardíaca, no período de outubro a novembro de 2015. Foram excluídos da coleta diabéticos, com história de doença de refluxo gastroesofágico e pacientes que internaram para reintervenção de cirurgia cardíaca. Ao final do período de coleta, apenas três pacientes se encaixaram nos critérios de inclusão. A pesquisa seguiu as normas da resolução CNS 196/96, sendo adotados os cuidados para garantir o sigilo e a preservação da identidade dos participantes, que assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A coleta de dados teve início após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Feevale, sob o número 48443415.9.0000.5348, e da direção do hospital. Foi realizado esclarecimento e orientação à equipe médica cirúrgica sobre a pesquisa a qual aprovou e autorizou a aplicação da mesma. Para assegurar a qualidade dos dados coletados, foi realizado o treinamento da equipe multiprofissional da UTI, a fim de capacitar os profissionais a realizar a abreviação do jejum pré-operatório com os pacientes que internaram para realizar a cirurgia cardíaca. A abreviação do jejum consistiu na administração oral de 200 ml de suplemento nutricional, contendo 89% de carboidrato e 11% de proteína do soro do leite, isenta de fibras e lipídios, três horas antes do procedimento cirúrgico. 376

Abreviação do jejum em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca A realimentação do paciente no pós-operatório aconteceu conforme a liberação médica do jejum, quatro horas após a retirada do tubo orotraqueal. RESULTADOS A Tabela 1 descreve os casos dos pacientes incluídos no estudo. Tabela 1 Descrição dos casos estudados. Caso 1 Caso 2 Caso 3 Sexo Masculino Masculino Masculino Idade 53 anos 72 anos 47 anos Comorbidades prévias HAS HAS HAS Dislipidemia Dislipidemia Dislipidemia Angina estável DPOC leve ICC Insuficiência aórtica Tipo de Cirurgia CRM Troca Valvar CRM Tempo de jejum 3h 3h 3h Aspiração Não apresentou Não apresentou Não apresentou Náuseas e Vômitos Não apresentou Não apresentou Não apresentou Realimentação após cirurgia Tempo de CEC 141 min 80 min 68 min Noradrenalina no pós-operatório - - 20 primeiras horas após retorno na UTI Glicemia internação 93 mg/dl 92 mg/dl 97 mg/dl Glicemia Pré-operatória 91 mg/dl 108 mg/dl 104 mg/dl Glicemia Perioperatória 69 mg/dl - 149 mg/dl Glicemia Pós-operatória 89 mg/dl 93 mg/dl 101 mg/dl Glicemia após 4h da cirurgia 126 mg/dl 188 mg/dl 104 mg/dl Glicemia após 6h da cirurgia 149 mg/dl 168 mg/dl 184 mg/dl Glicemia após 12h da cirurgia 115 mg/dl 153 mg/dl 173 mg/dl Glicemia da Alta 113 mg/dl 89 mg/dl 130 mg/dl Complicação Derrame pleural - Sangramento POI Tempo Internação 10 dias 6 dias 6 dias CEC=Circulação Extracorpórea; CRM=Cirurgia de Revascularização do Miocárdio; DPOC=doença pulmonar obstrutiva crônica; HAS=Hipertensão Arterial Sistêmica; POI=pós-operatório imediato; TOT=tubo orotraqueal. DISCUSSÃO A broncoaspiração durante a cirurgia é uma preocupação discutida durante anos, sendo o jejum pré-operatório prolongado, habitualmente entre seis e oito horas, uma prática aceita desde a introdução da anestesia, em 1840. Contudo, esta conduta tem sido questionada, pois parece não haver evidência de que a diminuição do período de jejum, com líquidos em comparação ao regime convencional, determine risco de aumento de aspiração pulmonar ou de morbidade relacionada com este evento 10. A abreviação do jejum pré-operatório mostrou-se segura nos pacientes avaliados, não havendo casos de broncoaspiração relacionados ao procedimento cirúrgico e à ingestão do suplemento nutricional. O resultado de outros trabalhos clínicos disponíveis na literatura tem demonstrado, cada vez mais, que a abreviação do jejum não aumenta o risco de aspiração durante as cirurgias 4,11,12. Considerando o jejum pré-operatório, um estudo chamado BIGFAST, realizado em 16 hospitais brasileiros, demonstrou que o tempo de jejum prescrito é prolongado por atrasos nas operações, remarcações e adiamentos. 377

