NA CORRENTEZA DAS EPÍGRAFES: O TEMPO E A ANCESTRALI- DADE
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- Valdomiro Imperial Gorjão
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1 NA CORRENTEZA DAS EPÍGRAFES: O TEMPO E A ANCESTRALI- DADE Manoela Falcon 1 No princípio, a casa foi sagrada isto é, habitada não só por homens e vivos como também por mortos e deuses. Sofhia de Mello Breyner A epígrafe acima abre o romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do escritor Mia Couto 2, e coincide com o que poderíamos chamar de maior fantasma construído no imaginário do povo moçambicano durante a guerra pela independência colonial portuguesa, o medo de perder a terra, a casa não enquanto bem material de propriedade particular, e sim como lugar onde se enterra os entes queridos, o espaço dos antepassados. Esta epígrafe de Sofhia de Mello Breyner traduz uma constante preocupação do povo moçambicano em relação à terra enquanto àquela que está diretamente dimensionada ao elemento simbólico religioso, não apenas como recurso material, pois o valor simbólico que ela tem está ligado à representatividade do lugar dos mortos, e a epígrafe em questão, como diria Antoine Compagnon 3, mostra-se sobretudo como um ícone no sentido de uma entrada privilegiada na enunciação, pois ela condensa o que virá à tona na narrativa do romance, a problemática vivida pelo personagem Marianinho, que ao voltar à ilha de Luar-do-chão para enterrar o Avô Mariano, se depara com certos enigmas, entre eles uma terra que se fecha, que se nega a receber o morto. Os enigmas em torno dos acontecimentos já são, de certa forma, antecipados pela epígrafe. Anterior ao primeiro capítulo do livro, a epígrafe em questão se comporta como (...) uma condensação do prefácio cuja fórmula foi definitivamente dada por Descartes. O autor mostra as cartas. Sozinha no meio da página, a epígrafe representa o livro apresenta-se como seu senso ou contrasenso, infereo, resume-o. 4 Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto 5 descreve em vinte e dois capítulos a intrigante história vivida pelo estudante Marianinho, de volta à ilha para 1 Doutoranda em Literatura e Cultura (PPGLC-UFBA) / Universidade Federal da Bahia. manoelafalcon@hotmail.com 2 COUTO, Mia. Um Rio Chamado Tempo, uma casa chamada Terra. São Paulo: Companhia das Letras, COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da Citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, Ibid., P COUTO, Mia. Um Rio Chamado Tempo, uma casa chamada Terra. São Paulo: Companhia das Letras, Anais Eletrônicos 77
2 comandar as cerimônias fúnebres do Avô Dito Mariano, ritual que por tradição, deveria ser efetivado pelo filho mais velho do morto, e não a princípio, pelo seu suposto neto. O indício da quebra da tradição já se coloca desde o início da narrativa, operando os deslocamentos que desestabilizam o lugar comum de uma literatura que poderia ter fixado os mitos e ritos de uma tradição cultural moçambicana. Mas o autor desloca os lugares comuns, inclusive o da escrita literária. Neste trabalho interessa-nos verificar como a estrutura das epígrafes que iniciam cada capítulo do romance, acaba por organizar, desconstruir e interferir na história narrada. No romance, após a epígrafe de Sonia Breyner, temos em cada um dos vinte e dois capítulos uma epígrafe que reproduz o pensamento de alguns personagens da própria obra. Este é o primeiro estranhamento experimentado pelo leitor, que acostumado à função da citação no texto, não consegue de imediato associá-la a uma determinada autoria. O leitor, que não sabe ainda quem é o Juca Sabão, tem o primeiro contato com este personagem a partir da leitura de suas palavras reproduzidas pela epígrafe do primeiro capítulo intitulado Na véspera do tempo : Encheram a terra de fronteiras, carregaram/o céu de bandeiras. Mas só há duas nações/ a dos vivos e a dos mortos. Juca Sabão. O personagem Juca Sabão só é apresentado na narrativa lá pela página 60, quando Fulano Malta, pai de Marianinho, comenta com o filho sobre a condição da sua morte. Não há intenção do autor em apresentar os personagens através das epígrafes, ao contrário, as mesmas, enquanto citações dos personagens, trabalham o texto num jogo de recorte e colagem que faz todo sentido. Considerando a epígrafe como uma citação por excelência, compartilhamos a idéia de Antoine Compagnon ao afirmar que a citação não tem sentido fora da força que a move, que se apodera dela, a explora e a incorpora. (...) O sentido da citação seria, pois, a relação instantânea da coisa com a força real que a impulsiona. 6 Neste sentido, percebemos como as epígrafes em cada capítulo jogam com o deslocamento e promovem o processo metafórico de identificação entre o povo moçambicano e o atual conflito experimentado pelo contexto histórico pós-colonial vigente. O choque entre tradição e modernidade é descrito pelas epígrafes e reflete de certa maneira a necessidade de ponderação em relação aos novos hábitos e costumes trazidos pela modernidade, apontando ainda para a complexidade de se viver uma modernidade sem ter a capacidade crítica para inferir diretamente na construção social da nova nação. 6 Ibid., P Anais Eletrônicos 78
