CONSULTAS TERAPÊUTICAS COLETIVAS NA CLÍNICA DO SOCIAL: UMA EXPERIÊNCIA NO TRABALHO COM EDUCADORAS DE CRECHE
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- Baltazar Paixão Chaves
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1 Resumo CONSULTAS TERAPÊUTICAS COLETIVAS NA CLÍNICA DO SOCIAL: UMA EXPERIÊNCIA NO TRABALHO COM EDUCADORAS DE CRECHE Daniel Kauffmann 1 Tereza Marques de Oliveira 2 Vivian Marques 3 O objetivo deste trabalho é relatar uma experiência com Consultas Terapêuticas Coletivas, realizada com educadoras de uma creche situada numa favela da cidade de São Paulo. Fundamentados nas ideias de Winnicott, e em especial no modelo de Consultas Terapêuticas, novas possibilidades de atuar na clínica do social vêm se constituindo através do uso de enquadres diferenciados que se caracterizam pela utilização de procedimentos apresentativo expressivos. Buscamos trabalhar os preconceitos das educadoras que permeavam as interações com as crianças na rotina dos cuidados e nas atividades pedagógicas. Através de uma brincadeira baseada no Teste Desiderativo, solicitamos que associassem o nome de um animal à instituição na qual atuavam profissionalmente. Esse recurso permitiu conhecer o papel que a instituição vinha desempenhando na perpetuação das condições de miséria devido ao olhar dirigido às crianças. O procedimento revelou-se rico, tanto como possibilidade de espaço privilegiado de escuta às angústias vividas pelo grupo quanto como instrumento de diagnóstico, abrindo a possibilidade de repensar as práticas cotidianas do trabalho de cuidar. Palavras-Chave: Consultas Terapêuticas Coletivas, psico-profilaxia, exclusão social, clínica do social. Tendo como base a abrangência do referencial teórico winnicottiano, que se estende para diversos seguimentos além da clínica individual, pesquisadores contemporâneos com o qual nos identificamos vêm investigando a potencialidade mutativa e clínica de enquadres diferenciados, nomeados transicionais (Aiello Vaisberg, 2004; Oliveira, 2008). Esses enquadres fundamentam-se nos recursos propostos pelas Consultas Terapêuticas (Winnicott, 1965; 1971), tais como: Jogo do Rabisco (Winnicott, ) e atividade de desenho livre das crianças. 1 Mestre em Estudos de Observação Psicanalítica pela Tavistock Clinick & University of East london Londres; Neuropsicólogo pela UNIFESP, São Paulo; Membro Filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; Vice-Presidente e Coordenador da ONG HABITARE 2 Doutora pelo Instituto de Psicologia Clínica, USP - São Paulo; Presidente e Coordenadora da ONG HABITARE; Membro do Departamento de Psicanálise da Criança e do Espaço Potencial do Instituto Sedes Sapientiae São Paulo. 3 Psicóloga em Especialização em Psicologia Infantil pela UNIFESP São Paulo; Membro da ONG Habitare. 1
2 As Consultas Terapêuticas são caracterizadas por intervenções pontuais e breves, que consistem em uma experiência com começo, meio e fim. Esse procedimento clínico é caracterizado por Winnicott (1965; 1971) como um espaço de comunicação, de verdadeira mutualidade, em um tempo definido, tendo como base o brincar, entendido como momento em que a criatividade é ativada na presença do outro, como as expressões artísticas e culturais. Como o próprio Winnicott salientou, a Consulta Terapêutica constitui um potente instrumento clínico que permite ao psicanalista atender um grande número de pessoas que, de outra maneira, estariam impossibilitadas de se beneficiar desse recurso. A partir desse referencial, entendemos que a Consulta Terapêutica Coletiva ilustra uma modalidade dentro dos enquadres diferenciados transicionais. Aielo-Vaisberg (2004) vem desenvolvendo pesquisas interventivas de enquadres diferenciados, concluindo que, através deles, é possível abordar os fenômenos do sofrimento humano numa dimensão coletiva, adequada ao trabalho psicológico em instituições nas quais a exclusão social e indignidade provocam intenso sofrimento emocional. Trata-se, portanto, de uma clínica do coletivo, que tem em vistas transformar as práticas sociais muitas vezes perpetuadas pelo preconceito e indiferença, tornando assim primordiais ações tanto através de políticas sociais quanto intervenções de organizações que têm sua atenção voltada às perspectivas psico-profiláticas. Cabe salientar que, mesmo diante de condições extremas de miséria, a experiência tem mostrado que o alívio do sofrimento psíquico permite o resgate do self, fortalece a pessoa, devolve-lhe a capacidade de sonhar e oferece condições emocionais para buscar melhores condições de vida, reivindicando seus direitos de cidadão (Aiello- Vaisberg, 2005; Oliveira, 2008). Apresentamos a seguir o relato de uma Consulta Terapêutica Coletiva com educadoras de uma creche mantida por uma associação religiosa, localizada numa favela na região central 2
