UMA PERSPECTIVA CULTURAL DA INTERFACE ENTRE BIOMEDICINA E MEDICINA TRADICIONAL INDÍGENA
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- Adelina Micaela Carlos Igrejas
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1 1 UMA PERSPECTIVA CULTURAL DA INTERFACE ENTRE BIOMEDICINA E MEDICINA TRADICIONAL INDÍGENA Os aspectos culturais não devem ser negligenciados quando trabalhamos com cuidados em saúde. Nessa perspectiva, a doença e a saúde são tidas não somente como uma realidade biológica ou psicológica, mas como uma realidade social 1. A vivência do processo saúde-doença pelos indivíduos de cada sociedade está enraizada nos valores, crenças, práticas, representações, imaginários, significados, experiências individuais e coletivas, reafirmando o caráter sociocultural dos fenômenos compreendidos neste processo, além, é claro, de fatores psicobiológicos envolvidos 2. Analisar as situações que emergem a partir do encontro entre os interesses dos diferentes segmentos populacionais que coabitam um mesmo espaço territorial revela a perspectiva ampliada da pesquisa em saúde pública. Sendo assim se faz mister a ampliação, também, de conceitos como saúde/doença e cultura, numa perspectiva inter e transdisciplinar que permita a estruturação de uma política de saúde indígena mais includente e resolutiva, pautada no respeito a diferença e a pluralidade 3. Sustenta-se que as questões inerentes à saúde e à doença devem ser pensadas a partir dos contextos socioculturais específicos nos quais os mesmos ocorrem 2. A atenção à saúde dos povos indígenas do Brasil tem sido, historicamente, marcada pela intermitência, desarticulação e imposição do caráter assimilacionista dos valores ocidentais aos índios e suas culturas, amplamente adotado pelas políticas públicas que precederam a abertura democrática do país 3. A convivência entre o sistema médico oficial e os sistemas de cura indígenas nos faz refletir sobre a distância entre a teoria e a prática que nós próprios vivenciamos em nossa formação, na ciência médica 4. Bastante conhecimento biomédico adquirido durante a formação sem contudo agregar conhecimentos e valores transculturais. A etnomedicina tradicional definiu cultura como um conjunto de normas, práticas e valores estabelecidos e fixos que determina os pensamentos e as atividades dos membros de uma cultura 5. Cultura pode ser definida como o conjunto de elementos que mediam e qualificam qualquer atividade física ou mental, que não seja determinada pela biologia, e que seja compartilhada por diferentes membros de um grupo social. 2 Falar de cultura é falar de elementos sobre os quais os atores sociais constroem significados para as ações e interações sociais concretas e temporais, assim como sustentam as formas sociais vigentes, as instituições e seus modelos operativos. A cultura inclui
2 2 valores, símbolos, normas e práticas 2. Desta forma, o trabalho em saúde toma uma proporção que vai muito além do tratamento de doenças. O termo cultura nasceu para designar uma característica central do modo de ser humano: a organização da experiência e da ação humana por meios simbólicos. Isto quer dizer que nossa relação com o mundo é organizada e vivida através da mediação da cultura, daquele conjunto imenso de conhecimentos e práticas, de formas de classificação e de significados atribuídos às coisas, aos animais e pessoas, que nos são passados pelo processo de socialização, pela educação em sociedade 9. Em outras palavras, [...] os padrões de comportamento, as instituições, os valores materiais e espirituais de um povo são sua cultura. Assim toda sociedade possui uma cultura, elaborada e modificada no decorrer de sua história 10:7. Entramos assim numa problemática que há algumas décadas vem sendo discutida, envolvendo debates interessantes: a interculturalidade. A perspectiva intercultural quer promover uma educação para o reconhecimento do outro, o diálogo entre os diferentes grupos socioculturais 6. A perspectiva intercultural está orientada à construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade 7. A perspectiva antropológica requer que, quando se deparar com culturas diferentes, não se faça julgamentos de valor tomados com base no próprio sistema cultural, passando a olhar as outras culturas segundo seus próprios valores e conhecimentos - por meio dos quais expressam visão de mundo própria que orienta as suas práticas, conhecimentos e atitudes. A esse procedimento se denomina relativismo cultural e permite compreender o porquê das atividades e os sentidos atribuídos a elas de forma lógica, sem hierarquizá-los ou julgá-los, mas somente, e sobretudo, reconhecendo- os como diferentes 2. Mesmo com os avanços obtidos com estudos sobre interculturalidade, pouco se publica sobre a saúde dos povos indígenas do Brasil, ainda mais se considerarmos a enorme diversidade sociocultural e de experiências históricas de interação com a sociedade nacional. No Brasil, o índio é minoria numérica e etnicamente, a população indígena compõe, aproximadamente, 0,4% da população brasileira 8, ou seja, pessoas se autodeclararam indígenas. A Tabela 1 mostra o quantitativo da população brasileira por raça.