Marcarini M et al. Essa pesquisa mostrou que, em cerca de 50% dos casos estudados, os pacientes são operados após 12h de jejum e, em cerca de 80%, com mais de 8 horas de jejum préoperatório. O mesmo estudo demonstrou ainda que a utilização de um protocolo de abreviação de jejum préoperatório com líquidos claros, duas a três horas antes da cirurgia, ainda é pouco utilizada nos hospitais brasileiros, sendo os pacientes expostos ao risco de longos períodos de jejum, especialmente nos hospitais com protocolos tradicionais 13. Ao analisar a resistência à insulina, observa-se que a mesma pode durar até três semanas após a realização de cirurgias eletivas, sendo proporcional ao porte da cirurgia e mais intensa no primeiro e segundo dia de pós-operatório 11. Na cirurgia cardiovascular, a hiperglicemia é fator independente de pior prognóstico, pois aumenta índices infecciosos, piora a cicatrização de feridas e leva ao aumento da morbimortalidade 11. Em outro estudo, realizado com 4864 pacientes submetidos à cirurgia cardíaca nos Estados Unidos, a hiperglicemia perioperatória foi associada com maiores taxas de mediastinite, maiores custos hospitalares e internação prolongada 14. Contudo, o benefício da abreviação do jejum pré-operatório com bebida contendo CHO foi evidenciado em estudo de Feguri et al. 11, que demonstrou melhor controle glicêmico pelos exames de glicemia capilar nas 6 primeiras horas de pós-operatório imediato (POI). Os mesmos autores ressaltam que, na cirurgia cardíaca, diferentemente de outras áreas da cirurgia geral, a resistência à insulina é uma manifestação presente, de difícil controle e, muitas vezes, exacerbada. Breuer et al. 15 realizaram um estudo com 160 pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, separados em três grupos, o primeiro grupo com abreviação do jejum com bebida contendo CHO, outro com abreviação do jejum com água e o último com jejum convencional. Os autores encontraram que a necessidade de insulina exógena para manter níveis glicêmicos inferiores a 180 mg/dl não diferiu entre os grupos, porém os pacientes que realizaram abreviação apresentaram menos sede e mais conforto no pré-operatório, além da necessidade de dobutamina ser menor no grupo CHO. Outro fator que está diretamente relacionado à resistência à insulina e à hiperglicemia nestas cirurgias é a circulação extracorpórea (CEC) 11. Esta técnica é utilizada em algumas cirurgias cardíacas, e consiste no uso de um equipamento que é responsável por receber o sangue pobre em oxigênio do paciente e retorná-lo oxigenado ao paciente. A CEC impõe ao organismo um número de alterações importantes com o desvio do sangue para um circuito artificial, como a mudança do regime do fluxo sanguíneo, possível aumento do gradiente de temperatura, estresse mecânico sobre os elementos figurados do sangue devido ao seu contato com superfícies não endoteliais, filtros, compressão, turbulências, entre outros 16. A cirurgia cardíaca pode levar a complicações pósoperatórias infecciosas, cardiovasculares, pulmonares, renais e neurológicas, que são responsáveis pelo maior tempo de internação e morbidade dos pacientes 17. Um dos pacientes apresentou como complicação pós-operatória derrame pleural no pulmão esquerdo, necessitando da colocação de um dreno de tórax. Este procedimento pode estar relacionado ao aumento do tempo de internação hospitalar. Segundo Soares et al. 17, a anestesia geral em pacientes parece reduzir a capacidade residual funcional pulmonar em cerca de 20%; a CEC prejudica a troca gasosa, e os pacientes cujas artérias mamárias são