3 de São Paulo. Essa Consulta foi realizada como uma das intervenções em um trabalho mais amplo de assistência psicológica que desenvolvemos há mais de três anos junto a essa instituição 4. Essa creche está situada no coração de uma favela, sendo a única construção em alvenaria. As mais de 700 famílias que ali residem vivem em condições subumanas, não havendo saneamento básico. Sobrevivem de doações, bolsa família, sendo que alguns desenvolvem trabalhos informais. A favela apresenta problemas sociais como drogadição, violência, tráfico de drogas, etc. A creche atende 130 crianças de quatro meses a cinco anos de idade, tendo um quadro de funcionários composto por 18 pessoas: duas coordenadoras, doze educadoras e quatro auxiliares de limpeza ou cozinha. O horário de funcionamento é das 7h00 às 17h00, e não há troca de turnos. Nos encontros preliminares, observamos que a quase totalidade das educadoras não possuía formação específica, nem mesmo a conclusão do magistério. Algumas foram recrutadas entre os membros da associação e desenvolviam trabalho religioso junto a essa comunidade, sendo elas mesmas residentes em favelas. Portanto, logo ficou muito evidente a influência religiosa que se fazia presente, mesmo nas reuniões mensais de capacitação missa antes das atividades pedagógicas. Nas observações das interações entre as educadoras e as crianças, tanto nas salas quanto nas atividades livres, observamos a atribuição pelas educadoras de apelidos pejorativos às crianças, referindo-se ao fato de serem originárias da favela. A interação com as mais novas limitava-se aos cuidados básicos, que eram feitos de modo mecânico e impessoal. Já com as maiores, as regras eram inconsistentes e, muitas vezes, a etapa de desenvolvimento em que se encontravam não era considerada. No mais, a falta de sonhos, 4 Algumas atividades desenvolvidas junto aos educadores acontecem em parceria com alunos do curso de Psicologia da Universidade Nove de Julho, em São Paulo. 3
4 projetos e expectativas em relação ao futuro das crianças nos levaram a concluir que existia uma questão central em torno do preconceito e da exclusão social, vividos também pelas educadoras que se identificavam com as crianças. O objetivo da Consulta Terapêutica Coletiva foi oferecer um espaço de comunicação e descobertas. Buscamos conhecer as representações mentais de cada elemento da equipe sobre as crianças, assim como a diferenciação do self, diminuindo as identificações, abrindo o diálogo, construindo novas redes associativas. A Consulta Terapêutica Coletiva No dia do encontro, estavam presentes todos os funcionários da creche, três estagiárias de psicologia e duas terapeutas. Após a apresentação, cada um comentou sobre o trabalho que vinham desenvolvendo, o tempo na instituição, a formação específica e a idade das crianças atendidas. Nesse momento, já foi possível perceber as relações que existiam entre a equipe e a coordenação, surgindo elementos importantes da dinâmica de trabalho e vínculo com as próprias crianças. Havia aquelas que eram preferidas e chamadas de filhas por algumas educadoras, recebendo atenção especial. Utilizamos como elemento mediador o Teste Desiderativo 5 e solicitamos que cada um imaginasse um animal que representasse a creche; com isso, buscamos criar um espaço lúdico que se revelaria mutativo, desde que sustentado pelos terapeutas presentes, garantindo a continuidade do ser (experiência). Em circunstâncias favoráveis, em que o gesto espontâneo, no caso a escolha de um animal, é acolhido, ele passa criativamente por transformações sem nenhuma interferência do terapeuta. Tornar a dimensão lúdica do encontro maximamente visível nas Consultas Terapêuticas, tanto coletivas como individuais, para a abordagem da pessoalidade funda-se sobre a original concepção de 5 Geralmente, esse instrumento é utilizado para diagnóstico individual. Sugere-se que o indivíduo escolha algo que não seja uma pessoa e justifique com detalhes, para que seja possível fazer uma interpretação minuciosa. 4
5 Winnicott (1971), que pensa toda psicoterapia como superposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. Apropriamo-nos dessa idéia com muita tranquilidade, na medida em que consideramos a psicoterapia de modo francamente ampliado, transcendendo tanto o modelo clássico do atendimento individual do neurótico como superando a visão do psíquico enquanto interioridade monádica e relativamente dissociada do ambiente social e da vida (Aiello-Vaisberg, 2004). As escolhas dos animais despertaram interesse no grupo. Imediatamente após a apresentação de um animal, surgiam perguntas sobre sua escolha, bem como brincadeiras e comentários engraçados. Os animais sugeridos foram: urso - assusta por fora, mas é doce por dentro; polvo agarra tudo; galinha (duas vezes) protege os filhotes sob as asas; canguru guarda os filhotes na bolsa; coruja