3 3 Tabela 1 - Distribuição da população brasileira por raça, censo Raça Quantidade População branca 47,80% População parda 43,10% População preta 7,60% População amarela 1,10% População indígena 0,40% Fonte: IBGE, Além, de serem numericamente poucos em comparação com a população total, os indígenas são caracterizados por uma multiplicidade de grupos e mais de 274 línguas indígenas. Conforme dados do IBGE quanto à participação relativa no total da população dos estados, somente seis Unidades da Federação possuem população autodeclarada indígena acima de 1% e Roraima detém o maior percentual, 11,0%. 8 Em consideração a esta diversidade, torna-se necessário conhecer a realidade de cada comunidade e identificar estes fatores que modificaram a maneira de viver, de produzir e de se relacionar entre indígenas e não indígenas 5, e, a partir daí, construir junto com esta comunidade estratégias para melhoria da saúde É um indício que aponta a história, passa pela educação (incluindo a nossa), pelas ciências do comportamento, sociologia, antropologia, bem como envolve outros setores além do setor saúde. Este é o desafio do trabalho das equipes de saúde junto aos povos indígenas, que constroem este caminho à medida que buscam soluções dos problemas mais prevalentes e emergentes, tendo em vista principalmente a sua prevenção. A ampliação de conhecimentos, o respeito à cultura, aos valores e saberes indígenas são imprescindíveis para que os objetivos sejam alcançados 5. Quando trabalhamos com indígenas precisamos entender que as causas para as doenças podem ser classificadas em dois grupos: as místicas e as naturais. Nas sociedades indígenas, as explicações sobre a origem das doenças estão comumente associadas a crenças religiosas e representam uma vivência de sofrimento e eventualmente uma possibilidade de morte. 11 Nas situações de risco de vida, explicações são procuradas no corpo de ideias que discorrem sobre a ordem no mundo e o destino de cada homem sobre a Terra. As causas místicas para o sofrimento causado pelas doenças podem vir a incluir possessões espirituais, quebra de tabus e alterações da alma. As causas naturais incluem fatores relacionados ao ambiente, como é o caso da temperatura ambiental (alta ou baixa), da
4 4 chuva, estação do ano ou de fatores individuais como estresse, debilidade física ou alimentação 11. As explicações biomédicas são aproveitadas quando apresentam relações de congruência com os saberes preexistentes e quando se adaptam às necessidades determinadas pelas condições atuais de vida. 12 É recomendado que o trabalho junto às comunidades indígenas deva basear-se em quatro princípios: respeito às tradições e aos costumes tribais; não interferência na vida da aldeia; ênfase na educação do pessoal encarregado de contatar as populações indígenas pertencentes a instituições governamentais, religiosas, etc., visando a não introdução de hábitos alimentares prejudiciais à saúde, especialmente o consumo de açúcar; utilização de mão de obra não indígena apenas em último caso, quando for inviável o aproveitamento de elementos da própria tribo. 