3 No capítulo 13 Uns pós muito brancos, temos a seguinte epígrafe: Foi na água mais calma / que o homem se afogou. Provérbio africano 7. Esta epígrafe metaforiza o comportamento de grande parte da sociedade moçambicana que sobreviveu à guerra pela independência da colônia portuguesa. Como afirma Mia Couto em entrevista concedida à revista África, em julho de 2009, realizada em São Paulo por Conceição Oliveira, o fato de ter vivido uma guerra civil e ter saído dela há tão pouco tempo, deixa a sociedade muito vulnerável, tendendo sempre a aceitar determinadas medidas governamentais sem mesmo se opor ao regime político, evitando qualquer embate ideológico. A primeira grande sombra eu acho que é a guerra... Porque foi alguma coisa que não foi resolvida profundamente, intimamente, não é. O que significa que as pessoas se aperceberam... se apercebem ainda hoje que não vale a pena lembrar este passado imediato, ou fariam uma operação fantástica que para mim foi de uma amnésia coletiva, hoje ninguém... se vocês percorrerem... a Conceição percorreu Moçambique, ninguém se lembra da guerra, ninguém invoca nenhuma memória, é como se não tivesse acontecido nada, não é? E sempre fica, as pessoas se apercebem que há tensões que não foram resolvidas, estão lá ainda e que deram origem aquela violência e, portanto, como se fosse uma caixa de demônios, é preciso não tocar nela, é preciso não mexer nela. Eu acho que isso é o maior medo, de tal maneira é presente que nós aceitamos um regime político que seja discutível, que seja polêmico em nome desta coisa que é a estabilidade que é a negociação de uma situação de paz, acho que esse é um grande medo. 8 A literatura de Mia Couto opera o jogo conflitivo entre a tradição e a modernidade. O trabalho da citação, particularmente neste romance, faz com que a citação funcione como operadora da intertextualidade, mas ao citar os próprios personagens, Mia Couto desloca a necessidade de apelar para a competência do leitor (a sua enciclopédia), pois ao acompanhar a escritura da obra o leitor identificará a autoria das epígrafes, que não deixam de funcionar a partir do princípio de regulação da escritura 9, mas que ao utilizar os provérbios africanos no lugar da citação de fragmentos textuais consagrados, questiona o próprio sistema valorativo do texto literário que manipula a citação como meio de sobrevalorização do sistema que investe na criação de uma origem mítica e que visa funcionar como uma espécie de garantia de qualidade literária. As epígrafes em Um rio chamado tempo, uma Casa chamada terra valoriza a memória dos personagens. A reprodução dos pensamentos, ditos populares, ritos, evocam o lugar da 7 COUTO, Mia. Um Rio Chamado Tempo, uma casa chamada Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.p Entrevista com MIA COUTO PARA A SÉRIE NOVA ÁFRICA, realizada em junho de 2009, realizada em São Paulo, SP, Brasil. Notas: Conceição Oliveira. Disponível em 15/06/2010: mocambique-beira-e-literatura/ 9 COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da Citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, Anais Eletrônicos 79
4 memória enquanto revisitação possível de uma civilização que se encontra dividida entre modernidade e tradição, urbanidade e ruralidade. E mesmo a única epígrafe exterior ao texto 10, a que se encontra na abertura do capitulo 3, intitulado Um lençol de Amores 11, que cita o fragmento poético do autor João Cabral de Melo Neto: Acordar não é de dentro./ Acordar é ter saída 12.; demonstra a preocupação do autor em promover uma reflexão sobre o estado de sonolência vivido por grande parte da população moçambicana. Esta epígrafe dialoga com a já citada epígrafe que reproduz o provérbio Africano Foi na água mais calma/ que o homem se afogou. A calmaria das águas do rio nem sempre indica um contexto social digno e edificante para aquela sociedade pós-colonial. Neste sentido, a casa chamada terra também coloca em questão o processo de assimilação cultural ao qual a sociedade foi exposta durante o período colonial e a conseqüente interferência deste processo na atual formação identitária das comunidades de Moçambique. Em relação à casa chamada terra, podemos observar alguns aspectos significativos a- pontados pela narrativa, a partir da análise da epígrafe assinada pelo Avô Mariano, localizada no início do quarto capítulo do Romance: O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora. 13 Ao apontar para o processo de construção da identidade do povo moçambicano, da sensação de pertencimento à ilha, o autor instaura a relação entre a necessidade da preservação da memória e ao mesmo tempo do esquecimento. Preservar o que culturalmente os aproxima enquanto nação e esquecer aquilo que os separa, como a construção dos heróis enquanto mito fundador da nação. De acordo com Mia Couto 14, Moçambique é uma espécie de ilha, que num sentido histórico ficou longe de tudo. Que sendo um país de língua portuguesa ficou rodeado por países de língua inglesa, e que observando a tique dos ilhéus, sempre ficava espreitando o barco que chegava e que partia. É o desejo de querer ser do mundo. Mas esse desejo não poderia vir sem estar acompanhado do juízo crítico, do conhecimento sobre si mesmo, e é nesse sentido que a casa é chamada terra. Um reflexo do conflito entre tradição e efeitos da globalização, na qual o futuro é forjado, mais por uma via política que cultural. 10 O termo exterior alude à citação do texto de autoria não pertencente ao núcleo de personagens do romance de Mia Couto. 11 COUTO, op. cit., P Fragmento textual do poema Frei Caneca, em Auto do Frade, do escritor e poeta João Cabral de Melo Neto. 13 COUTO, op. cit. P Em entrevista citada em nota anteriormente. Anais Eletrônicos 80
5 REFERÊNCIAS: COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da Citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, COUTO, Mia. Um Rio Chamado Tempo, uma casa chamada Terra. São Paulo: Companhia das Letras, DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Lisboa: Res Editora, HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, NETO, João Cabral de Melo. A escola das Facas / Auto do Frade. São Paulo: Editora Objetiva, OLIVEIRA, Conceição. Entrevista com MIA COUTO PARA A SÉRIE NOVA ÁFRICA, realizada em junho de 2009, em São Paulo, SP, Brasil. Disponível em 15/06/2010: mocambiquebeira-e-literatura/ Anais Eletrônicos 81
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