dissecadas apresentam um risco maior de derrame pleural, com subsequentes complicações pulmonares. Os mesmos autores evidenciaram prevalência de derrame pleural de 18% em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca. Outra complicação pós-operatória, que ocorreu com o terceiro caso, foi sangramento no dreno de mediastino, constatado na primeira hora da chegada do paciente à UTI, sendo necessário o retorno ao bloco cirúrgico para investigação da origem do mesmo. Segundo Soares et al. 17, o sangramento no pós-operatório é uma das complicações mais frequentes e necessita ser diferenciado quanto à sua etiologia: se ocorre devido a distúrbio de coagulação ou por hemostasia cirúrgica inadequada. A CEC causa uma série de alterações na hemostasia, devido à passagem do sangue por superfície não epitelizada. Outras causas seriam as reações transfusionais, trombocitopenia, coagulação intravascular disseminada e insuficiência hepática. O sangramento é tido como risco inerente ao procedimento cirúrgico de revascularização miocárdica, pois o bypass cardiopulmonar causa alteração nos sistemas de coagulação intrínseca e da função plaquetária 18. Analisando as complicações pós-operatórias encontradas nos pacientes estudados, constatou-se que não se relacionaram com a abreviação do jejum pré-operatório, mas sim com o próprio procedimento cirúrgico. Considerando o tempo de permanência hospitalar nas cirurgias cardíacas, Feguri et al. 11 avaliaram pacientes que realizaram CRM, com abreviação de jejum com água ou com bebida contendo maltodextrina a 12,5%. O grupo com abreviação por jejum com maltodextrina na bebida permaneceu em média por 7,8±1,4 dias, enquanto o outro grupo, com água, permaneceu em média por 9,7±3,1 dias. Os autores relacionaram este fato, em parte, pela menor necessidade do uso do inotrópico dobutamina nos pacientes com abreviação com maltodextrina na fase perioperatória, bem como pelo menor tempo de utilização do fármaco na UTI. 378

Abreviação do jejum em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca Assim como na literatura, os pacientes deste estudo tiveram média de permanência hospitalar de 7,3 dias, e a maior permanência foi encontrada no caso 1, que teve complicação no pós-operatório tardio. Os dados resultantes deste estudo de caso sugerem que a abreviação do jejum pré-operatório em cirurgia cardíaca pode ser segura, não ocasionando aspiração do conteúdo gástrico durante o perioperatório. Constata-se, ainda, a relevância da mesma para melhorar o desfecho do paciente cirúrgico, pela melhora do perfil glicêmico, redução da resposta metabólica ao trauma, maior satisfação do paciente, menor tempo de internação hospitalar e, consequentemente, redução dos custos hospitalares. Apesar disso, a implementação de um protocolo de abreviação com duas a três horas de jejum tem sido um dos maiores desafios atuais, pois mudar condutas conservadoras requer grandes mudanças nas rotinas do serviço, sendo necessário educar toda a equipe de saúde que realizará os cuidados do paciente durante a internação hospitalar, além do próprio paciente e dos seus familiares. Mais estudos sobre abreviação do jejum em cirurgias cardíacas se fazem necessários, a fim de divulgar os possíveis benefícios de seu uso aos pacientes que realizam o procedimento cirúrgico. REFERÊNCIAS 1. Galdeano LE, Rossi LA, Nobre LF, Ignacio DS. Diagnóstico de enfermagem de pacientes no período transoperatório de cirurgia cardíaca. Rev Latino Am Enferm. 2013;11(2):199-206. 2. Nascimento JEA, Campos AC, Borges A, Correia MITD, Tavares GM. Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral Associação Brasileira de Nutrologia. Projeto Diretrizes: Terapia Nutricional no Perioperatório. 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