13 Com a criação do Sistema Único de Saúde, os povos indígenas obtiveram direito de atenção integral e diferenciada em relação à saúde. A diretriz do SUS de respeitar a especificidade cultural refere-se a respeitar o índio como um ser humano igual, relativizando seus hábitos, costumes e crenças e entendendo que provêm de uma cultura diferente, com valores e conhecimentos diferentes 5. O contato com as sociedades indígenas nos permite olhar a nossa própria sociedade e cultura de uma maneira diferente. Entre os povos indígenas toda a organização social é bem diversa da nossa, a língua, o modo de vida é diferente. A presença de outros sistemas de cura dentro das várias sociedades indígenas é ainda bastante estruturada, diferente do que se apresenta entre a população que frequenta os serviços de saúde em centros urbanos que embora esteja extremamente viva é velada 4. Enfim, deixamos aqui a reflexão: Será possível conduzir o subsistema de saúde indígena do Ministério da Saúde, mesclando a biomedicina com a medicina tradicional sem fazer distinção de valores e sem interferir na cultura dos diferentes povos? REFERÊNCIAS 1- Melo LP, Santos Júnior JA, Silva ACD, Monteiro EM. O Enfermeiro de Saúde da Família e Sua Percepção dos Saberes e Práticas de Saúde e Doença: Estudo Antropológico em Comunidades do Recife-Pe. In: 2º Seminário Nacional de Diretrizes para Enfermagem na Atenção Básica em Saúde: anais (recurso eletrônico). Recife: Associação Brasileira de Enfermagem, Seção Pernambuco; Disponível em Acessado em 10 de julho de 2011.
5 5 2- Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev. Latino-Am. Enfermagem, 2010; 18(3):[09 telas] mai-jun. 3- Pellon LHC, Vargas LA. Cultura, interculturalidade e processo saúde-doença: (des)caminhos na atenção a saúde dos Guarani Mbya de Aracruz, Espirito Santo. Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2010; 20 [ 4 ]: Mendonça, SBM. Relação médico-paciente: valorizando os aspectos culturais x medicina tradicional. Manual de atenção à saúde da criança indígena brasileira. FUNASA. Brasília; Langdon EJ, Garnelo LA. A antropologia e a reformulação das práticas sanitárias na atenção básica em saúde. In MINAIO, M. C. S. e COIMBRA, C. E. A. (org). Críticas e atuantes: Ciências Sociais e humanas em saúde na América Latina. Rio de Janeiro. Ed. FIOCRUZ; Santos BS, Nunes JA. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, B. de S. (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; p Candau VM. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, 2008; v. 13 n. 37 jan./abr. 8- IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010:primeiras considerações com base no quesito cor ou raça Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rio de Janeiro; Arruda RSV. Os Dilemas da Relação Intercultural: Limites da Autonomia Indígena para o Estabelecimento de um Verdadeiro Diálogo in Diálogos Interculturais: Reflexões Interdisciplinares e Intervenções Psicossociais. São Paulo, Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo; Junqueira C. Antropologia Indígena: Uma Introdução. São Paulo, Educ; p Yamamoto RM. Medicina ocidental e medicina indígena: a favor da saúde da criança indígena brasileira. Manual de atenção à saúde da criança indígena brasileira. FUNASA. Brasília; Garnelo L, Wright, Robin. Doença, cura e serviços de saúde. Representações, práticas e demandas Baniwa. Cadernos de Saúde Pública, 2001, v. 17, n. 2, p Pinto VG. Saúde bucal coletiva. 5 ed. Editora Santos: São Paulo; Autores: Bruno Miranda da Rocha. Cirurgião Dentista. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Biociências da UNIRIO. Docente da Universidade Estadual de Roraima. Wellington Mendonça de Amorim. Enfermeiro. Doutorado em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Associado I da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Como citar este post (Vancouver adaptado): ROCHA, BM; AMORIM, WM. Uma perspectiva cultural da interface entre biomedicina e medicina tradicional indígena. [internet]. Rio de Janeiro (br); 2016 [Acesso em: dia mês (abreviado) ano]. Disponível em: (completar com dados do site).
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