vê seus filhos como lindos, apesar de tudo ; gato (três vezes) - embora seja um bicho independente, está sempre se acariciando nas pessoas, pedindo carinho e afeto, sendo descrito como tendo muita carência; coelho agarra e é agressivo; cachorro morde. Apareceu, também, uma águia, que devia voar alto e olhar para cima, ansiar mais do que a realidade lhe proporciona. Como animais que representariam força, surgiram o tigre e o leão. Mas, ao final, a imagem que prevaleceu foi a do cachorro vira-lata é feinho, mas, se for bem cuidado e treinado, pode ser mais esperto que cachorro de raça. Algumas das escolhas e associações nos remeteram às representações tanto das crianças atendidas, necessitando de cuidados físicos e proteção, quanto das educadoras com elas identificadas e, portanto, tão carentes e sentindo as mesmas necessidades de atenção. Por outro lado, outras sugeriram perigo, parecendo falar tanto de qualidades atribuídas às crianças quanto dos perigos reais existentes no contexto da comunidade. Naturalmente, essas crianças evocavam aspectos agressivos, desamparados, enfim, falhas de maternagem vividas pelas próprias educadoras, posteriormente reveladas nos encontros que realizamos em outras oportunidades. De modo geral, pudemos notar que o trabalho de oferecer cuidados a pessoas que vivem em condições tão carentes pode afetar a capacidade de olhar para a realidade, levando à 5
6 negação ou à dissociação da experiência, tornando assim impossível contemplar a criança real. Tal experiência também pode ser sentida entre a equipe participante do projeto, o que comprova a importância da supervisão. O trabalho na creche é carregado de demandas emocionais fortes, não só porque mobiliza os aspectos infantis e primitivos de todos os envolvidos, mas também pelo fato de nos depararmos com uma realidade que chega a ser mutilante da constituição do self. Esse funcionamento permite nossa compreensão das atitudes das educadoras, que consideram suficiente exercer a função restrita de cuidados físicos e alimentação. Esse único encontro que descrevemos foi disparador para muitas mudanças observadas tanto nas atitudes das educadoras em relação às crianças e suas famílias, como também em relação aos participantes do projeto. Observamos uma proximidade maior em relação às crianças, o início da percepção e respeito à individualidade delas, a observação das competências, o aumento da tolerância às diferenças individuais e limitações das mães. Outro aspecto observado foi em relação à curiosidade para saber mais sobre o desenvolvimento das crianças atendidas, e por fim uma crescente apropriação da função de educadora e cuidadora. A partir dessa experiência, a equipe solicitou um espaço onde pudesse compartilhar suas experiências, sentimentos e angústias vividos no trabalho com as crianças, o que contribuiu para que seus funcionamentos psíquicos ficassem menos identificados com a pobreza material do ambiente. A clínica do social é um campo promissor a ser investido através de projetos interventivos que demandam compreensão teórica sólida, além de uma capacidade empática que possibilite sensibilizar-se com o sofrimento sem, contudo, perder o contato com a subjetividade. No mais, esse trabalho demonstra a primazia do cuidado ao cuidador. 6
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AIELLO-VAISBERG, T. M. J. (2005). Consultas Terapêuticas Coletivas e Abordagem Psicanalítica do Imaginário Social. In: Cadernos Ser e Fazer: Reflexões Éticas na Clínica Contemporânea. AIELLO-VAISBERG T.; AMBROSIO, F. F. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, p AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Sofrimento Humano e Exclusão Social: Pesquisa de Enquadres Diferenciados para Abordagem Psicanalítica Preventiva de Condutas Preconceituosas no Brasil e na França. Projeto Temático para Orientação de Iniciações Científicas e Mestrados e Doutorados do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Disponível na World Wide Web: [ ARZANO, M. E. G. (1995). Questionário Desiderativo. In: Psicodiagnóstico clínico. Porto Alegre: Artemed, p OLIVEIRA, T.M. (2008). Atenção materna primária e consulta terapêutica: uma proposta de prevenção comunitária. Tese de doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP). Orientador: Prof. Dr. José Tolentino Rosa. WNNICOTT, D.W. (1965) O valor da consulta terapêutica. In: Explorações Psicanalíticas. WINNICOTT, D.W.; SHEPHERD, R.; DAVIS, M. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994, p WNNICOTT, D.W. (1968). Jogo do rabisco. In: Explorações Psicanalíticas. WINNICOTT, D.W.; SHEPHERD, R.; DAVIS, M. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994, p WNNICOTT, D.W. (1971). Imago, Consultas terapêuticas em Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro: 7
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